quarta-feira, 25 de julho de 2018

BERGMAN, 100 ANOS

Nascido em Uppsala, ao norte de Estocolmo, Suécia, em 1918, Ingmar Bergman faria, neste mês de julho, 100 anos, razão por que em diferentes países ocorrem programações associadas à obra do realizador de O sétimo selo (1957), que vão da exibição de todos os seus filmes, a exemplo do que faz o Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, a simpósios, publicação e reedição de livros dedicados ao cineasta sueco. Nesta edição, RiVista homenageia Bergman entrevistando Álder Teixeira, membro da Academia Cearense de Cinema e estudioso da filmografia do "cineasta da alma". 

RIVISTA – Você vem se dedicando a estudar a cinematografia de Ingmar Bergman. Por que escolher um cineasta um tanto fora de moda? 

Álder – Em se tratando de obra de arte, nomeadamente a grande obra de arte, qualquer tipo de modismo é nocivo, para não dizer descabido em termos rigorosamente estéticos. Ademais, Bergman é um desses artistas que não permitem enquadramentos restritivos, pelo alcance, pela dimensão e importância da sua arte. Arrisco afirmar que Bergman é o maior esteta do cinema de todos os tempos. 

RIVISTA – Nesse sentido, em que se apoiou a sua tese de doutoramento sobre o cineasta? 

Álder – É sabido que Bergman é um cineasta já muito estudado. É inimaginável o que se tem escrito sobre ele em termos do grande diretor de cinema que foi. Mas é bastante que se examine com atenção esses estudos para se perceber que a filmografia do cineasta tem sido, via de regra, objeto de apreciação em termos do seu conteúdo, como se estivéssemos diante da obra de uma escritor, um pensador sistemático da realidade humana, apenas, o que reconhecidamente foi. Mas é preciso não esquecer que estamos lidando com a obra de um cineasta, um artista que trabalha com uma linguagem específica, por mais que o cinema esteja vazado pela presença de outros códigos estéticos, como a literatura e o teatro. É no manuseio dessa linguagem específica que Bergman se notabiliza como um diretor absolutamente grandioso, pelas escolhas estilísticas que faz na construção de sua arte de qualidade inquestionável, mesmo para aqueles que não a colocam entre as suas preferências em termos de cinema. É na perspectiva da utilização dos meios rigorosamente cinematográficos, de estética fílmica, pois, que apoiamos a nossa modesta contribuição. 

RIVISTA – Por tratar-se de um cinema muito autoral, muito clássico, digamos? 

Álder – Em parte. É inegável que se trata de um cinema autoral, que traz a assinatura inconfundível do seu criador, o que, aliás, torna possível um enfoque mais atento dos seus elementos significantes, formais, para usar de uma palavra talvez mais apropriada para dizer o que quero. Do ponto de vista semiológico, um filme é forma-significante, é texto, sujeito, portanto, a análises dos elementos estruturais através dos quais ganha forma enquanto obra. Quanto a fazer um cinema 'clássico' como se afirma, permito-me tecer sobre isso algumas considerações. Bergman é clássico no sentido de figurar em qualquer relação que tenha por objetivo identificar autores obrigatórios do grande cinema, do cânone cinematográfico propriamente dito. Parodiando Italo Calvino, em livro indispensável sobre o conceito de 'clássico', diria que "clássico é um filme que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer". Nesse sentido o termo se aplica adequadamente a Bergman. Isto porque a cada vez que assistimos a um filme de Bergman, constatamos olhares novos desse autor excepcional. Contudo, na contramão do que se costuma ouvir sobre ele, Bergman não se limitou a trabalhar a gramática do cinema clássico, tão-somente, coisa que, também, domina exemplarmente bem. Ele foi, antes de tudo, um diretor ousado em termos de escolhas estéticas, não raro rompendo de forma transgressora com os parâmetros tradicionalmente observados pelos cineastas considerados clássicos, nesse sentido.

RIVISTA – Você poderia dar um exemplo?

Álder – O espaço de uma entrevista como esta seria insuficiente para que desse muitos exemplos aqui. Mas posso lembrar alguns: Em Vergonha, um filme de 1967, os movimentos de câmera, os enquadramentos, a concepção de montagem é absolutamente inovadora. Ocorre-me recordar de um plano em que, sem que se faça um corte, as personagens saem de quadro, há uma elipse de tempo significativa, e essas mesmas personagens retornam ao quadro, o que ocasiona um inevitável estranhamento no espectador, algo muito próximo, excluído o componente ideológico, do 'distanciamento' de que nos falou Brecht. Essa quebra da impressão de realidade, desse caráter ilusionista do cinema, é consciente, fruto de uma escolha pessoal do diretor. Em todo o filme, vamos deparar com uma agilidade de imagem, com um discurso estilístico transgressor, como na cena em que Max Von Sydow e Liv Ullmann são, no momento da gravação, condicionados a improvisar um diálogo que Bergman se negou a fornecer aos dois atores. A queima da película no início de Persona, os olhares para a câmera em Saraband, o filme dentro do filme, em Prisão, a descontinuidade, são procedimentos formais que rompem com a noção de cinema clássico.

RIVISTA – É correto, portanto, considerar Bergman um cineasta da modernidade? 

Álder – Sem dúvida. Bergman, que assume claramente ter sido influenciado pelo neorrealismo, Rosselini sobretudo, foi decisivo para a Nouvelle Vague, pouco depois, que sabemos uma estética absolutamente inovadora. Cineastas da estatura de um Godard, Truffaut, Woody Allen, para ficar em três exemplos importantes, reconhecem a influência de Bergman em suas cinematografias. A sua história como cineasta é a história de uma busca incansável de novas possibilidades estéticas, de uma reatualização permanente dos recursos cinematográficos, de alternativas para romper limites... Moderno, porque clássico, se me permite o trocadilho... 

RIVISTA – Do ponto de vista do significado, o que destacaria em Bergman? 

Álder – Nesse sentido é inevitável voltar ao que já se sabe. É um estudioso do conflito humano em diferentes perspectivas... Bergman fez um cinema de sondagem psicológica e se debruçou sobre as grandes questões existenciais, como a questão da fé, da existência e do silêncio de Deus, da velhice, da solidão, temas que vão estar presentes em seus melhores filmes. A morte é um tema recorrente, mas nunca abordado de forma vulgar, antes pelo contrário, uma vez que a morte, que decorre em sua arte como uma projeção subjetiva, é invariavelmente tratada com irreverência e, por vezes, com algum senso de humor. O amor, as crises dos relacionamentos, a consciência de que estamos condenados à infelicidade em termos afetivos é uma marca indelével do cinema de Ingmar Bergman. 

RIVISTA – Você fala de 'projeção subjetiva'... O cinema de Bergman é autobiográfico? 

Álder – Você levanta uma questão seminal do campo da Estética. Penso que, em alguma medida, toda arte é autobiográfica, pois arte é, também, expressão, é revelação de uma história pessoal do ponto de vista de quem a produz. Em se tratando de certos artistas, Bergman é um desses, é visível a exposição estilizada de problemas ou conflitos pessoais não resolvidos. É bastante que se conheça um pouco se sua biografia para que se constate que, assistindo aos seus filmes, somos subitamente jogados diante dos dilemas vividos pelo homem que foi, filho de um pai autoritário e áspero. Em Fanny e Alexander e Saraband, seus dois últimos filmes, por exemplo, esse viés pessoal aflora com nitidez. Mas não é esse caráter autobiográfico, claro, que importa. O que diz da genialidade de Bergman como artista é a beleza extraordinária de seus filmes; é o domínio absoluto da linguagem, a sensibilidade com que fez suas escolhas, a poesia com que soube trabalhar a imagem... A propósito, há um belo livro de um estudioso francês, Jacques Aumont, sobre Bergman, que traz esse subtítulo: "Mes filmes sont l`explicacion de mes images", infelizmente ainda não traduzido para o português.

RIVISTA – Por que a obra de Ingmar Bergman ainda é considerada hermética e inacessível para o espectador comum, não especializado? 

Álder – Sempre fui contra se considerar Bergman um cineasta para iniciados. A primeira fase de sua produção, que se estende de meados dos anos 40 a meados dos anos 50, por exemplo, é constituída de filmes transparentes, com uma narrativa linear e uma estrutura relativamente simples, muito embora já se possa perceber neles uma visada sofisticada, e pessoal, do diretor. A partir da segunda metade dos anos 50, aí sim, o cineasta passou a experimentar mais e a trazer para o plano da imagem fílmica estratégias estéticas mais pessoais, e a desenvolver uma concepção narrativa mais ousada, que exige do espectador maior atenção. É quando começa a adotar nos seus filmes uma técnica mais elaborada e os temas explorados rompem com o conceito de arte como representação do mundo exterior, pois ela é, em si, uma realidade independente. Isso me faz lembrar de uma teoria bastante interessante de Maurice Blanchot acerca da literatura e, por extensão, de qualquer arte: a arte fala de realidade, mas  de uma realidade diferente daquela que é dada ao homem pela sua experiência concreta de mundo. É a sua razão de ser jogar com o espectador e conduzi-lo a um mundo de estranhamento em que, quase sempre, não é possível se reconhecer. Nisso o cinema de Bergman ataca a transparência da narrativa de Hollywood e propõe novas alternativas de leitura do mundo, como tentei mostrar na minha pesquisa, isto é, "uma experiência, ilusória ou não, [que] aparece como meio de descoberta e de um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos". Eis a razão por que temos de aceitar a morte que joga xadrez com um homem, como em O sétimo selo; o cadáver da moça que se transforma em uma fonte de água límpida, como em A fonte da donzela, ou situações impensáveis como a cena da necrópsia em O rito. Se assinar este pacto com a obra de Bergman, o espectador verá como o cinema que nos propõe não é tão incompreensível o quanto parece. Bergman fez arte no sentido mais elevado do termo.

RIVISTA – Bergman foi sempre acusado de certinho, de omisso, politicamente falando... 

Álder – Quem afirma isso não só comete uma injustiça com esse grande artista do seu tempo, mas, acima de tudo, dá um atestado de ignorância, no sentido leve da palavra, acerca da obra bergmaniana. Não terá assistido a filmes como O ovo da serpente ou Vergonha, autênticos manifestos políticos contra o absurdo da guerra e de denúncia do inferno existencial a que estamos muitas vezes condenados. Bergman não foi, digamos, um ideólogo, e esteve sempre para além dos maniqueísmos partidários, mas fez uma arte inteiramente comprometida com os interesses humanos mais elevados.

RIVISTA – Por último, que filmes recomendaria para um espectador iniciante de Bergman? 

Álder – Gosto dos seus primeiros filmes e acho que qualquer espectador deveria começar por Crise ou Chove sobre o nosso amor, mais simples, menos experimentais. Mônika e o desejo é um filme de fácil compreensão e absolutamente indispensável no conjunto da obra de Bergman, além de ser um dos mais belos e ternos filmes já realizados. Depois, O sétimo selo, Morangos Silvestres, A hora do amor, Gritos e Sussurros, Sonata de Outono e Saraband, filmes esplêndidos, que não se pode deixar de ver. Mas gostaria que todos ficassem mais atentos à obra do esteta, que reparassem mais na qualidade da luz, no domínio de câmera, no ritmo de sua narrativa e no apuro técnico de sua direção. É nisso que reside a superioridade do Bergman cineasta, a meu ver, muito maior do que o grande escritor que indiscutivelmente foi.

 

terça-feira, 24 de julho de 2018

O DESVENDAMENTO DA ALMA HUMANA

 Há exatos 100 anos nasceu em Uppsala, Suécia, Ingmar Bergman. Autor de uma obra incontornável, em que pontuam verdadeiras obras-primas da sétima arte, a exemplo de O Sétimo Selo, Morangos Silvestres e Persona, para citar uns poucos títulos de um conjunto de pelo menos 56 filmes importantes, Bergman explorou como poucos artistas as profundezas da alma humana, descrevendo à exaustão seus conflitos, sua angústia, seus medos, suas dores e suas infinitas tonalidades dramáticas, marcas indeléveis do homem pós-moderno e da contemporaneidade. Tentar compreender a significação global de sua arte, penetrar suas veredas e armadilhas, seus mistérios e, acima de tudo, sua estética prodigiosa, a um tempo bela e inquietante, é o objetivo desse encontro. Sem perder de vista, todavia, que estudar a filmografia de Ingmar Bergman é, antes de qualquer outra coisa, viajar por um oceano de beleza plástica invulgar, deliciar-se com o desconhecido de nós mesmos, entregar-se às fulgurações do que se convencionou chamar de estilo bergmaniano. 

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Cartas da Prisão


        Toda canção de liberdade vem do cárcere, Mário de Andrade.

Chega às livrarias Cartas da Prisão, de Nelson Mandela, coleção de 250 missivas escritas pelo líder sul-africano durante os 27 anos em que esteve preso (e incomunicável) por lutar contra o apartheid. Comoventes, arrebatadoras, mas sobretudo capazes de expor ao mundo as injustiças de que são historicamente vítimas as grandes lideranças populares, o livro chega ao Brasil em boa hora, não apenas por assinalar de forma marcante o centenário de Nelson Mandela, nascido em 18 de julho de 1918, em Transkei, África do Sul, mas pelo que enseja de reflexão acerca do momento político nacional.

Como evidencia Zamaswazi Dlamini-Mandela, neta do líder sul-africano, no prefácio à publicação das cartas, "o livro familiariza os leitores não apenas com o Nelson Mandela ativista e preso político, mas o Nelson Mandela advogado, pai, marido, tio e amigo, e ilustra como seu longo encarceramento, ao afastá-lo da vida cotidiana, era um obstáculo ao cumprimento desses seus papéis".

Na maior parte das cartas, em sua totalidade submetidas a regras inflexíveis de censura do sistema prisional de Robben Island, percebem-se os esforços que o missivista teve de mobilizar a fim de poder comunicar com um mínimo de exatidão as condições em que vivia como preso político. Mais que isso: Mandela tinha plena convicção de que "a despropositada e vexatória conduta das autoridades" tinha por objetivo apagar a sua liderança política e impedir que suas ideias continuassem a ecoar junto ao povo da África do Sul. Sob este aspecto, diz textualmente que todos os mecanismos "indicam uma intenção e uma diretriz deliberadas, por parte das autoridades, para me apartar e isolar de todo contato exterior, para me frustrar e abater, para me fazer cair no desespero e perder toda esperança e por fim me vergar" [sic].

Os métodos, pode-se ver, são os mesmos em qualquer país.

O certo é que, mesmo em condições impensáveis de repressão (Mandela era impedido de receber visitas que minimamente sugerissem conotações políticas), o líder sul-africano jamais silenciou, e revelou-se um missivista prolífico, bem na perspectiva do que materializam essas suas "Cartas da Prisão" ora publicadas.

Enquanto isso, no que constitui um fato digno de registro, a edição de hoje da Folha de S. Paulo traz com destaque, em sua seção Tendências/Debates, carta de um outro preso político de prestígio internacional, Luiz Inácio Lula da Silva. Intitulado Afaste de mim este cale-se, o texto da carta, a exemplo do que fazem perceber os belos escritos de Nelson Mandela, revelam um homem serenamente dedicado a pensar o Brasil, a identificar seus graves problemas e a indicar alternativas de ação. À dada altura, pontuando o equilíbrio com que soube inequivocamente conduzir o país, quando presidente em dois mandatos, Lula ressalta a sua vocação para o diálogo: "Não busquei um terceiro mandato quando tinha de rejeição o que Temer tem hoje de aprovação [algo em torno de 5%]. Trabalhei para que a inclusão social fosse o motor da economia e para que todos os brasileiros tivessem direito real, não só no papel, de comer, estudar e ter moradia".

Repetindo o que afirmara há três meses, pouco antes de ser conduzido preso a Curitiba, Lula conclama: "Querem me derrotar? Façam isso de forma limpa, nas urnas".

Quanto ao livro Cartas da Prisão, recomendo-o.

 

 

 

  

 

 

 

 

   

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Do cárcere de nós mesmos


Neste sábado 14, Ingmar Bergman faria cem anos. Homem de teatro, romancista, roteirista e diretor de cinema de maior prestígio em todos os tempos, Bergman nasceu em 1918, na então pequena cidade de Upssala, Suécia, país em que realizou quase tudo de uma obra absolutamente extraordinária.

Alguns de seus filmes, é certo, figuram entre o que houve de mais excepcional em termos cinematográficos, a exemplo de O Sétimo Selo (1957), Morangos Silvestres (1957), Gritos e Sussurros (1972) e Saraband (2003), para citar alguns títulos magistrais e mesmo indispensáveis em qualquer relação de "filmes para ver antes de morrer".

Lembro de quando assisti pela primeira vez a um filme de sua autoria, Morangos Silvestres. Eu era quase adolescente, ainda, razão por que não encontro até hoje uma explicação objetiva para o impacto que a obra me causou, a ponto de querer, a partir dali, ver outros filmes, e ler obsessivamente tudo o que me chegasse às mãos sobre o cineasta sueco. Não foi, supostamente, a profundidade com que o filme examina a angústia do ser humano em meio aos mistérios da vida, a dor insuperável das perdas e nem os questionamentos acerca da velhice e da solidão, de resto temas recorrentes em sua vasta filmografia.

Havia ali, na forma como o diretor conduzia sua narrativa, embora fundamentada em procedimentos da cinematografia clássica, algo novo e original, um movimento de câmera, um enquadramento, uma luz, um ritmo narrativo, que me faziam ir para muito além do que é recorrente na experiência de uma simples recepção cinematográfica. Por inteiro, senti-me absorvido pela arte de Ingmar Bergman, hipnotizado pela força daquelas imagens a um só tempo tão simples e tão carregadas de poesia e de apuro estético.

Depois, assistiria a O Sétimo Selo, e aos filmes da primeira fase, Um Barco para a Índia (1947), fato incomum para um início de carreira, alvo de elogios efusivos de ninguém menos que André Bazin, o renomado crítico dos Cahiers du Cinéma; O Rosto (1959), com que Bergman abria uma pauta recorrente de sua filmografia: o papel do artista no mundo ocidental, a liberdade de criação, a função da arte e as razões por que fora sempre (e ainda é) objeto da censura do poderosos de plantão; Mônika e o Desejo (1953), a poesia do amor juvenil, a tocante nudez de Harriet Anderson, a uma só vez terna e desconcertante, e, no final da película, aquele close do rosto fixado na câmera, como a denunciar a culpa de todos nós, num mundo cada vez mais irracional e estúpido  ---  não à toa, considerado, por Jean-Luc Godard, "o plano mais triste de toda a história do cinema".

Viriam, na sequência de uma admiração que só aumentava com o passar dos anos, até se converter num tipo de devoção estética, em ordem aleatória, Luiz de Inverno (1963), O Silêncio (1961), Através do Espelho (1961) e Persona (1966), esta verdadeira obra-prima com que Ingmar Bergman atingiria o que se pensava ser o ápice de uma trajetória quase irretocável em termos cinematográficos. Cinema de poesia, conforme examinaria eu anos depois em tese* acadêmica sobre o realizador sueco, sustentando-me na teoria de Pier Paolo Pasolini.

Sem esquecer, por óbvio, ainda, filmes sublimes, incomparáveis, enquanto cinema, no rigor e precisão conceitual de uma arte que extrapola os limites possíveis de uma definição: Fanny e Alexander (1982), máximo da expressão estética do artista, e o mais autobiográfico de seus filmes. Irreverente, dizia ele estar encerrando a carreira genial, mas seu canto de cisne viria somente em 2003, com Saraband, com que desnuda em definitivo a alma de seus personagens através da forma, da poesia, dos rostos inigualavelmente mostrados com seus planos filmados de perto.

Ver um filme de Bergman, para me valer das palavras felizes de um renomado crítico de cinema, "é meditar, é ir o mais fundo possível no âmago do ser humano, é viajar num planeta estranho à procura de uma chave que possa abrir nosso próprio cárcere para nos libertar de nós mesmos [...]"   

 

 * Estratégias Narrativas na Filmografia de Ingmar Bergman: O Diálogo entre o Clássico e o Moderno

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

 

    

 

 

 


 

terça-feira, 10 de julho de 2018

A Lei de Gérson Faliu

De um amigo, recebo um vídeo em que torcedores belgas aparecem debochando dos brasileiros ao som de Aquarela do Brasil. O alvo direto do esquete* é o jogador Neymar, cujo nome substitui no verso antológico de Ary Barroso a palavra Brasil: "Ô, abre a cortina do passado / Tira a mãe preta do cerrado / Bota o rei congo no congado / Neymar! Neymar!". Ao fim da estrofe, das mais belas da letra, os jovens atiram-se ao chão e se contorcem, simulando dores lancinantes.

 

Nacionalismo à parte, sinto um certo desconforto ao ver o nosso "outro hino nacional" servir de fundo musical para o desprezo irônico de estrangeiros. Mas, convenhamos, ultimamente temos feito senão por merecer o achincalhe. A Justiça brasileira que o diga, para não falar da corja que governa o país há coisa de dois anos. Quem sabe, as próprias ações do nosso craque ridicularizado...

 

Num outo vídeo aparece o português Christiano Ronaldo. Não realizando jogadas inacreditáveis ou fazendo gols espetaculares, que bem justificam a sua escolha como o melhor jogador de futebol do mundo, nos últimos cinco anos. Não, o que vemos é o português desculpando-se para com o juiz pela falta acidental contra um adversário, ou, cenas incontáveis no post, apresentando-se voluntariamente para ajudá-lo a se levantar, estendendo-lhe a mão ou alongando-lhe as pernas a fim de abreviar sua recuperação.  

 

É emblemática, por exemplo, a cena em que o centroavante português aparece auxiliando, solícito, o jogador Cavane a deixar o campo, machucado, pouco depois de o uruguaio selar a sorte dos portugueses na Copa do Mundo de 2018. Para não falar, vezes sem conta, quando o vemos debruçando-se para acolher nos braços crianças chorosas em presença do ídolo.

 

Saímos dessa Copa com alguma dignidade, é verdade. Mas existem lições a tirar disso, sem o que ficamos condenados a repetir, através dos tempos, o ridículo de nossa indigna vivacidade, o jeitinho brasileiro, como um Gérson extemporâneo para quem é preciso levar vantagem em tudo. 

 

Fingir, aparentar, dissimular, à feição do que fez Neymar durante os jogos da seleção, atirando-se ao chão e contorcendo-se por dores que não sentia, emporcalha a nossa imagem e dizem o porquê da zombaria a que estamos sendo submetidos. Complexo de vira-lata, dirão sobre a minha crônica. Não penso assim. É senso de realidade.

 

Esquecemo-nos, mais uma vez, de que existem os outros. Comentaristas sem preparo, atribuímos à falta de sorte a nossa desclassificação. Nunca ao talento alheio. A Bélgica deu aula de futebol naquele 2 x 1.

 

Equivocado, escrevi aqui que o futebol de poesia, como em 1970, haveria de vencer a prosa. Deu errado. A disciplina, a consciência de suas limitações, a humildade do time belga, na contramão do que fazem alguns dos seus torcedores, no vídeo a que me refiro acima, aliadas a um senso de aproveitamento estratégico das fragilidades do time brasileiro, explicam o resultado que não queremos aceitar: perdemos a hegemonia.

 

A educação de Christiano Ronaldo, todos deveriam saber, venceu a nossa falta de educação. Portugal, como o Brasil, foi eliminado da competição. Mas, nas modalidades mais sérias (distribuição de renda, justiça social, segurança pública), eles estão vencendo há muito tempo. É preciso atentar para as diferenças que separam os objetos de nossa veneração.

 

  • Do inglês sketch, é como se define, no teatro, um esquema preliminar em que se representam traços de um objeto ou de uma cena.   

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Poesia e prosa no futebol

                                                                                                                                                                                           Para César Rossas 

Que maravilhoso é o esporte que suscita as mais improváveis discussões. Dia desses, falando com amigos sobre o nosso desempenho em campos russos, deixei escapar a adjetivação inusitada: --- "A minha confiança [de o Brasil chegar ao hexa] está em que há muito não via a seleção jogar um futebol tão poético!" Estranhamento geral: --- "O cara gosta tanto de arte, meu, que pra ele até o futebol é 'poético'! (sic), ironizou um deles, não sem antes provocar à mesa uma gargalhada ensurdecedora. Entre um gole e outro, tentei me explicar. Em vão, que os times já estavam em campo. Faço-o agora, por escrito, que nunca é tarde para se tirar um peso das costas.

Ator, poeta, jornalista, pintor e, acima de tudo, cineasta extraordinário, Pier Paolo Pasolini era um amante do futebol. Dizem, até, que fora um meia de muito talento. Não sei. O fato é que o realizador de Teorema escreveu textos maravilhosos sobre o esporte. Num desses, embevecido com o brilho da seleção brasileira de 70, que esmagara a sua Itália pelo humilhante placar de 4 x 1, na final da Copa do Mundo, e na sequência do que já fizera sobre o cinema, produziu ele um belíssimo artigo em que professa a existência de duas escolas no futebol: a de Poesia e a de Prosa.

Para Pasolini, o futebol é um sistema de signos, portanto, uma linguagem. Como a linguagem escrita-falada, também ele, o futebol, obedece a uma lógica linguística e suas "palavras" são formadas do mesmo jeito. O texto do futebol se dá pela articulação das partes e segundo normas sintáticas precisas. Para interpretar o seu significado, diz ele, o espectador precisa conhecer seus "códigos", passes, dribles, lançamentos e as regras que norteiam essa construção "textual", faltas, impedimentos, penalidades etc. Sem isso, o espectador se coloca diante do jogo como o não alfabetizado diante de um texto escrito. Os cifradores desta linguagem são os jogadores, nós, diante da tevê, por exemplo, assistindo ao jogo, os decifradores. Em comum, existe um código.

Como a linguagem escrita-falada, por razões de cultura e história, o futebol expressa-se de conformidade com um estilo. Há escolas de futebol de prosa, racional, pautado por um refinado senso de objetividade, submetido a um rigor programático, seja ele realista ou estetizante (como, à época, dizia ser o caso da Itália); e há escolas de futebol de poesia, pontuado pela capacidade de improvisação, pelo ritmo alegre e criativo, pelo drible inesperado, pelo tratamento imprevisível dado à bola nas diversas situações do jogo. É o futebol latino-americano, de que o Brasil é o mais emblemático representante.

A tese de Pier Paolo Pasolini, claro, desgastou-se com o passar do tempo. Desde então, muita coisa mudou: o futebol europeu, enfaticamente citado como futebol de prosa, evoluiu, assimilou novas possibilidades de "linguagem". O mesmo terá se dado com o futebol africano ou asiático. Mesmo porque, é fato, também no futebol se pode verificar uma vocação globalizante.

Em favor do artista italiano, no entanto, é preciso dizer que, como na linguagem escrita-falada, nem o futebol de prosa é totalmente esquemático, referencial, nem o de poesia invariavelmente metafórico, poético. No lance de um gol, dizia Pasolini, há sempre uma invenção, uma subversão do código, a mão (ou o pé?) do imponderável.

Na Rússia, a exemplo do que se verificou no México em 70, o futebol de poesia haverá de vencer o futebol de prosa. Se o drible e o gol, como quis Pasolini, são o momento individualista-poético do futebol, a sua alegria máxima, mesmo a sua razão de ser, o Brasil está a poucos passos de conquistar o hexa. Poetas, convenhamos, é o que não nos falta. Brasil!