Nascido em Uppsala, ao norte de Estocolmo, Suécia, em 1918, Ingmar Bergman faria, neste mês de julho, 100 anos, razão por que em diferentes países ocorrem programações associadas à obra do realizador de O sétimo selo (1957), que vão da exibição de todos os seus filmes, a exemplo do que faz o Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, a simpósios, publicação e reedição de livros dedicados ao cineasta sueco. Nesta edição, RiVista homenageia Bergman entrevistando Álder Teixeira, membro da Academia Cearense de Cinema e estudioso da filmografia do "cineasta da alma".
RIVISTA – Você vem se dedicando a estudar a cinematografia de Ingmar Bergman. Por que escolher um cineasta um tanto fora de moda?
Álder – Em se tratando de obra de arte, nomeadamente a grande obra de arte, qualquer tipo de modismo é nocivo, para não dizer descabido em termos rigorosamente estéticos. Ademais, Bergman é um desses artistas que não permitem enquadramentos restritivos, pelo alcance, pela dimensão e importância da sua arte. Arrisco afirmar que Bergman é o maior esteta do cinema de todos os tempos.
RIVISTA – Nesse sentido, em que se apoiou a sua tese de doutoramento sobre o cineasta?
Álder – É sabido que Bergman é um cineasta já muito estudado. É inimaginável o que se tem escrito sobre ele em termos do grande diretor de cinema que foi. Mas é bastante que se examine com atenção esses estudos para se perceber que a filmografia do cineasta tem sido, via de regra, objeto de apreciação em termos do seu conteúdo, como se estivéssemos diante da obra de uma escritor, um pensador sistemático da realidade humana, apenas, o que reconhecidamente foi. Mas é preciso não esquecer que estamos lidando com a obra de um cineasta, um artista que trabalha com uma linguagem específica, por mais que o cinema esteja vazado pela presença de outros códigos estéticos, como a literatura e o teatro. É no manuseio dessa linguagem específica que Bergman se notabiliza como um diretor absolutamente grandioso, pelas escolhas estilísticas que faz na construção de sua arte de qualidade inquestionável, mesmo para aqueles que não a colocam entre as suas preferências em termos de cinema. É na perspectiva da utilização dos meios rigorosamente cinematográficos, de estética fílmica, pois, que apoiamos a nossa modesta contribuição.
RIVISTA – Por tratar-se de um cinema muito autoral, muito clássico, digamos?
Álder – Em parte. É inegável que se trata de um cinema autoral, que traz a assinatura inconfundível do seu criador, o que, aliás, torna possível um enfoque mais atento dos seus elementos significantes, formais, para usar de uma palavra talvez mais apropriada para dizer o que quero. Do ponto de vista semiológico, um filme é forma-significante, é texto, sujeito, portanto, a análises dos elementos estruturais através dos quais ganha forma enquanto obra. Quanto a fazer um cinema 'clássico' como se afirma, permito-me tecer sobre isso algumas considerações. Bergman é clássico no sentido de figurar em qualquer relação que tenha por objetivo identificar autores obrigatórios do grande cinema, do cânone cinematográfico propriamente dito. Parodiando Italo Calvino, em livro indispensável sobre o conceito de 'clássico', diria que "clássico é um filme que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer". Nesse sentido o termo se aplica adequadamente a Bergman. Isto porque a cada vez que assistimos a um filme de Bergman, constatamos olhares novos desse autor excepcional. Contudo, na contramão do que se costuma ouvir sobre ele, Bergman não se limitou a trabalhar a gramática do cinema clássico, tão-somente, coisa que, também, domina exemplarmente bem. Ele foi, antes de tudo, um diretor ousado em termos de escolhas estéticas, não raro rompendo de forma transgressora com os parâmetros tradicionalmente observados pelos cineastas considerados clássicos, nesse sentido.
RIVISTA – Você poderia dar um exemplo?
Álder – O espaço de uma entrevista como esta seria insuficiente para que desse muitos exemplos aqui. Mas posso lembrar alguns: Em Vergonha, um filme de 1967, os movimentos de câmera, os enquadramentos, a concepção de montagem é absolutamente inovadora. Ocorre-me recordar de um plano em que, sem que se faça um corte, as personagens saem de quadro, há uma elipse de tempo significativa, e essas mesmas personagens retornam ao quadro, o que ocasiona um inevitável estranhamento no espectador, algo muito próximo, excluído o componente ideológico, do 'distanciamento' de que nos falou Brecht. Essa quebra da impressão de realidade, desse caráter ilusionista do cinema, é consciente, fruto de uma escolha pessoal do diretor. Em todo o filme, vamos deparar com uma agilidade de imagem, com um discurso estilístico transgressor, como na cena em que Max Von Sydow e Liv Ullmann são, no momento da gravação, condicionados a improvisar um diálogo que Bergman se negou a fornecer aos dois atores. A queima da película no início de Persona, os olhares para a câmera em Saraband, o filme dentro do filme, em Prisão, a descontinuidade, são procedimentos formais que rompem com a noção de cinema clássico.
RIVISTA – É correto, portanto, considerar Bergman um cineasta da modernidade?
Álder – Sem dúvida. Bergman, que assume claramente ter sido influenciado pelo neorrealismo, Rosselini sobretudo, foi decisivo para a Nouvelle Vague, pouco depois, que sabemos uma estética absolutamente inovadora. Cineastas da estatura de um Godard, Truffaut, Woody Allen, para ficar em três exemplos importantes, reconhecem a influência de Bergman em suas cinematografias. A sua história como cineasta é a história de uma busca incansável de novas possibilidades estéticas, de uma reatualização permanente dos recursos cinematográficos, de alternativas para romper limites... Moderno, porque clássico, se me permite o trocadilho...
RIVISTA – Do ponto de vista do significado, o que destacaria em Bergman?
Álder – Nesse sentido é inevitável voltar ao que já se sabe. É um estudioso do conflito humano em diferentes perspectivas... Bergman fez um cinema de sondagem psicológica e se debruçou sobre as grandes questões existenciais, como a questão da fé, da existência e do silêncio de Deus, da velhice, da solidão, temas que vão estar presentes em seus melhores filmes. A morte é um tema recorrente, mas nunca abordado de forma vulgar, antes pelo contrário, uma vez que a morte, que decorre em sua arte como uma projeção subjetiva, é invariavelmente tratada com irreverência e, por vezes, com algum senso de humor. O amor, as crises dos relacionamentos, a consciência de que estamos condenados à infelicidade em termos afetivos é uma marca indelével do cinema de Ingmar Bergman.
RIVISTA – Você fala de 'projeção subjetiva'... O cinema de Bergman é autobiográfico?
Álder – Você levanta uma questão seminal do campo da Estética. Penso que, em alguma medida, toda arte é autobiográfica, pois arte é, também, expressão, é revelação de uma história pessoal do ponto de vista de quem a produz. Em se tratando de certos artistas, Bergman é um desses, é visível a exposição estilizada de problemas ou conflitos pessoais não resolvidos. É bastante que se conheça um pouco se sua biografia para que se constate que, assistindo aos seus filmes, somos subitamente jogados diante dos dilemas vividos pelo homem que foi, filho de um pai autoritário e áspero. Em Fanny e Alexander e Saraband, seus dois últimos filmes, por exemplo, esse viés pessoal aflora com nitidez. Mas não é esse caráter autobiográfico, claro, que importa. O que diz da genialidade de Bergman como artista é a beleza extraordinária de seus filmes; é o domínio absoluto da linguagem, a sensibilidade com que fez suas escolhas, a poesia com que soube trabalhar a imagem... A propósito, há um belo livro de um estudioso francês, Jacques Aumont, sobre Bergman, que traz esse subtítulo: "Mes filmes sont l`explicacion de mes images", infelizmente ainda não traduzido para o português.
RIVISTA – Por que a obra de Ingmar Bergman ainda é considerada hermética e inacessível para o espectador comum, não especializado?
Álder – Sempre fui contra se considerar Bergman um cineasta para iniciados. A primeira fase de sua produção, que se estende de meados dos anos 40 a meados dos anos 50, por exemplo, é constituída de filmes transparentes, com uma narrativa linear e uma estrutura relativamente simples, muito embora já se possa perceber neles uma visada sofisticada, e pessoal, do diretor. A partir da segunda metade dos anos 50, aí sim, o cineasta passou a experimentar mais e a trazer para o plano da imagem fílmica estratégias estéticas mais pessoais, e a desenvolver uma concepção narrativa mais ousada, que exige do espectador maior atenção. É quando começa a adotar nos seus filmes uma técnica mais elaborada e os temas explorados rompem com o conceito de arte como representação do mundo exterior, pois ela é, em si, uma realidade independente. Isso me faz lembrar de uma teoria bastante interessante de Maurice Blanchot acerca da literatura e, por extensão, de qualquer arte: a arte fala de realidade, mas de uma realidade diferente daquela que é dada ao homem pela sua experiência concreta de mundo. É a sua razão de ser jogar com o espectador e conduzi-lo a um mundo de estranhamento em que, quase sempre, não é possível se reconhecer. Nisso o cinema de Bergman ataca a transparência da narrativa de Hollywood e propõe novas alternativas de leitura do mundo, como tentei mostrar na minha pesquisa, isto é, "uma experiência, ilusória ou não, [que] aparece como meio de descoberta e de um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que não sabemos". Eis a razão por que temos de aceitar a morte que joga xadrez com um homem, como em O sétimo selo; o cadáver da moça que se transforma em uma fonte de água límpida, como em A fonte da donzela, ou situações impensáveis como a cena da necrópsia em O rito. Se assinar este pacto com a obra de Bergman, o espectador verá como o cinema que nos propõe não é tão incompreensível o quanto parece. Bergman fez arte no sentido mais elevado do termo.
RIVISTA – Bergman foi sempre acusado de certinho, de omisso, politicamente falando...
Álder – Quem afirma isso não só comete uma injustiça com esse grande artista do seu tempo, mas, acima de tudo, dá um atestado de ignorância, no sentido leve da palavra, acerca da obra bergmaniana. Não terá assistido a filmes como O ovo da serpente ou Vergonha, autênticos manifestos políticos contra o absurdo da guerra e de denúncia do inferno existencial a que estamos muitas vezes condenados. Bergman não foi, digamos, um ideólogo, e esteve sempre para além dos maniqueísmos partidários, mas fez uma arte inteiramente comprometida com os interesses humanos mais elevados.
RIVISTA – Por último, que filmes recomendaria para um espectador iniciante de Bergman?
Álder – Gosto dos seus primeiros filmes e acho que qualquer espectador deveria começar por Crise ou Chove sobre o nosso amor, mais simples, menos experimentais. Mônika e o desejo é um filme de fácil compreensão e absolutamente indispensável no conjunto da obra de Bergman, além de ser um dos mais belos e ternos filmes já realizados. Depois, O sétimo selo, Morangos Silvestres, A hora do amor, Gritos e Sussurros, Sonata de Outono e Saraband, filmes esplêndidos, que não se pode deixar de ver. Mas gostaria que todos ficassem mais atentos à obra do esteta, que reparassem mais na qualidade da luz, no domínio de câmera, no ritmo de sua narrativa e no apuro técnico de sua direção. É nisso que reside a superioridade do Bergman cineasta, a meu ver, muito maior do que o grande escritor que indiscutivelmente foi.