quarta-feira, 4 de julho de 2018

Poesia e prosa no futebol

                                                                                                                                                                                           Para César Rossas 

Que maravilhoso é o esporte que suscita as mais improváveis discussões. Dia desses, falando com amigos sobre o nosso desempenho em campos russos, deixei escapar a adjetivação inusitada: --- "A minha confiança [de o Brasil chegar ao hexa] está em que há muito não via a seleção jogar um futebol tão poético!" Estranhamento geral: --- "O cara gosta tanto de arte, meu, que pra ele até o futebol é 'poético'! (sic), ironizou um deles, não sem antes provocar à mesa uma gargalhada ensurdecedora. Entre um gole e outro, tentei me explicar. Em vão, que os times já estavam em campo. Faço-o agora, por escrito, que nunca é tarde para se tirar um peso das costas.

Ator, poeta, jornalista, pintor e, acima de tudo, cineasta extraordinário, Pier Paolo Pasolini era um amante do futebol. Dizem, até, que fora um meia de muito talento. Não sei. O fato é que o realizador de Teorema escreveu textos maravilhosos sobre o esporte. Num desses, embevecido com o brilho da seleção brasileira de 70, que esmagara a sua Itália pelo humilhante placar de 4 x 1, na final da Copa do Mundo, e na sequência do que já fizera sobre o cinema, produziu ele um belíssimo artigo em que professa a existência de duas escolas no futebol: a de Poesia e a de Prosa.

Para Pasolini, o futebol é um sistema de signos, portanto, uma linguagem. Como a linguagem escrita-falada, também ele, o futebol, obedece a uma lógica linguística e suas "palavras" são formadas do mesmo jeito. O texto do futebol se dá pela articulação das partes e segundo normas sintáticas precisas. Para interpretar o seu significado, diz ele, o espectador precisa conhecer seus "códigos", passes, dribles, lançamentos e as regras que norteiam essa construção "textual", faltas, impedimentos, penalidades etc. Sem isso, o espectador se coloca diante do jogo como o não alfabetizado diante de um texto escrito. Os cifradores desta linguagem são os jogadores, nós, diante da tevê, por exemplo, assistindo ao jogo, os decifradores. Em comum, existe um código.

Como a linguagem escrita-falada, por razões de cultura e história, o futebol expressa-se de conformidade com um estilo. Há escolas de futebol de prosa, racional, pautado por um refinado senso de objetividade, submetido a um rigor programático, seja ele realista ou estetizante (como, à época, dizia ser o caso da Itália); e há escolas de futebol de poesia, pontuado pela capacidade de improvisação, pelo ritmo alegre e criativo, pelo drible inesperado, pelo tratamento imprevisível dado à bola nas diversas situações do jogo. É o futebol latino-americano, de que o Brasil é o mais emblemático representante.

A tese de Pier Paolo Pasolini, claro, desgastou-se com o passar do tempo. Desde então, muita coisa mudou: o futebol europeu, enfaticamente citado como futebol de prosa, evoluiu, assimilou novas possibilidades de "linguagem". O mesmo terá se dado com o futebol africano ou asiático. Mesmo porque, é fato, também no futebol se pode verificar uma vocação globalizante.

Em favor do artista italiano, no entanto, é preciso dizer que, como na linguagem escrita-falada, nem o futebol de prosa é totalmente esquemático, referencial, nem o de poesia invariavelmente metafórico, poético. No lance de um gol, dizia Pasolini, há sempre uma invenção, uma subversão do código, a mão (ou o pé?) do imponderável.

Na Rússia, a exemplo do que se verificou no México em 70, o futebol de poesia haverá de vencer o futebol de prosa. Se o drible e o gol, como quis Pasolini, são o momento individualista-poético do futebol, a sua alegria máxima, mesmo a sua razão de ser, o Brasil está a poucos passos de conquistar o hexa. Poetas, convenhamos, é o que não nos falta. Brasil!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

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