Voltei, Recife / Foi a saudade / Que me trouxe pelo braço / Quero ver novamente "Vassoura" / Na rua abafando / Tomar umas e outras / E cair no passo / Cadê "Toureiros"? / Cadê "Bola de Ouro"? / As "pás", os "lenhadores" / O "Bloco Batutas de São José"? / Quero sentir / A embriaguez do frevo / Que entra na cabeça / Depois toma o corpo / E acaba no pé.
O texto acima, não é preciso dizer, não é meu. É a letra de um frevo antológico de Capiba. Tão-logo Saulo, meu filho, me telefonou para dar a triste notícia, pus-me a cantarolar a música, repassando com os olhos da saudade a imagem desse Dom Quixote extemporâneo em passos de dança enlouquecidos, que nos faziam quase morrer de rir. O coração-menino de João, o maluco-beleza, na linha do que imaginou Raul Seixas, João Francisco do Amaral Neto, cansado das muitas extravagâncias e excentridades, havia pouco silenciara de vez.
Senti muito a morte desse anarquista convicto. É que João foi um dos meus grandes amigos, desde os tempos já longínquos de vizinhança no Planalto, em Iguatu. À época, Aleuda, mulher de João, ele, eu e minha então mulher vivemos uma amizade profundamente humana. Aleuda era uma pessoa incomum, uma das mulheres mais solícitas que pude conhecer, uma vizinha como as vizinhas dos velhos tempos... João, uma figura absolutamente singular, ciclotímica, irreverente, a indisciplina em forma de gente. Era tempo de vacas gordas e, nos finais de semana, quase nunca saíamos daquelas redondezas, dividindo, com outros vizinhos, quintais e mesas, sobre as quais as mulheres não deixavam faltar os melhores petiscos, o melhor uísque e a cerveja mais gelada. Uma festa, que só tinha hora para começar.
Finais de semana, varávamos madrugadas ao som de Chico, Paulinho da Viola, Fagner, Roberto Carlos, numa animação que chamava a atenção dos que por ali passavam. A uma dada altura, invariavelmente, já cheio da cerveja que tanto apreciava, João punha-se, de inopino, a cantar o frevo de Capiba, de tal modo desafinado, que era impossível não nos voltarmos todos, gargalhada solta, para ouvi-lo desfiar os versos saudosistas desse clássico pernambucano; era um homem sensível e se emocionava sempre que recordava sua terra e sua gente: enquanto escrevo estas linhas, parece que o vejo, com seus olhos a princípio marejados, até cair num pranto compulsivo e desavergonhado. Quase menino!
Pernambucano de Olinda, João era um telúrico assumido, e, como eu, um saudosista incorrigível. Mal bebia o primeiro gole, punha-se a contar os folguedos carnavalescos de Olinda e Recife. Sabia tudo sobre os blocos, os foliões mais renomados, não raro as circunstâncias em que haviam sido escritos alguns dos monumentos do cancioneiro momino recifense. Além disso, era um torcedor vibrante do Sport, "Com o Sport / Eternamente estarei / Pois rubro-negras são / As cores que abracei / E o abraço, de tão forte, / Não tem separação / Pra mim, o meu Sport / É religião." Quantas vezes não o ouvi cantar o hino do leão, tomado de um entusiasmo contagiante, que João era, antes de tudo, um entusiasta nato. João via graça em tudo, se divertia com tudo, tirava piada de tudo. Era polêmico, às vezes inconsequente, que a vida, para ele, tinha assim mais alegria. Era um ledor contumaz, o que explica que soubesse tanto sobre tantas coisas.
João era Dionísio, era Macunaíma. No bom sentido, um moleque, um clown shakesperiano, um amigo, um ser extraordinário, desses que só nascem de quando em vez. Fico, mesmo, imaginando, como a parodiar o poeta: "João era fabulista, fabuloso, fábula? Ficamos sem saber o que era João. E se João existiu de se pegar."
Li emocionada esse texto, Joca foi meu primeiro namorado, o primeiro beijo, o primeiro sonho de menina. Soube hoje, por Edilza, de sua morte. Passados quase 50 anos, desde que recebi dele, uma aliança de compromisso, ainda guardo a lembrança de sua alegria e irreverência;
ResponderExcluirVera
Vera, sua mensagem me emocionou muito, também. Como é bonito, como é belo o amor! Se possível, gostaria de fazer uma referência a seu comentário, numa próxima crônica. Você me autorizaria fazê-lo?
ResponderExcluirRespeitosamente,
Álder
Claro Álder,ficarei feliz com isso.Falar sobre Joca, traz um pouco ele para perto de nós.Fomos felizes sim, nos anos que passamos juntos.Turbulento o amor, como fomos nos velhos tempos.Vibrei com seu texto pois retratou o que me sobrou dele na lembrança, um garoto que chorava e se emocionava com as menores coisas.
ResponderExcluirEle está descrito também no meu blog, gravado no meu coração, o rapaz de camisa sempre um número menos que o seu,se orgulhava de mostrar os músculos "sarados",da maromba diária.As brigas que aprontava no Clube,cada vez que alguem se aproximava de mim.A paciencia com que aguentava minha mãe,sempre contra qualquer namorado da filha.
Bom,hoje é meu aniversário e estou bêbada.
Se quiser, entra no meu blog.
www.viververa.blogspot.com
Vera