segunda-feira, 14 de abril de 2014

A arte de perder

Leitor do jornal A Praça diz ter comprado o DVD Folhas Raras, o belíssimo filme de Bruno Barreto e indaga por que não escrevi "sobre"... Olha, querido, escrevi, sim, e lamento que você não tenha visto. Fins de agosto, inícios de setembro. É verdade que não fiz, à época, uma análise mais detalhada, limitando-me a comentar, por cima, vida e obra da poeta americana Elizabeth Bishop (Miranda Otto), que divide com a arquiteta Lota de Macedo Soares (Glória Pires) o núcleo central da trama. O lançamento do filme em DVD, todavia, merece uma visada mais atenta de suas imensas qualidades. Faço-o, portanto, com grande prazer.
 
Saiba que não é "sem razão", como a sua humildade de cinéfilo dá a ver, que você gostou. Acho mesmo que o filme de Bruno Barreto merecia a atenção que não teve, pois é sublime do ponto de vista rigorosamente cinematográfico.
 
Se parte dos profissionais envolvidos é americana, como você mesmo constata, isso não lhe tira o caráter de filme brasileiro, sendo bastante registrar que a assinatura de Barreto como diretor e a estupenda interpretação de Glória Pires, para não falar da direção de arte, figurino, roteiro etc., dão a Flores Raras o perfil do melhor cinema nacional, em que pese a influência da escola cinematográfica do diretor  --  americana, como sabemos.
 
Deve-se a isso, claro, ao requinte da mise en scène, que me desculpe lançar mão aqui de um conceito fundamental do vocabulário fílmico. Noutros termos: a forma elegante, poética, como o filme nos conduz pelos meandros de sua tessitura dramática, que, sabe-se, tem suas bases numa história de amor real a um só tempo impactante e encantadora.
 
Narrativa clássica? Sim, Bruno Barreto transita da engenharia cinematográfica convencional para uma focalização da realidade que se notabiliza pelo estilo elegante que é mesmo uma de suas marcas. E quando digo 'realidade', refiro-me ao universo íntimo que compreende a história do filme, não por se tratar de pessoas da vida real, como é o caso, mas por nos colocar diante de fatos reais com as tintas de uma cinematografia irretocável do ponto de vista estético. Ou não lhe saltaram aos olhos, mesmo nos limites de uma tela doméstica, a beleza plástica de cada fotograma (o filme foi rodado em película), o manuseio de cada plano, sua duração interna, sua paleta de tirar o fôlego?
 
Quando revi o filme, caro leitor, com o fito de poder dedicar-lhe algumas considerações, como o faço agora, novamente fiquei deslumbrado com sua qualidade como construto artístico. Trata-se de uma película (que bom poder usar o termo assim, precisamente) bem realizada sob todos os aspectos, e honesta artisticamente falando, o que, mais ainda, põe em questão o fato de Flores Raras não ter sido objeto da exaltação que merece como um filme quase perfeito. Despudorado, por mostrar com tanta transparência um triângulo amoroso em que estiveram envolvidas mulheres conhecidas, como é o caso de Lota de Macedo Soares e Elizabeth Bishop? Não sei, que das corriolas do dinheiro nos meios culturais brasileiros tudo se pode esperar. 
 
Não importa. Fato é que, com Flores Raras, Bruno Barreto elevou o cinema nacional a níveis mais que capazes de justificar o prestígio que pouco a pouco vem alcançando em termos mundiais. Irrepreensível esteticamente, rigoroso na utilização dos meios, denso no tratamento de sua fábula, constitui um momento inexcedível da cinematografia brasileira contemporânea. Para não dizer do material temático que lhe serve de substrato, uma das mais felizes reflexões sobre o sentimento de perda. É, nesse sentido, um filme visceral, responsável, isento. Não à toa, termina com o antológico poema de Bishop, como está abaixo.  
 
"A arte de perder não é nenhum mistério. Tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia.  Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério. Depois perca mais rápido, com mais critério: lugares, nomes, a escala subsequente da viagem não feita. Nada disso é sério. Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero Lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério. Perdi duas cidades lindas. E um império, que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério. – Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério".
 
 
 
 
            
            
           

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