quinta-feira, 28 de abril de 2016

O tempo redescoberto

Como um dos objetivos dos meus 60, desde alguns meses tenho me dedicado a reler os sete volumes de Em busca do tempo perdido, a obra monumental de Marcel Proust. A iniciativa, bem sei, não é original. Entre intelectuais e artistas, a uma dada fase da vida, sabe-se, é comum esse tipo de empreitada, desafiadora, diga-se de passagem. Há poucos dias li num jornal importante uma matéria sobre isso. No Rio e em São Paulo, criam-se grupos de leitura orientada da longa travessia proustiana, nomeadamente entre pessoas que veem na arte uma possibilidade de revisão poética de suas vidas, uma forma saudável de busca rejuvenescedora da existência.
 
Por etapa, devo explicar melhor o que está dito acima. Por que é tão desafiador ler o livro de Marcel Proust? Não gostaria de justificar isso pelo fato de, também sob o ponto de vista volumétrico, tratar-se de uma obra monumental: são mais de 3 mil páginas de narrativa, pelo menos 25 personagens principais e incontáveis outros que surgem, desaparecem, retornam mais tarde ou passam quase despercebidos. Mas que têm, em alguma medida, relevância na história de Marcel. A propósito, o leitor desatento se perderá entre as muitas possibilidades de identificação do narrador, apenas duas vezes nominalmente citado na obra. Sem esquecer o fato de que a história se passa em cinco lugares distintos, Combray, Paris, Balbec, Doncières e Veneza.
 
Mais desafiador, no entanto, é o modo como Proust tece a sua "busca", perpassada de idas e vindas, inserções inesperadas de acontecimentos, temporalidades descontínuas que ditam o ritmo da narrativa e embaralham a lógica textual. Nada, contudo, que torne a história desinteressante mesmo para leitores menos familiarizados com a grande literatura. É uma questão de persistência. Não deu na primeira tentativa, quando você ainda andava lá pela quadragésima página, é voltar ao começo da história e procurar decifrar os primeiros mistérios, marcar o nome das personagens a partir das circunstâncias em que surgem no caminho do narrador, e, de repente, descobrir-se-á diante de uma livro absolutamente fascinante.
 
Mas, em que sentido pode me interessar um livro ambientado em lugares tão estranhos? É aí, por certo, que reside o segredo da grande arte. Se a história transcorre em exatos cinco cenários principais da Europa, num emaranhado de jardins, salões, ruas que se estendem do Champs-Élyssés aos canais de Veneza, não é a identificação do espaço o que importa, mas o fato de esquadrinhar, de perscrutar a alma do homem para além dos limites geográficos e explorar o conflito humano em sua relação com o tempo e a memória. Nesse sentido, pois, é que nos encontramos na mesma busca do que, perdido no passado remoto, ressurge com uma atualidade que surpreende e emociona, e, por acréscimo, purifica, como (re)fazendo melhor cada um de nós.
 
Em O tempo redescoberto, sétimo e último volume da obra (tomo como referência a belíssima tradução de Lúcia Miguel Pereira), Proust explora o que se define como "memória involuntária", aquela que nos traz o passado não pelo esforço consciente da razão, mas pelo gatilho que dispara a partir de cheiros, sons, toques, percepções, paisagens etc., registros adormecidos do que vivemos, do que marcou fundo as nossas vidas, e que, como por encanto, despertam (prodigiosos!) em estado de pura poesia: amores, amigos, pessoas queridas que se foram, mas que jamais sairão do mais delicado e terno escaninho de nossos corações.
           

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