Em menos de uma semana, perdeu o cinema dois dos seus grandes nomes, Kiarostami e Hector Babenco. Cineastas de estilos diferentes, aquele minimalista, este mais hollywoodiano, algo no entanto os aproximava: a forma como escolhiam suas estratégias narrativas, ocasionando que seus filmes fossem antes tudo autorais, guardando de um e outro a marca do esteta rigoroso que foi cada um deles.
Não é muito lembrar que um grande filme começa muito antes da escolha da câmera e das lentes, mas na antevisão de cada plano, cada enquadramento, da atmosfera dramática que perpassará todo o processo de realização e que, em última instância, constitui o grande desafio de quem faz cinema: contar com um máximo de sensibilidade para o espectador a história que pulsa por detrás do roteiro e ganha forma através da concepção cinematográfica do diretor.
Nesse sentido, pois, é que se torna possível aproximar o iraniano do brasileiro (a rigor nascido na Argentina). Ambos notabilizaram-se pela direção de fotografia que beira à perfeição. Realistas, foram além do simples realismo enquanto imitação da realidade, no que se dá a ver o uso de técnicas e meios que tornam o filme, antes de qualquer coisa, autêntica obra de arte.
Como afirmou Wim Wenders (ou foi Lars von Trier?), "o cinema atinge sua máxima potência a partir do momento que se recusa a mostrar tudo aquilo que pode simplesmente evocar". Kiarostami e Hector Babenco exemplificam esse deslocamento entre o realismo factual de suas histórias e uma capacidade de imaginação que só os grandes diretores possuem. Mas como o fazem, como conseguem transmitir essas sensações ao espectador se não pelo domínio da linguagem, pelo perfeito conhecimento do que uma luz, um tom quente ou frio de cor, um movimento de câmera, o uso de um filtro ou de um determinado tipo de refletor, um ajuste do equipamento digital etc., de cujas definições resulta o clima de uma sequência?
É conhecida a história que envolveu o cineasta Bernardo Bertolucci e Vittorio Storaro, seu fotógrafo no belíssimo Último Tango em Paris. Levando-o a uma exposição do pintor Francis Bacon, Bertolucci comunicou-lhe o tom cromático que pretendia para sua película, e nenhum espectador mais atento haverá de esquecer o "alaranjado" que toma conta da tela em grande parte do filme, pontuando com uma beleza estonteante o tórrido affair entre as personagens de Marlon Brando e Maria Schneider.
Kiarostami e Hector Babenco foram por isso dois cineastas notáveis. Num e noutro nenhum procedimento narrativo é banalizado. Tudo faz parte de uma atenta busca de resultados. Corrijo, de resultado, uma vez que para ambos só um enquadramento será capaz de dizer com exatidão aquilo que pretendem comunicar. Talvez aí, por exemplo, resida a grande diferença de linguagem entre o cinema e a televisão: se esta admite a utilização de muitas câmeras, aquele, numa perspectiva clássica, opta por uma única câmera. E aí se depara com o que faz a diferença em termos estéticos. Kiarostami e Babenco foram soberbos nisso e suas "gramáticas" fílmicas justificam o prestígio alcançado pelos dois.
Hector Babenco morreu há uma semana de Kiarostami.
Revi ontem, em DVD, recém chegado às lojas, seu último filme, Meu Amigo Hindu. Não se percebe nele a presença do grande esteta, longe que está de seus melhores filmes. Mesmo assim, depara-se com a sinceridade do artista, não apenas por se tratar de uma obra em que retrata seu sofrimento e algumas de suas maiores alegrias. Mas pela maneira inconfundível com que soube, invariavelmente, fazer escolhas estéticas, tirando de cada plano a potência máxima de que nos falou Wim Wenders.
Caro Álder, excelente sua postagem, principalmente pelas observações da cinematografia de dois grandes cineastas.
ResponderExcluir