terça-feira, 5 de julho de 2016

O cinema perde Kiarostami

A semana começou mal para os amantes da sétima arte. Morreu, na segunda-feira 4, aos 72 anos, Abbas Kiarostami. Para os que não conhecem de perto a obra do cineasta, é oportuno lembrar aqui as palavras de Jean-Luc Godard sobre ele: "O cinema começa com D.W. Griffith e termina com Kiarostami".
Integrante da geração dos anos 80, aquela que tornou o cinema do Irã admirado no Ocidente, inclusive no Brasil, gerando um tipo de modismo que perderia vitalidade no final do século, Kiarostami rapidamente passaria a ocupar uma posição de realce entre os seus conterrâneos, ladeado por realizadores talentosos como Makhmalbaf e Jafar Panahi. Esta a razão por que continuou reunindo em torno de si fãs incondicionais (entre os quais me coloco), para os quais sua produção continuaria avaliada, com justiça, como original e extremamente exigente do ponto de vista estético, em que pese a simplicidade de meios que perpassa toda a sua cinematografia e que a caracteriza, para muitos, como minimalista.
O certo é que Abbas Kiarostami, pela forma como escreve e dirige a maioria de seus filmes, tornou-se um nome obrigatório entre os cinéfilos do mundo inteiro, quer pela beleza com que trabalha a sua linguagem assumidamente não narrativa (pelo menos em termos convencionais) e um forte componente documental, equilibrando-se sobre o delicado fio que separa ficção e realidade. Nada, contudo, que empane a identidade autoral que é mesmo o traço inconfundível de tudo o que fez em termos cinematográficos desde Gosto de Cereja, filme com que venceu a Palma de Ouro em 1997, até Cópia Fiel, 2010, em que abandona o ritmo lento dos títulos iranianos em favor do que este colunista, em ensaio publicado, defende como uma alegoria platônica sobre os limites entre vida e ficção.
Não é muito lembrar, todavia, que Kiarostami reedita com sua filmografia, sem copiá-los, aspectos estéticos remanescentes do neorrealismo italiano, guardando em parte significativa do que realizou uma visível influência de Roberto Rossellini, nomeadamente quando se toma como referência o impagável Viagem à Itália, 1954.
Tirando leite de pedra, como só aos gênios é dado fazer, Kiarostami pontua sua filmografia de um despojamento que a princípio pode ser mal compreendido, não raro levando a julgamentos pouco condizentes com aquilo que lhe é mesmo essencial, a sofisticação rarefeita, sutil, mas invariavelmente presente na elegância do estilo e na perfeita percepção do que é indispensável no manuseio da câmera, na sensibilidade com que tece a sua narrativa (quase negando-a), na composição de planos inconfundíveis, como ocorre, por exemplo, no notável O Vento nos Levará, de 1999.
Este despojamento, pois, que em outras palavras evidenciam uma escassez de recursos com que o cineasta iraniano constrói sua narrativa, é que paradoxalmente dá ao conjunto de sua obra uma personalidade que a diferencia da maioria dos realizadores de hoje, ocorrendo-me lembrar a esta altura o nome do mexicano Alejandro González Iñarritu, duas vezes seguidas contemplado com o Oscar de Melhor Diretor.
Com a morte de Abbas Kiarostami, pois, perde o cinema mundial um de seus mais importantes nomes, e uma geração de cinéfilos a maior referência entre os autores não ocidentais, por quem aprendeu a nutrir um tipo de veneração. Estou entre esses.
 
 
 
 

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