quinta-feira, 25 de maio de 2017

Desde os primórdios

Costuma-se identificar como marco de fundação da literatura brasileira A Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita em 1500. O documento, se não tinha a pretensão de ser arte literária, rigorosamente falando, é um texto bem produzido e entraria para a história não apenas como registro de achamento de uma terra desconhecida do Novo Mundo, mas, ao lado disso, como obra curiosa e pontuada de percepções dignas de nota. 

Não bastassem essas percepções, todavia, um detalhe pode ser tomado como indicação dos valores por que viriam a se orientar os descobridores, e, por extensão e em grande escala, os descendentes que viriam a formar o que se convencionou chamar "povo brasileiro". Tomo a liberdade de citar o fragmento em que isso aparece: 

É pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro   ---   o que d'Ela receberei em muita mercê. 

Esclarecendo: ao redigir a famosa carta, uma espécie de relatório sobre o descobrimento, destinado a D. Manuel, Caminha aproveita a oportunidade para formalizar um pedido nada ético em favor do genro. Se o simples fato de utilizar-se de um documento oficial para obter dividendos pessoais já depõe contra o escrivão, a situação tem o seguinte agravante: Jorge Osório cumpria pena na ilha de São Tomé por prática de roubos contra uma igreja e por ter ferido mortalmente um sacerdote em 1496. Tratava-se, portanto, de um criminoso para quem Pero Vaz de Caminha, valendo-se de sua 'proximidade' com a Corte, formaliza um desses pedidos escusos que, para nossa vergonha, será insignificante se comparado aos do Brasil de 517 anos depois. 

O fato, que não raramente é objeto de tentativas de entendimento da formação do caráter nacional brasileiro, a que se soma a irrecusável acusação de que temos parentesco remoto com o que havia de pior entre os portugueses aqui aportados (criminosos, bandidos de toda ordem etc.), volta e meia ressurge como tentativa de explicação para o que, desde sempre, ocorre no Brasil envolvendo, em grande parte, notáveis da nossa elite social, econômica e política. 

É claro que a tese se ressente de fragilidades mil, mesmo aos olhos daqueles que, como eu, não são especialistas na matéria. Deixemos a discussão para os grandes intérpretes do país, intelectuais a quem ainda se deve o que existe de mais significativo na ensaística sociológica empenhada em identificar "quem somos": Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Paulo Prado, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes, Raymundo Faoro, Antônio Cândido, para citar alguns nomes que me ocorrem. 

Quanto a Jorge Osório, o que lhe terá ocorrido?, haverá de indagar o leitor. Pois bem. El-Rei, em princípio, fez vistas grossas ao pedido de Caminha. Este, por sua vez, prosseguiu viagem para Calicute, onde chegaria a 13 de setembro de 1500. Por infelicidade, ladeado por meia centena de conterrâneos, seria assassinado em cruel combate contra pelo menos trezentos árabes e indianos. Uma pena. 

Ah, quase ia esquecendo: comovido com o triste desfecho do seu "honrado" escrivão, D. Manuel resolveu perdoar Jorge Osório e nomeá-lo para um cargo de confiança. Era uma pessoa de "boa índole". Como alguns brasileiros de quinhentos e poucos anos depois.

 

 

 

 

 


 

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