sábado, 13 de maio de 2017

Uma obra ímpar

Faço parte de uma geração de professores de literatura fortemente influenciada por Antônio Cândido. Foi o mais denso e mais original de nossos críticos, e um dos maiores intérpretes do Brasil. Não conheço, rigorosamente, quem, dentre os que se dedicaram às lides literárias nos últimos quarenta anos, em sala de aula ou fora dela, tenha podido contornar Formação da Literatura Brasileira, o clássico em que o renomado estudioso carioca se debruça sobre as produções árcades e românticas em busca de entender (e explicar com rara competência) as origens de uma literatura a que se possa classificar como brasileira.

Reconhecendo o abismo de diferença que separa a literatura brasileira de outras literaturas mais prestigiadas (ele cita com destaque as literaturas francesa, inglesa, italiana e, mesmo, a espanhola), entendendo-se essas diferenças como uma oitava a menos em termos de real importância como construto artístico, Antônio Cândido esmiúça o substrato do que se fez aqui em termos literários até fins do romantismo, por volta de 1880, quando surge entre os escritores brasileiros o nome do Machado de Assis realista, o primeiro dentre os nossos autores digno de figurar entre as maiores expressões mundiais. Mas o faz, embora com coragem para dar à nossa produção o seu verdadeiro tamanho, sem demonstrar o complexo de vira lata de que nos falou Nelson Rodrigues, a propósito da nova falta de coragem e sentimento de inferioridade diante de tudo aquilo que vem de fora.

Ressalte-se aqui o que me parece mais notável no livro em termos de metodologia e senso de análise, o fato de que se trata de uma abordagem criteriosamente apoiada nos textos, sem desprezar, contudo, as contribuições realmente significativas em termos de fortuna crítica e de informação. É, este, pois, o viés que dá a Formação da Literatura Brasileira um sentido jamais ultrapassado por qualquer outro livro do gênero, e que o torna a primeira tentativa exemplarmente bem sucedida de interpretação do caráter nacional brasileiro do ponto de vista cultural e artístico.

Na contramão do que era dominante até sua publicação, em 1975 (e mesmo considerando o que se fez depois), Cândido pensa a nossa formação como um fenômeno consolidado a partir de 1750, antes, pois, dos fatos a que a maioria dos estudiosos atribui o surgimento da nossa identidade cultural, ou seja, a superação do domínio colonial e da dependência econômica. Razão de sobra, portanto, para que tenha sido esta a obra que mais decisivamente norteou a nossa práxis como professores de literatura, a quem devemos a essência de uma percepção menos pessimista da literatura brasileira como expressão da nacionalidade.

Há, nessa postura, quero crer, o anúncio do que viria da pena e da ação de Antônio Cândido nas décadas seguintes à publicação de Formação da Literatura Brasileira, e que gostaria de ressaltar nessa ligeira consideração sobre a obra de um dos maiores brasileiros, cuja morte, na madrugada de sexta-feira 12, abre uma lacuna imensa no cenário da inteligência brasileira: refiro-me à vocação pública e política dos seus escritos, mas, acima de tudo, refiro-me a sua militância como intelectual orgânico (Gramsci), o intelectual que não se permite a indiferença entre o pensamento e a ação. Se seus textos são "textos de intervenção", como aliás se denominou uma das mais felizes coletâneas de seus artigos, organizada por Vinicius Dantas, em dois volumes, sua prática foi decisiva para o amadurecimento das forças ditas de esquerda no país, de que constitui prova a fundação, em 1980, do Partido dos Trabalhadores, por ele e um expressivo número de intelectuais brasileiros.

A morte de Antônio Cândido deixa órfã uma geração de professores, escritores, artistas, militantes políticos que beberam na fonte de suas reservas intelectuais inesgotáveis, felizmente materializadas em obras que constituem o que de melhor se fez no Brasil em crítica literária, para não falar de sua produção no campo da sociologia e do pensamento político, igualmente marcados pela lucidez, sobriedade e elegância estética.

Num país sem memória política como o nosso, em que o passado tenebroso constitui o esteio de uma esperança cega de tantos e tantos cidadãos, entre jovens e velhos, resta-nos lamentar a morte de Antônio Cândido  ---   e aplaudir, de pé, o ensaísmo histórico-social que nos deixou em livros memoráveis.

 


 

Um comentário:

  1. Pertinente temática para o momento.
    Seria, a lembrança do episódio, "um pequeno tratado da genealogia ética e moral da elite politica brasileira?"

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