quarta-feira, 31 de maio de 2017

O cotidiano na arte

Foi tema de obras importantes da MPB, como atestam sucessos de Roberto Carlos e Chico Buarque de Holanda. Do primeiro, lembro algumas passagens de Rotina (O sol ainda não chegou/E o relógio há pouco despertou/Da porta do quarto ainda na penumbra/Eu olho outra vez/Seu corpo adormecido e mal coberto/Quase não me deixa ir/Fecho os olhos, viro as costas/Num esforço eu tenho de sair/A mesma condução, a mesma hora etc.); do segundo, Cotidiano, qualquer amante do cancioneiro popular haverá de lembrar a letra irretocável (Todo dia ela faz tudo sempre igual/Me sacode às seis horas da manhã/Me sorri um sorriso pontual/E me beijo com a boca de hortelã/Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar/E essas coisas que diz toda mulher/Diz que está me esperando pro jantar/E me beija com a boca de café.

Está na poesia de Carlos Drummond de Andrade (Casas entre bananeiras/Mulheres entre laranjeiras/Pomar amor cantar//Um homem vai devagar/Um cachorro vai devagar/Um burro vai devagar/Devagar as janelas olham//Êta vida besta meu Deus.) com os versos antológicos de Cidadezinha Qualquer.

Na prosa de ficção, aparece no último livro de Machado de Assis, Memorial de Aires, não sem receber um tratamento de tal modo terno e puro, sem esquecer das qualidades formais do texto, que alguns elegem como a mais tocante despedida da literatura brasileira.

Em Portugal, é tema indireto do romance O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, pois dele decorrem as fantasias de Luísa, a personagem central, que, inconformada com a mesmice de seus dias, envolve-se com o primo que dá nome ao livro, numa história de amor que excede, segundo conhecida crítica de Machado de Assis, os limites do aceitável, empobrecendo o que poderia ser um dos maiores clássicos da literatura mundial. De minha parte, discordo, mas como se contrapor ao Bruxo de Cosme Velho, o nosso maior gênio nas artes?

Quem haverá de esquecer a verdadeira obra-prima que é Madame Bovary, de Gustave Flaubert, onde se torna estopim das andanças adúlteras da protagonista, a quem está reservado um dos finais mais tristes do naturalismo francês? 

Sem deixar em nuvens brancas, claro, o maior dos livros de Tolstoi (Guerra e Paz é mais que um romance), pois da rotina luxuosa mas sem novidades de Anna Kareninina é que surge a figura do sedutor Vronsky, com o mesmo final de Flaubert.

Movimento para o abismo, como dizem os estruturalistas franceses, está, outrossim, na pintura de Velásquez, maravilhosamente examinada por ninguém menos que Michel Foucault, em As Palavras e as Coisas.

Pois é ele, o cotidiano, que perpassa, direta ou indiretamente, os exemplos acima, que sustenta o último filme de Jim Jarmusch, exaltação poética da rotina de um casal na cidade americana de Paterson, que, não de modo acidental, como tentarei mostrar, é o nome do protagonista, exemplarmente interpretado por Adam Driver.

Essa, logo se pode perceber, é apenas uma das muitas rimas que compõem a tessitura dramática de Paterson, insistentemente evidenciada na obsessão da mulher, Laura (Golshifteh Farahai), pelo preto e branco; no amor do marido pelo poeta estadunidense William Carlos Williams, também conhecido por WCW, autor do livro que plasma o filme de Jim Jarmusch  ---   e na aparição recorrente de gêmeos ao longo do filme como uma simbologia explícita do eterno "duplicar-se" das coisas na vida de cada um.

O filme acompanha o casal por uma semana, claramente demarcada pela passagem dos dias com que Jarmusch dividiu suas sequências narrativas. Não há suspense, artifício com que os roteiristas costumam retardar a ação a fim de prender o espectador. Antes pelo contrário, o ritmo é lento, arrastado, emblematicamente pautado pelos planos em câmera alta que enquadra o casal, na cama, no início de cada episódio, e nas sequências com que tem início, também, cada uma das oito partes do filme: vemos Paterson comer sucrilhos sob o olhar sonolento de Marvin, o buldogue de Laura; percorrer o mesmo itinerário até o ônibus, escrever poemas à frente do volante e receber, invariavelmente, do fiscal da empresa em que trabalha, o comando para "rodar as ruas". O restante do filme é marcado por ações repetitivas, trabalhar, voltar para casa, passear com Marvin, beber chope no barzinho em que se depara com as mesmas pessoas etc.

Dito assim, natural, pode-se achar que se trata de mais um filme dito cult, em que nada ocorre, nenhum ponto de fuga dramático, nenhum flashback, nenhuma oscilação rítmica que possa poupar o espectador dos bocejos e dos cochilos por certo inevitáveis. Nada disso. O inevitável é que nos deixemos tragar pela genialidade de Jim Jarmusch, seduzidos pela poética da narrativa e a beleza de um roteiro a um tempo delicado e denso.

Amparado na simplicidade estética de Paterson, pois, Jarmusch foi capaz de tirar leite de pedra (que me desculpem o clichê), construindo um filme "que se" contrapõe ao "que se" tem procurado fazer em termos cinematográficos nesses muitos anos. Dá com isso provas cabais de que cinema, se não é uma arte para intelectuais, como quis Clint Eastwood, é, inegavelmente, uma arte para pessoas sensíveis, atentas à beleza das coisas mais despojadas, da banalidade do cotidiano e dos sentimentos mais comuns.


 

 

 

 

 

 

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