Foi num dos últimos aniversários de mamãe. Eu passava uma temporada na França, para estudos na ENFA, prestigiada escola da cidade de Toulouse, razão por que não pude estar presente. Dias depois, por telefone, contaram-me um fato inusitado ocorrido na festinha em homenagem a Dona Aldé (assim, como a tratávamos na intimidade).
A uma dada, entre comes e bebes em casa de um filho, alguém toma nas mãos um violão e diz, dirigindo-se à aniversariante: "Vou tocar uma música para Dona Alderila!" Ao final do derradeiro acorde, tocada pela beleza da canção, a boa velha curva-se para alguém ao lado e quer saber: "Quem é esse moço, tão delicado?"
Já acometida dos males do envelhecimento adiantado, mamãe não fora capaz de identificar que ali estava Antônio Carlos Gomes Fontenelle Fernandes, ou simplesmente Belchior, uma das mais altas expressões da música popular brasileira, que visitava Iguatu a convite do amigo e contemporâneo da faculdade de medicina, Hildernando Bezerra, genro e primo da aniversariante, então prefeito da cidade.
Ao saber da morte de Belchior, domingo 30, aos 70 anos, recluso numa cidadezinha do extremo Sul do Brasil, foi desse acontecimento, tão simples e tão grandioso, que, ato contínuo, me ocorreu recordar.
Com o passar das horas, na medida em que me chegavam pelo celular dezenas e dezenas de mensagens, textos, filmes com fragmentos de shows memoráveis, fui me entregando a essa sensação de vazio imenso que passou a tomar conta do povo cearense desde as primeiras horas do dia, vazio que se torna gigantesco no momento em que sento diante do computador para escrever a coluna de hoje, às 9:30, quando, segundo li nos jornais, à beira da cova, familiares e amigos íntimos se despedem de Belchior.
Belchior era dos três grandes nomes do Ceará, do chamado Pessoal do Ceará, inequivocamente, o mais denso e mais profundo como letrista, o mais original no trato da linguagem poética, mas não apenas isso.
Nascido de uma 'fornada' incomumente exigente do ponto de vista artístico, Belchior tinha algo da poesia desconcertante de Bob Dylan e da musicalidade elaborada dos Beatles, da telúrica apreensão da realidade regional de Catulo da Paixão Cearense e da universalidade lírica de Luiz Vaz de Camões. Era, pois, um artista completo, cuja perda cobre de sombras uma música popular que vem perdendo, há pelo menos 20 anos, sua identidade e sua força estética.
A atualidade de suas letras é algo impressionante, quando se volta para o conflito de gerações, Como Nossos Pais, ou para a fugacidade do tempo, Velha Roupa Colorida, para os desafios do mundo, Apenas Um Rapaz Latino-Americano, ou atenta para a desestruturação da família, Na Hora do Almoço, ou, ainda, quando fala da frugalidade da paixão, Coração Selvagem, ou mesmo da busca de um tempo perdido, Galos Noites e Quintais, uma obra-prima do cancioneiro popular de que é impossível não citar a segunda estrofe: "Eu era alegre como um rio,/um bicho, um bando de pardais;/Como um galo quando havia.../quando havia galos noites e quintais./Mas veio o tempo e fez comigo/o mal que à força sempre faz./Não sou feliz, mas não sou mudo:/hoje eu canto muito mais". Que dizer de Paralelas? "Em cada luz de mercúrio/vejo a luz do teu olhar? Passas praças, viadutos/nem te lembras de voltar, de voltar, de voltar".
Parece consensual, convenhamos, que já vai longe o tempo da plena produtividade. Corrijo-me: já vai longe o tempo que viu nascer de sua pena e do seu violão o que existe de mais elaborado em termos poéticos e musicais no conjunto do que produziu ao longo de, pelo menos, 40 anos. Parece consensual, insisto, que não se pode comparar, sem perceber o descompasso, o que fez entre inícios e fins dos anos 70, com Mote e Glosa, Alucinação, Na Hora do Almoço e Coração Selvagem, para dar nome aos bois, e Bahiuno, Um Concerto Bárbaro e Autorretrato, nos anos 90, este último uma releitura de seus grandes sucessos, com arranjos e improvisações de tirar o fôlego.
Que pena o sumiço voluntário que se impôs; que pena a vida errática a que se atirou nesses muitos anos, privando-nos de sua voz inconfundível, de sua sabedoria quase filosófica ao lidar com as palavras e construir imagens..., enfim, que pena que tenha se distanciado de nós, seus admiradores incondicionais e fãs confessos --- dessa figura ao mesmo tempo tão excêntrica e tão fascinante!Que pena!
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