sexta-feira, 15 de junho de 2018

Prece do Brasileiro

O Brasil estreia neste domingo 17, contra a Suiça. Mas, na contramão do que já fez história, em lugar do entusiasmo de uma "pátria de chuteiras", na feliz metáfora de Nelson Rodrigues, paira no ar um desânimo que parece tomar conta de todos os brasileiros. E não é, como ocorreu em outras copas do mundo, 1966, por exemplo, pela descrença nas possibilidades concretas da seleção canarinho. Não, que poucas vezes fomos à disputa com um time tão bem estruturado e com tantos grandes valores individuais como agora. A que se deve, então?

O desânimo, estou certo, é reflexo de que, na peia, é verdade, estamos aprendendo a entender como tem funcionado este País, e a sonhar com o essencial em lugar do supérfluo. Ao invés de um troféu (e que ele venha, com milagre ou sem, como quis Drummond), capaz de embotar nossa atenção para o que é fundamental neste instante, o brasileiro dá sinais de, finalmente, ter despertado para o que realmente importa: educação, saúde, condições de vida digna para todos; justiça sem dois pesos e duas medidas, políticos comprometidos com os interesses mais legítimos do povo, tomando a palavra, aqui, pelo que ela é deve traduzir na perspectiva da gigantesca maioria dos filhos desta terra, dos que, desde o golpe de 2016, voltam a engordar revoltantemente os índices de miséria, as estatísticas daqueles que vivem a baixo da linha de pobreza.

E já que citei o poeta de Minas, explico-me por que o fiz.

Às vésperas da Copa do Mundo de 1970, estava o Brasil no México pouco antes da estreia, Carlos Drummond de Andrade escreve e pública Prece do Brasileiro, um poema antológico, cujo substrato temático ironiza a nossa vocação para o sentimentalismo piegas e nossa histórica incapacidade de pensar criticamente a realidade. De não ter, noutras palavras, olhos capazes de enxergar as nossas mazelas, os nossos infortúnios e, que me perdoem a deselegância, as sacanagens que têm feito ao nosso país.

"Meu Deus, / só me lembro de vós para pedir, / mas de qualquer modo é uma lembrança. / Desculpai vosso filho que se veste / de humildade e esperança / e vos suplica: Olhai para o Nordeste / onde há fome, Senhor, e desespero / rodando nas estradas / entre esqueletos de animais"., é como abre o poema Drummond, para prosseguir na prece tresloucada:

"Em Iguatu, Parambu, Baturité, / Tauá / (vogais tão fortes não chegam até vós?) / vede as espectrais / procissões de braços estendidos / assaltos, sobressaltos, armazéns / arrombados e --- o que é pior --- não tinham nada".

E vai o eu-lírico pedindo, pedindo, sem no entanto tirar os olhos de Guadalajara, cidade mexicana em que atuariam as nossas feras:

"Meu coração, agora, tá no México / batendo pelos músculos de Gérson / a unha do Pelé, / a cuca do Zagalo, a calma do Leão / e tudo mais que liga o meu país / a uma bola no campo e uma taça de ouro".

Àquela altura, escrevia o Brasil uma de sua páginas mais aterradoras, em plena Ditadura militar, torturas inomináveis, exílios forçados, corrupção desabrida só ignorada por força do discurso autoritário reinante e pelo temor das ameaças de toda ordem. Mas o Brasil, santa ingenuidade, entrava em campo para enfrentar a então Tchecoslováquia, que venceria com o escore humilhante de 4 a 1, e era isso o que, senso comum, parecia verdadeiramente importar!

Na mais feliz das astúcias poéticas, Drummond refere o ditador, o presidente Médici, com a genialidade do grande poeta:

"Comigo é na macia, no veludo / lã / e, matreiro, rogo, não /ao Senhor Deus dos Exércitos (Deus me livre) / mas ao Deus que Bandeira, com carinho / botou em verso: 'meu Jesus Cristinho'."

Neste domingo, dizia eu, o Brasil entra em campo. Se não vivemos a Ditadura aberta, escancarada, para me valer da expressão do jornalista famoso, contados 48 anos desde a Copa de 70, é que a temos mal disfarçada sob a capa preta de uma Justiça tendenciosa, a sonhar, entre envergonhada e cínica, para a volta aos tempos sombrios, com que, aliás, esteve àquela época comprometida, descaradamente.

Que o Brasil vença a Suiça, que a esmague, se possível, e que isso, por milagre ou sem ele, ao contrário do que o futebol parece ter feito sempre, sirva para abrir nossos olhos às vésperas da escolha com que decidiremos nosso real destino... "Do contrário / ficará a Nação tão malincônica, / tão roubada em seu sonho e seu ardor / que nem sei como feche a minha crônica".

 

 

 

 

 

 

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