Não amo, sem alguma restrição, Recife e Salvador. Um tipo de ingratidão, uma vez que fui sempre muito feliz nas vezes em que estive numa cidade e outra. E não foram poucas. Falta à primeira, a leveza de Fortaleza, à segunda, a elegância de São Paulo, ainda que mal compare. Mas é belo seu centro histórico; irresistível, sua comida. E que Brasil circula pelas ruas, pelos becos do Pelourinho...
João Pessoa e Natal, embora simpáticas e charmosamente provincianas, ainda não marcaram a minha vida sob qualquer aspecto. Uma viagem aqui, outra acolá, mas nenhuma que tenha me ocasionado aquele prazer de estar ali. Maceió, já não digo. Acho a capital alagoana um degrau acima em termos de regozijo, de festividade. As praias de Alagoas são maravilhosas, muito mais que as praias de Natal, que andam na moda por esses tempos em que escrevo minhas memórias.
Belo Horizonte é uma das minhas paixões. Se falta a praia, o elemento natural que pesa muito no meu senso de valoração turística, sobra à capital mineira o encanto da cidade inteligente. Inteligente, este é o adjetivo que se aplica bem a BH, pelo que se respira aqui de cultura. Gosto de Belo Horizonte desde muito antes de conhecê-la, acho que tocado pelos livros de Pedro Nava, o maior dos nossos memorialistas.
Estudei na PUC de Minas, onde fiz mais de uma especialização em literatura brasileira. Além disso, fui a Belo Horizonte inúmeras vezes, algumas delas de passagem para Ouro Preto e outras cidades históricas, época em que fazia estudos sobre o barroco de Minas Gerais. Fiz 'morada' num hotel da Via Contorno, que tinha este nome e fica localizado ali nas proximidades do Felício Roxo, que é um hospital muito conhecido da cidade.
Anos depois, na Escola de Belas Artes da UFMG, fiz o doutorado, mergulhando nas águas profundas do "planeta Bergman". E Minas, para todo o sempre, passou a fazer parte de minha vida em termos intelectuais e artísticos. Terra de Drummond, de Nava, de Affonso Romano de Sant'Anna, de Adélia Prado, de Cyro dos Anjos, de Silviano Santiago... para citar uns poucos.
O mineiro, em que pese o preconceito de ser um povo desconfiado, é extremamente afetivo e sabe receber como poucos no Brasil.
Ademais, a cidade é um importante centro de literatura e teatro. Considero o teatro de Belo Horizonte, o fazer teatral, quero dizer, o melhor do país sem contar o eixo Rio-São Paulo. O grupo Galpão é hoje uma referência obrigatória. Com uma linguagem própria, através da qual se vai de Stanislávski a Brecht, de Tchékhov a Shakespeare, o grupo é sensacional. Por último, vi do Galpão uma colagem sobre Moliére, excepcional, nada que se compare, contudo, ao impacto que me causou a releitura de "Romeu e Julieta", há alguns anos. Puro Shakespeare, em que pese o "disruptivo" da montagem.
Além disso, como se pensa cultura nessa cidade! Os barzinhos de BH são maravilhosos e aqui se pode discutir literatura com a mesma naturalidade com que se discute o clássico Cruzeiro x Atlético de logo mais, no Mineirão.
Dia desses, voltei a BH. A cidade guarda o mesmo encanto, mas suas montanhas se dão a ver desfiguradas, objeto da sanha capitalista. Agora é a Serra do Curral, marco geográfico e cultural da capital mineira, que se dobra ante as ameaças da mineração. Que importa se é tombada pelo IPHAN, se foi um dia referência para a fundação de Belo Horizonte?
"Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te meu Triste Horizonte e derradeiro amor", voltam-me aos tímpanos as palavras de Drummond.
Tempos atrás, enquanto estudava a poética de Carlos Drummond de Andrade, decidi ir a Itabira, cidade em que nascera o poeta. Estava em BH havia alguns dias, pouco menos de um mês, quero crer. Fui.
Itabira do Mato Dentro, como se chamava antes, fica a uns cem quilômetros de Belo Horizonte. É conhecida, quem sabe se por influência do filho ilustre, como a "cidade da poesia". Há nos lugares, em muitos, placas com poemas que assinalam 'a presença' de Drummond ali. Fiquei um dia inteiro em Itabira e visitei lugares interessantes, como o Museu Carlos Drummond de Andrade e o centro cultural que leva seu nome. Entrevistei pessoas que conviveram com o poeta e uma senhora, de quem (imperdoável) esqueço o nome agora, a quem está confiado o legado do poeta na cidade. Foi interessante, mas nada que pudesse acrescentar de muito significativo ao que já sabia sobre o autor pesquisado.
Lembro, contudo, que um tanto emocionado, diante da casa em que nasceu Drummond, não me contive e, de cor, interpretei para a minha companheira, à época, o clássico "Confidência do Itabirano", o desconcertante poema do nosso poeta maior: "Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso, sou triste, orgulhoso: de ferro. / Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas. / E esse alheamento do que na vida é porosidade, / e comunicação. // A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, / vem de Itabira, de suas noites brancas, sem / mulheres e sem horizontes. // E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, / é doce herança itabirana. // De Itabira trouxe prendas diversas que / ora te ofereço. / Esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; / este São Benedito do velho santeiro Alfredo / Duval. / este couro de anta estendido no sofá da sala / de visitas; / este orgulho, esta cabeça baixa… // Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público. / Itabira é apenas uma fotografia na parede. / Mas como dói!
Só então observei, sensibilizado, que rolavam daqueles olhos grandes e lindos, duas lágrimas. Serenamente, tão serenamente como agonizava aquela tarde de janeiro entre montanhas.
*Fragmento do capítulo sobre cidades. Memórias de viagens.