quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Mera coincidência

Convidado a participar de debate sobre Mera coincidência (1997), por um ato de correção intelectual senti-me condicionado a revê-lo. E qual não foi a minha satisfação ao perceber o quanto o belo filme de Barry Levinson guarda irretocável atualidade, quer do ponto de vista dos meios de expressão adotados pelo diretor, quer pelo que representa como uma contundente crítica às práticas inconfessáveis que imperam nas relações entre políticos e mídia, num tipo de conluio recorrente em que, desde tempos remotos, o objetivo é manipular o povo em favor de interesses não menos inconfessáveis. Explico-me.
 
O filme narra um caso fictício muito próximo do que, sabemos, é comum ocorrer não só nos Estados Unidos, país em que está ambientado o filme de Levinson, mas em quase todos os lugares do mundo: a criação de factoides com motivações políticas.
 
No caso, tudo tem início quando um presidente e candidato à reeleição americano é flagrado em prática de abuso sexual contra uma adolescente. A exatos 11 dias da eleição, o fato tem uma repercussão monstruosa e ele começa a despencar nas pesquisas, para o que sua equipe é mobilizada a fim de tentar reverter a situação.
 
É contratado, para tanto, um especialista em campanhas chamado Brean (Robert De Niro), que, por sua vez, decide contratar Stanley Motss (Dustin Hoffman), um produtor de cinema de Hollywood, para realizar uma peça 'cinematográfica' sobre uma suposta guerra dos EUA contra a então pobre e inexpressiva Albânia.
 
O filme é produzido, a imprensa passa a explorar a guerra improvável e o presidente, amparado no apelo nacionalista que a notícia comporta, volta a liderar com margens irreversíveis as pesquisas de intenção de voto.
 
Mas, como é comum em todo ardil, a montagem do espetáculo mostra-se falha, quando a Casa Branca, ávida de resultados, põe os pés pelas mãos e divulga a retirada de suas tropas do território inimigo antes do tempo previsto por Brean (a cena em que Robert De Niro e Dustin Hoffman tomam conhecimento da ação irrefletida do governo é impagável). Que fazer então?
 
Lança-se mão do plano B: na linha do que ocorrera a Ryan, a famosa personagem do filme de Steven Spielberg, um soldado americano teria ficado sob o controle dos albaneses, o que leva o presidente a determinar o seu resgate. Novas trapalhadas à parte, finalmente o presidente é reeleito, mas um detalhe vem se constituir num elemento dramático importante: Stanley Motss não pode usufruir do imenso prestígio conquistado junto à Casa Branca. O que lhe terá ocorrido?
 
O roteiro de Mera coincidência é, como se pode ver, curioso, intrigante, bem construído, na linha do que Barry Levinson fizera antes, nomeadamente com Rain Man, filme com que conquistou o Oscar e o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 1989. Mas o estilo e a originalidade com que manipula os meios de expressão é o que mais impressiona (ou me impressionou, para ser mais exato). Vejamos.
 
Mera coincidência constitui, enquanto estrutura narrativa, um exemplo clássico de metalinguagem, ou seja, sua tessitura realiza-se como num "movimento para o abismo", expressão com que André Gide definiu a sobreposição de narrativas, ou, em termos mais claros, a ocorrência de uma narrativa dentro da qual se desenvolve outra narrativa. Filme dentro do filme.
 
A narrativa de primeiro plano, cujo desenvolvimento conta a história de um escândalo e a necessidade de se criarem factoides capazes de reverter os prejuízos para o envolvido (o presidente candidato à reeleição), alicerça-se sobre a construção de uma outra narrativa: aquela que é confiada a Stanley Motss.
 
As sequências de realização do filme que induzirá ao logro, da produção do roteiro à direção da atriz durante as filmagens, são, neste sentido, emblemáticas, para não falar da presença de operadores de câmera, auxiliares de direção, iluminadores, maquiadores etc., elementos que, ainda mais, tornam explícito o discurso metalinguístico.
 
O fato de determinadas críticas serem realizadas no interior de estruturas de produção restritivas, como ocorre ao filme Mera Coincidência, leve-se em conta o fato de que existem nos Estados Unidos códigos de conduta para os diretores de cinema, por si só justificaria o meu entusiasmo com o filme.
 
Mas Barry Levinson foi muito além. Seu filme, enquanto constructo artístico, é irrepreensível. Os enquadramentos dos atores, em que sobressaem os closes reveladores do ânimo e das emoções das personagens, por exemplo, são estilizados e inovadores, mesmo para um tempo em que tudo parece já ter sido feito em termos cinematográficos. 
 
Ainda assim, é também notável a movimentação de câmera, sua angulação em cada plano, a luz, utilizada à perfeição, bem como a direção de atores, são elementos estéticos que fazem de Mera coincidência um grande filme. O engodo de que são vítimas os eleitores americanos, nessa mise en abyme que é a narrativa dentro da narrativa, parece extrapolar os limites da realização fílmica  --  e servem para mostrar que somos manipuláveis também.

Em tempos de tantas incertezas, sob ameaças de um novo imperialismo norte-americano, guerras e práticas autoritárias que pensávamos definitivamente varridas do cenário geopolítico internacional, rever uma obra como Mera coincidência, de Barry Levinson, é uma experiência que emociona e enriquece, pois que a arte dita convencional, na contramão do que propõem os que professam a sua morte em tempos de IA --- ainda pulsa, viva e resiliente, a denunciar o lado torto da existência. 

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Histórias de plágio (ou não) na música popular brasileira*

Semana que passou escrevi neste espaço sobre "intertextualidade", citação, influência etc., e a prática ilícita da apropriação, cópia, furto, e outros procedimentos ilícitos vulgarmente chamados de plágio. Ao final do texto, pelas limitações de espaço, tão-somente fiz referência ao interessantíssimo livro "Você diz que meu samba é plágio", de Juca Novaes e Rodrigo Mendes, que acabara de ler. Terminava a coluna, por oportuno, com a observação de que voltaria ao tema. Faço-o hoje, reafirmando tratar-se de uma publicação incontornável sobre a matéria polêmica.
Intencionalmente, como os autores deixam evidenciado na Introdução ao livro, o título é feito de um trecho da música "Você não ouviu" (1966), de Chico Buarque de Holanda. De cara, pois, o livro expõe a sua vocação desinteressada, tomando-se o termo no sentido de descontraído, leve, gostoso, ainda que sem jamais abrir mão do rigor informativo. Coisa preciosa no gênero, portanto.
Imagine o que existe de inquietante em se saber que clássicos do cancioneiro popular brasileiro, músicas que nos acompanharam em diferentes fases de nossas vidas, "de repente, não mais que de repente", como está em Vinicius de Moraes, tenham a sua autoria questionada. Mais que isso, que essas músicas sejam apontadas como exemplos de "plágios descarados", bem na linha do que ocorre em casos de artistas da nossa mais assumida admiração, a exemplo de um certo Raimundo Fagner que, com justiça, por seu talento e inquestionável competência artística, figura entre as maiores expressões da Música Popular Brasileira. No mínimo, inquietante, para não dizer estarrecedor.
Entre os mais de 80 pequenos artigos, talhados todos eles em estilo que transita da notícia jornalística para a crônica especializada, com vasta e criteriosa referência às fontes, os autores, também eles compositores e músicos, além de advogados especializados em Direito Autoral, percorrem a história da música brasileira expondo os casos mais notórios de plágios e/ou acusações levianas que macularam ou destruíram reputações artísticas, desde épocas remotas aos dias de hoje.
Nesse sentido, é quase impossível destacar um ou outro desses fatos sem incorrer num tipo de subjetivação, tão numerosos e absolutamente interessantes são todos eles, como o da marchinha "Cidade Maravilhosa", de autoria de André Filho (1906-1974), muitas vezes acusada de plágio de um trecho de "La Bohème, de Puccini.
A polêmica, minuciosamente examinada pelos autores desse belíssimo livro, foi tanta e tão séria, que o vexame a que foi exposto o autor torna-se mais curioso que qualquer conclusão acerca do suposto plágio. Como a pouparem-se de entrar no mérito, o que roubaria do livro o componente prazeroso da leitura, Juca Novaes e Rodrigo Moraes proporcionam ao leitor, antes, uma experiência lúdica, um jogo que ao mesmo tempo deleita e ensina, à maneira de Horácio, poeta da Roma Antiga.
São igualmente sedutores, e delimitados pelo mesmo fio delicado que separa a constatação da injúria, os casos em que estiveram envolvidos nomes lendários da música brasileira, como Mário Lago (1911-2012), autor de "Nada Além" (com Custódio Mesquita), de 1938. Lago foi acusado de cometer o mesmo ilícito em pelo menos duas ou três composições por ele assinadas, sendo "Aurora" (com Roberto Roberti), de 1940, o caso mais relevante: "Se você fosse sincera ô ô ô ô, Aurora/Veja só que bom que era, ô ô ô ô, Aurora".
Que dizer das acusações assacadas contra Chico Buarque ("Januária"), Caetano Veloso ("Marinheiro só"), Roberto Carlos ("Eu disse adeus"), Tom Jobim ("Insensatez"), Vinicius de Moraes ("Samba em prelúdio") ou mesmo o maestro Villa-Lobos? Sobre esses, é preciso frisar, Juca Novaes e Rodrigo Moraes saem em defesa explícita, isentando-os de plágio ou considerando aceitáveis as influências reconhecidas em algumas músicas de enorme sucesso. Tudo isso, a preservar a seriedade do estudo, com a adoção de critérios que sobressaem a eventuais fumaças da mera fofoca ou inconsequentes rumores.
Caso particular, por tratar-se de omissão imperdoável ou apropriação indébita, volto a referir, envolve o compositor cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes, em pelo menos dois gravosos exemplos, ambos no disco de estreia, "Manera Fru Fru Manera", de 1973. Nele, a letra da música "Canteiros", escancaradamente copiada do poema "Marcha", de Cecília Meireles, aparece no disco sem qualquer referência à poeta carioca, bem como a belíssima "Penas do Tiê", indiscutível reescritura de composição do folclorista, compositor e maestro alagoano Hekel Tavares.
No primeiro caso, o artista cearense alega responsabilidade da gravadora, Polygram, por não lançar o encarte ao disco em que apareceria o nome de Cecília Meireles. No segundo, infelizmente, o próprio Fagner retratou-se em carta, abrindo mão dos direitos autorais da música em favor dos filhos de Hekel Tavares. Ainda assim, insinua ignorar a existência prévia da composição supostamente plagiada.
Conclusivamente, retomo o eixo de argumentação da coluna anterior: não fica afastada a hipótese de que Fagner tenha feito uma descuidada citação intertextual. Conta a seu favor o fato de que, no caso de "Canteiros", há uma outra referência poética a autor muito conhecido, o também cearense Belchior, cujos versos de "Hora do Almoço" são reproduzidos, explícita e assumidamente, por Raimundo Fagner.   
 *O título da coluna constitui subtítulo do livro.
 
 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Intertexto: um breve olhar

No auge do Cinema Novo, o cineasta François Truffaut afirmou: "Todos os grandes filmes já foram feitos". Em palavras miúdas, o realizador de "Os Incompreendidos" evidenciava que, à certa altura, nada seria absolutamente original em termos cinematográficos, ou seja, todo e qualquer filme, sob algum aspecto, daria a ver influências recebidas de outros filmes marcantes da história do cinema: a recorrência de um tema, uma perspectiva de análise, um enquadramento, um movimento de câmera, as estratégias narrativas do "texto" cinematográfico, portanto, ecoariam realizações já conhecidas, absorvidas como verdadeiros modelos a serem seguidos.
A história da sétima arte confirmaria as palavras do cineasta francês. Assim, tornou-se comum no cinema o que se convencionou chamar, a partir da semiótica, de intertextualidade*, e filmes se notabilizaram por citar outros filmes, não raro explorando fragmentos de realizações cinematográficas anteriores. Um tipo de reconhecimento autoral, muitas vezes constituindo homenagens memoráveis a autores notáveis, a exemplo de John Ford, Fellini, Kurosawa, Rossellini, Bergman e tantos outros gênios do cinema, cujas obras ficariam gravadas no imaginário do espectador.
Na falta de melhor expressão, passou-se a falar de "filme dentro do filme", como a explicitar a intencionalidade do realizador: exaltar seus mestres, dos quais terá herdado o jeito de fazer cinema, de lançar mão dos recursos de linguagem de uma arte nascida da soma de outras artes, quer na perspectiva da forma, do plano da expressão, quer na perspectiva do conteúdo. Isso, por dever de justiça, jamais seria considerado, pelo menos entre os especialistas ou mesmo do simples cinéfilo mais familiarizado com esta arte fascinante, como plágio, ou seja, imitação ilícita de uma obra pré-existente e protegida pela lei autoral.
A intertextualidade ocorre sempre que um "texto" (no caso, o texto cinematográfico) é citado por outro texto, num tipo de diálogo com textos já existentes. Importante destacar, por oportuno, que esse fenômeno ocorre em relação a diferentes tipos de texto: verbais, não verbais e mistos, a exemplo do cinema. Toma-se o texto aqui, claro, em sentido amplo: um poema, um romance, uma notícia de jornal, uma propaganda, uma tela, uma música etc., são textos, mesmo que estruturados em linguagens distintas.
Na música popular brasileira, por exemplo, o fenômeno se faz presente em grandes clássicos, verdadeiras obras-primas do cancioneiro musical. Caetano Veloso, para ficar num exemplo, reconhecido compositor, letrista e intérprete, nome de inquestionável correção profissional, usa e abusa do recurso: "Você diz a verdade, e a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir". Os versos, belíssimos, da música "Dom de Iludir" reeditam um clássico de Noel Rosa e Vadico: "Pra que mentir, se tu ainda não tens esse dom de saber iludir? Pra que mentir, se tu não tens ainda a malícia de toda mulher?".
Em "Sampa", outro clássico de sua autoria, Caetano Veloso faz referência explícita a "Ronda", de Paulo Vanzolini. Em "Terra", homenageando o conterrâneo Dorival Caymmi, reproduz versos de "Você já foi à Bahia?": "Na sacada dos sobrados, da velha São Salvador, há lembranças de Donzelas do tempo do Imperador. Tudo, tudo, na Bahia faz a gente querer bem. A Bahia tem um jeito...".
São inúmeras as composições em que Caetano Veloso cita versos conhecidos de autores consagrados. Nada mais convincente, nesse sentido, que o estribilho do clássico carnavalesco "Frevo Novo", em que os versos "A praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião", notável adaptação de "A praça é do povo, como o céu é do condor", do poema "O povo no poder", do romântico Castro Alves. Aqui, a revelar a sensibilidade estética de Caetano Veloso, o próprio espírito do poema original é resgatado, numa exaltação festiva do libertário poeta da terceira fase do Romantismo brasileiro, cantado a plenos pulmões nas ruas de Salvador durante o Carnaval.
A propósito, acabo de ler um livro extraordinário sobre o tema: "Você diz que o meu samba é plágio", de Juca Novaes e Rodrigo Moraes, Salvador EDUFBA, 2025. Trata-se de um trabalho incontornável sobre plágio, tema delicadíssimo em tempos de Inteligência Artificial. Recomendo-o com entusiasmo.
E voltarei ao tema depois. 
*São conhecidos, mais vulgarmente, sete tipos de intertextualidade: alusão ou referência, citação, paráfrase, epígrafe, bricolagem, paródia e tradução.
 
 
 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Louvação ao poeta amigo

"O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente", são os versos iniciais do poema Autopsicografia, do poeta português Fernando Pessoa. É com eles que abro a coluna de hoje, singela louvação a Cícero Braz de Almeida.
O meio da semana em Fortaleza foi marcado, no campo da literatura, pelo lançamento do livro "Porta Estreita", de Cícero Braz de Almeida. O local não poderia ter sido melhor, o salão de eventos do novo "Docentes & Decentes", leve-se em conta que o nome do recém-inaugurado restaurante remete a uma história de boemia que lembra, por exemplo, os velhos tempos do "Cais Bar" e do "Estoril", cenários da melhor e mais notável convivência de artistas cearenses.
A exemplo dos dois aclamados epicentros de noites inesquecíveis, o "Docentes & Decentes" traz à memória tempos que entraram na história de nossa cultura popular.
Cenário de grandes festas da literatura, da boa convivência e do repertório musical mais refinado, lá, por certo, Cícero Braz terá gestado em sua alma prolífica muito do que agora publica no seu belíssimo e mais novo trabalho, objeto da entusiástica recepção por parte de estudiosos da literatura, escritores, músicos, cantores, compositores e, o que é mais importante, conforme destacou em seu rápido e comovente depoimento, amigos que Braz conquistou do alto de seu notável carisma como pessoa humana coberta de luz.
Tenho pela arte de Cícero Braz de Almeida uma particular admiração. Trata-se de artista de múltiplas habilidades: letrista, poeta, prosador, instrumentista e intérprete de reconhecido talento, por cujas searas trafega com igual segurança e apurado gosto estético.
Agora, com o livro "Porta Estreita", aposta num arco literário mais exigente (a literatura "livresca" propriamente dita), posto que, no plano do conteúdo, a coletânea reedita temas conhecidos de sua trajetória como compositor e intérprete
É no plano da expressão, portanto, que se pode perceber no livro suas incursões mais elaboradas, o jeito pessoal de construir o poema. Explico melhor: Por ser músico, e dos bons, sua poesia dá a ver um domínio de linguagem musical extremamente sedutor, colocando-se muito acima da dimensão meramente semântica do texto, mesmo quando, de modo consciente, opta por descumprir padrões de versificação tradicionais.
É, portanto, a força musical que sobressai, e o poema derrama-se em melodiosa experiência sonora, sob cuja matéria impera um rigoroso senso de medida, em que pese alguma irregularidade do estilo, revelando o criador cônscio de suas potencialidades e contenções --- estas, próprias daqueles que não se atiram a aventuras enquanto escritores; aquelas, muito maiores e mais frequentes no conjunto de sua produção e de suas inquietações artísticas.
Como já disse em comentário a outro de seus livros, Cícero Braz não é apenas um artista versátil e eclético, desses que surgem vez e outra nos meios literários. Se o artista faz bem tudo o que faz artisticamente falando, a pessoa humana é singular, um tipo de que andam carentes os tempos de hoje.
Isso para não descer a curiosidades, como o fato de ser ele um notável conhecedor da música popular brasileira, capaz de, com sua memória prodigiosa, ao primeiro acorde, para além de identificar a música, dizer quem a compôs, e, não raro, em que circunstâncias o fez.
Sob este aspecto, é aula escutar o que tem sempre a dizer sobre os bastidores da MPB, os encontros e desencontros de grandes nomes do cancioneiro popular, suas impensáveis excentricidades, seus mistérios íntimos mais inconfessáveis, suas intensas e mal resolvidas paixões, suas conquistas e seus fracassos mais comoventes. Aula e prazer sem nome, acrescento.
Numa noite de beleza radiante, para um contingente de boêmios e frequentadores históricos, como a renascer das cinzas, qual fênix, o novo "Docente & Decentes" foi palco de uma festa memorável, e a poesia de Cícero Braz objeto de sensibilizadora aclamação. 
 
 
 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

De glórias e soluços

É vasta a produção de obras literárias que tratam da fugacidade das coisas. De Platão a Foucault, de Jorge Luis Borges a José Saramago, de Vieira a Drummond, passando por autores os mais diversos, a exemplo de Gregório de Matos e Manuel Bandeira a Mário Quintana; de Machado de Assis e Jean-Paul Sartre ou Simone de Beauvoir, escritos imorredouros constituíram para além de páginas de notável beleza e reconhecida profundidade.
Proporcionaram-nos (ou deveriam proporcionar), esses textos, através dos tempos, reflexões que poderiam nos ter tornado seres melhores, menos curvados à fogueira das vaidades tolas e dos sentimentos condenáveis.
Ocorrem-me, enquanto escrevo as primeiras linhas da coluna de hoje, guardados de cor, porque eivados de beleza formal e força conteudística raras, os versos antológicos de Luis Vaz de Camões: "Mudam-se os tempos. Mudam-se as vontades, /muda-se o ser, muda-se a confiança; /todo o mundo é composto de mudanças, /tomando sempre novas qualidades".
O autor, como sabemos, sofreu significativas influências de Petrarca, vate italiano, cuja obra ecoa Platão, que, por sua vez, em essência, e como poucos, racionalizou a transitoriedade da realidade humana.
De Cecília, ao sabor de certeiras lembranças, chegam-me os versos do poema Retrato: "Eu não tinha este rosto de hoje/assim calmo, assim triste, assim magro/nem estes olhos tão vazios/nem o lábio amargo".
A vida, com a rapidez de um sopro, põe por terra grandes palácios, torna feio o que foi beldade, sujo e podre, o que teve brilho e perfume; frágeis e irreconhecíveis, as mãos que torturaram, e asquerosos os dedos com que se apontaram supostos pecadores, eles mesmos conspurcados pela motivação da injúria e da difamação perversa.
Redonda, e girando pelo sem-fim dos dias e das noites, a terra vai compondo seus mistérios, reescrevendo a História, dando voz aos que silenciaram, tolhidos pelo poder da acusação leviana de Moros (Sérgio), Deltans (Dallagnol) e Gabrielas (Hardt), em tenebrosas práticas de lawfare, desavergonhadamente usado como instrumento jurídico de perseguição da mais legítima liderança popular brasileira.
Mas tudo muda, tudo se transforma, cedo ou tarde, a verdade se revela, e, como que por milagre, renascem das cinzas os que pareciam mortos, os humilhados e ofendidos, para galgar as mais merecidas e definitivas glórias.
Semana que vem, o falso herói de Curitiba será julgado pela primeira turma do STF, dentre cuja composição, altivo e tecnicamente infalível, desponta um tal Cristiano Zanin, tantas vezes cerceado, ameaçado pela prepotência de um juiz injusto e movido a ódio, os olhos voltados para o Supremo a que nunca chegará por razão de sua desabrida ganância e indisfarçável desfaçatez.
E o tal Deltan, ex-deputado cassado pela prática de crimes e malfeitos, debaixo de que escuridão tece seus planos diabólicos? Para que público apresenta hoje seus softwares, seus slides ardilosamente desenhados, seus gráficos, seus áudios e vídeos montados para fins espúrios e interesses inconfessáveis?
Quem descobrirá onde se esconde, anônima e desmoralizada, a tal juíza, plagiadora de pareceres, laudos, sentenças?
As tais mudanças de que nos falou Camões.
O ex-presidiário é hoje presidente, aclamado aos quatro cantos do mundo. O ex-presidente é hoje presidiário, afogado em lama, falcatruas e tramoias (abraçado ao desespero), a quem, vez e outra, segundo o filho 2, em entrevista recente, falta ar nos pulmões "por mais de dez segundos", como a imitar, entre soluços, bem na linha do que fez, a asfixia daqueles que agonizavam --- dramaticamente! ---, por falta da vacina que se recusou comprar.

                 
 
    
 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

The Economist: o que o Brasil pode ensinar

A poucos dias do julgamento de Jair Bolsonaro e sua corriola golpista, eis que uma das mais prestigiadas revistas do primeiro mundo traz em sua última edição valiosa matéria de capa sobre a política brasileira e o que, em editorial, considera uma verdadeira lição de democracia que o país dá aos Estados Unidos.
Não é pouco. A The Economist, ao lado de ser, como dissemos, uma publicação importante e extremamente lida (algo em torno de dois milhões entre Europa e Estados Unidos) sob nenhum aspecto pode ser classificada como progressista, pelo menos no sentido político-ideológico. Antes pelo contrário, sua linha editorial sempre esteve alinhada com o liberalismo clássico, favorável ao livre-comércio e aos mecanismos de globalização tradicionais. Destina-se, por isso mesmo, a um público altamente qualificado do ponto de vista intelectual e econômico, executivos influentes e elite financeira dos grandes centros do capitalismo contemporâneo.
Essas informações, faço questão de deixar evidenciado, têm por objetivo afastar a tortuosa ideia de que a extrema direita brasileira esteja sendo objeto de perseguição, a exemplo do que afirma o presidente norte-americano Donald Trump na intenção de justificar o tarifaço aplicado contra exportadores brasileiros.
Já no seu editorial, intitulado "Brasil dá aos Estados Unidos lição de maturidade democrática", a revista diz que o processo de investigação levado a efeito contra o ex-presidente, na contramão do que professa "a esquerda americana" (sic), revela maturidade democrática.
"Os Estados Unidos estão se tornando mais corruptos, protecionistas e autoritários --- com Donald Trump, esta semana, mexendo com o Federal Reserve (Fed) e ameaçando cidades controladas pelos democratas. Em contraste, mesmo com o governo Trump punindo o Brasil por processar Bolsonaro, o próprio país está determinado a salvaguardar e fortalecer sua democracia, diz a revista.
Mais: The Economist rotula Jair Bolsonaro de "Trump dos trópicos", e considera que o ex-presidente e seus aliados deverão ser condenados. Numa percepção que reflete a consistência de sua opinião, acrescenta que o plano contra a democracia brasileira "fracassou por incompetência" e "não por intenção".
Para a prestigiada revista londrina, parte numericamente dominante dos brasileiros, inclusive partidos de cartilhas divergentes, à esquerda e à direita, está convencida de que Bolsonaro significou um grande mal para o país. E conclui asseverando que o Brasil representa "um caso de teste de como os países se recuperam de uma febre populista".
No momento em que o deputado Eduardo Bolsonaro, atormentado pela proximidade do julgamento de seu pai, ameaça expandir suas ideias delirantes para o continente europeu, numa ação que diz ser "o golpe definitivo" contra Alexandre Moraes, a publicação de matéria sobre a conclusão do processo contra Jair Bolsonaro e seus apaniguados, pela The Economist, materializa a opinião internacional acerca do que vem ocorrendo no Brasil hoje.
Não é pouco, reitero. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Pra não dizer que não falei de política*

"A ignorância está na origem das superstições e de todos os outros males da humanidade". Disse-nos Epicuro (341-270 a.C.).
Por WhatsApp, recebo de leitor uma mensagem curiosa: "Leio com profundo interesse seus textos. São bem escritos e exploram temas que despertam a vontade de lê-los com prazer e atenção". Mensagem elegante e elogiosa, como se vê, não fosse o MAS que causa desconforto a qualquer escritor: "... gostaria de saber por que deixou as questões políticas de lado? É mais cômodo?"  A mensagem subliminar é clara: "O que está por trás de sua omissão?" (palavras minhas). Necessário esclarecer ou não, faço-o imbuído dos melhores propósitos, sobretudo em respeito ao referido leitor. Vamos lá.
Ao optar por dar ênfase à questão cultural, proporcionando aos leitores minha humilde contribuição no sentido de despertar e/ou fomentar o interesse pelas artes em suas diferentes linguagens --- cinema, teatro, música e, em especial, a literatura ---, não estou incorrendo em qualquer tipo de omissão, uma vez que são evidentes as minhas posições políticas e ideológicas, mesmo quando me dedico a falar daquilo que, aos olhos de muitos, parece não ter um interesse "prático" ou exercer o que, na falta de melhor expressão, poderia definir aqui como "função social". A Arte, por exemplo.
Querido leitor. Desarmado e inconscientemente omisso (indiferente, digo melhor!), é aquele que ignora a importância da cultura, que desconhece o passado da civilização em que vive, que não tem uma postura crítica do presente, que não vê que a Arte, não sendo o único instrumento de politização das pessoas, é por certo o mais eficiente, pois que seu poder didático é que justifica, para ficar num exemplo, o que fez Paulo Freire em Angicos, associando a seu método de alfabetização elementos da cultura popular nordestina, o teatro, a dança, os folguedos populares e suas manifestações estéticas.
É a falta de cultura de grande parte da população, a que se soma o oportunismo de setores perversos de nossa elite econômica e social, que quase levou o país ao desastre, e que ainda ameaça de forma preocupante a sua soberania, os valores do Estado Democrático de Direito, as liberdades essenciais de nosso povo.
É a falta de cultura que faz com que tantos brasileiros não pensem com sua própria cabeça, que se submetam ao fanatismo religioso mais delirante, que elejam falsos messias e políticos que se vendem como salvadores da Pátria, "mitos" de barro, ancorados em mentiras e desfaçatez.
Brecht estava certo: "Infeliz de um povo que precisa de heróis". É olhar para o passado e ver o que fez Hitler, na Alemanha; o que fez Stalin, na Rússia; o que fez Mussolini, na Itália; o que, nos dias de hoje, faz Trump nos Estados Unidos --- e quer fazer no mundo.
É a falta de cultura, de escolas, de acesso facilitado ao teatro, ao cinema, aos espetáculos artísticos em grande escala, a inexistência de bibliotecas e do hábito de ler, o que leva multidões às praças para pedir a volta da ditadura, e pessoas a bater continências para pneus e entrar em transe diante de Malafaia e outros "malas", filhotes ignaros do fascismo mal disfarçado e mais asqueroso.
Querido leitor. Não existe meio mais eficaz, para que um povo descubra a sua real identidade, que valorizar a cultura, o patrimônio intelectual e artístico de seu país e do mundo, agora muito mais, quando as fronteiras se diluem e a globalização, com as mais desencontradas implicações, é viagem sem volta.
Por isso mesmo, concluo, é que tenho tentado destinar a ex-alunos, professores, e a todos os interessados por cultura, minhas crônicas semanais, despertando-lhes a curiosidade e o desejo de conhecer melhor o que dizem os filmes, os livros, os espetáculos do teatro e da música, a vivenciar a experiência e a emoção estética, a contemplar o belo que "haverá de salvar o mundo".
De uma vez por todas, entenda, a cultura é a mais poderosa e a mais eficaz das armas políticas.
 *O título ecoa composição clássica de Geraldo Vandré.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Pequenos milagres do amor

Amor me move: só por ele eu falo. Dante (1265-1321), Divina Comédia.

Em sua bela autobiografia Viver para contar, Gabriel García Márquez traz em epígrafe uma afirmação bastante curiosa: "A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la."
Prestes a começar um livro de memórias, vacilei, entre empolgado e inseguro. Achava um desafio tentar resgatar da mente já embotada acontecimentos tão distantes, agora que estamos em 2025.
O livro do escritor colombiano, assim, foi decisivo para que eu tivesse o atrevimento de produzir essas minhas memórias. Sem estrutura definida, sem o rigor assente em alguns clássicos do gênero. Não, não. Que saíssem essas recordações em absoluta afinação com a etimologia da palavra, isso me bastava. Do latim re + cordari: trazer de volta ao coração. E que o leitor, se houvesse, percebesse que o livro foi se compondo ao sabor das lembranças acidentais, da pequena chama que se acende na mente e no coração, quando, por exemplo, somos 'tocados' pelo perfume de alguém, pela música que por alguma razão marcou nossa vida, ou por depararmos, sem explicação, com fotos de uma viagem, de um lugar ou de alguém que, um dia, amamos mais do que nos fora dado amar.
Assumo que sou um saudosista, e que tenho uma tendência irrefreável para valorizar o passado, não de forma piegas, fechando os olhos para o caminho que se estende à frente, lamentando o que podia ter feito e não fiz. Nunca. Mas gosto de lembrar passagens, momentos de minha vida, lugares em que estive neste mundo vasto, como quis Drummond, sozinho ou na companhia de pessoas que enriqueceram minha história com a força de suas presenças.
Gosto do gênero. Memórias, biografias, autobiografias, diários. Leio sempre, de Jorge Amado a Rosa Montero, de Joel Silveira a Simone de Beauvoir. Agora, por último, li algumas autobiografias interessantíssimas: As curvas do tempo, de Oscar Niemeyer; O teatro e eu, de Sérgio Brito; Memórias de um intelectual comunista, de Leandro Konder; o extraordinário Meu último suspiro, de Luiz Buñuel, A soma dos dias, de Isabel Allende, e, ainda quentinho, em nova edição, De menino a homem, de Gilberto Freyre.
Acho uma experiência curiosa essa de voltar um pouco no tempo, de revisitar o passado.
Talvez por isso Ouro Preto, e algumas outras cidades do circuito histórico de Minas, estejam entre as viagens inesquecíveis. Entre 1979 e hoje, fui diversas vezes às cidades históricas mineiras, de cujas viagens, era minha intenção, resultaria um trabalho sobre o barroco brasileiro, tomando por base o acervo de Minas Gerais. O tempo passou e pouco escrevi sobre isso, um ou outro artigo, um ensaio numa especialização na PUC, e só. Em meio aos registros, pequenas anotações em agendas e papeis esparsos, dos quais tiro muitas das referências de que se compõem minhas recordações, deparo, a cair de entre as páginas de um livro, com um esboço do que seria um artigo sobre Os profetas de Congonhas do Campo.
Coisa do talvez ou do quem sabe, um sinal sonoro leva-me a abrir o display do celular em que me chega uma mensagem do Saulo, meu filho, a cujo texto se soma uma foto. No adro da Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, sentados à mesma mureta em que fotografei seu pai muitos anos atrás, aparecem, lindos e amados, meus netos Saulo Filho e Luiza.
Coincidências que dispensam explicação. Pequenos milagres do Amor.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Livro de uma vida toda

"Ora, se deu que chegou/(isso faz muito tempo)/no banguê do meu avô/uma negra bonitinha/chamada negra Fulô". JORGE DE LIMA.

Prêmio após prêmio, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz vai se consolidando nos meios acadêmicos brasileiros (e fora deles, destaque-se) como um dos nomes mais importantes do pensamento contemporâneo. Membro da Academia Brasileira de Letras e autora de livros já reconhecidos clássicos e indispensáveis para a compreensão do que se poderia considerar o caráter nacional brasileiro, a autora de "As barbas do imperador" é contemplada agora com o Jabuti Acadêmico, categoria História e Arqueologia, pela publicação de "Imagens da branquitude, a presença da ausência" (Companhia das Letras, 2025).
Considerado pela própria autora como fundamental no conjunto de sua vasta e incontornável obra, "livro de uma vida toda e virada cognitiva", como afirmou a este colunista, o livro premiado excede aos limites estabelecidos em padrões convencionais da pesquisa no campo da investigação do sistema de privilégios materiais e simbólicos que permeia a formação de uma sociedade marcada por imensas contradições. É que Lilia Schwarcz, em nova chave, aprofunda o que em livros anteriores, em artigos e conferências ministradas nos últimos anos, pode-se definir como análise e interpretação de parte expressiva do acervo iconográfico brasileiro (imagens, gravuras, fotos e outras representações visuais) através do qual se construíram, no que toca à questão racial, nossa história e nosso imaginário. 
É fato, sob este aspecto, que, à Lilia Schwarcz, desde os primeiros livros, os significados ocultos, o significante "invisível" de nossa produção iconográfica, sempre despertaram um grande interesse, a exemplo do que se pode perceber, por outros ângulos e métodos de análise, no seminal "O sol do Brasil" (Companhia das Letras, 2008), livro no qual se debruça sobre a figura de Nicolas-Antoine Taunay e outros artistas franceses no Rio de Janeiro no início do Oitocentos.
Nesse livro, cabe ressaltar, verdadeiro exemplo de como se deve escrever a história da cultura, nas palavras de Alberto da Costa e Silva, a presença dos escravos em meio a paisagem da cidade e nos registros iconográficos constituiria um capítulo à parte, como a declarar o inegociável compromisso da historiadora no debate sobre a questão racial no Brasil a partir de então.
Reportando-se à importância desse livro notável, acrescento, Alberto da Costa e Silva ("Meu pai intelectual", afirma Lilia Schwarcz), em texto de apresentação, "O sol do Brasil" configura um tipo de ensaio de iconologia que nos remete Erwin Panofsky  e seu clássico absoluto "Significação nas Artes Visuais". 
O certo é que "Imagens da branquitude, a presença da ausência", se ecoa vozes estéticas presentes em livros anteriores de Lilia Schwarcz, o faz por outro viés, com outra pegada e senso de análise inequivocamente mais apurado do ponto de vista metodológico. Não que o livro, vale evidenciar, mesmo por esta perspectiva, fuja àquilo que é uma das marcas mais pessoais da autora: o cuidado no tratamento da linguagem, o uso atento do léxico e, mais que qualquer outra coisa, a habilidade na escolha de estratégias narrativas, a elegância com que Lilia Schwarcz trata a palavra a fim de escrever história como quem escreve poesia, em que pese a função da linguagem com que tece sua narrativa a um só tempo referencial e sedutora. 
Para não falar, por óbvio, do embasamento teórico que dá sustentação a esse livro tão valioso. Sob este aspecto, aqui e além, com maior ou menor intensidade, pode-se respirar perfumes de teorias diversas, de Panofsky, já referido, a Barthes; de Didi-Huberman a Susanne Langer ou mesmo Mikel Dufrenne.
Mas há que se pontuar: é o olhar pessoal de Lilia Schwarcz que sobressai, leve e solto, num exercício acadêmico diferenciado, como a romper as barreiras que separam o pensamento científico da atitude estética. 
Por essas e tantas outras razões, "Imagens da branquitude, a presença da ausência", é livro fundamental para quem se dedique ao exame de nossa formação, de como se construíram os laços de conveniência e de cumplicidade inconfessável, de como se reproduziram, sub-repticiamente, os valores das classes dominantes, de como foram assegurados seus privilégios, e, como particular atenção, de como se deu o processo de legitimação do preconceito racial, de gênero e outras formas de discriminação a partir da produção imagética.
Um livro indispensável, insisto. 

 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Para a liberdade e luta*

"Me enterrem com os trotskistas/na cova comum/onde jazem aqueles/que o poder não corrompeu".
A Flip 2025, na linha das homenagens estranhas à tradição canônica desde as últimas edições, tem como figura de proa em sua programação, inaugurada no fim de semana, o poeta Paulo Leminski. A escolha não poderia ser melhor, pois o poeta curitibano é dos poucos escritores brasileiros (Vinicius de Moraes, o melhor exemplo) a transitar com absoluta tranquilidade entre polos distintos do fazer poético, indo do mais inconteste rigor formal à poesia dita popular, para não reiterar a classificação de expoente da "geração mimeógrafo" com que costuma ser identificado.
Mas não se pense que terá sido cômodo para o poeta equilibrar-se entre tendências tão antagônicas, e, por isso mesmo, desprezadas até algum tempo atrás por setores da chamada grande crítica literária no País. Houve um certo preconceito reinante na historiografia e na crítica da literatura brasileira em relação a esses desafiadores dos padrões estabelecidos, dentre os quais, além de Leminski, estariam a merecer o reconhecimento definitivo, fora da bolha mais afeita às transgressões de estilo, nomes como Ana Cristina Cesar (também ela homenageada na Flip do ano passado), Cacaso, Waly Salomão, Torquato Neto e Francisco Alvim.
Se é verdade que, hoje, esses autores ganharam notoriedade, e os dois últimos citados há pouco conquistaram o merecido prestígio, não se pode negar que esse processo se deu num contexto de dramáticas discussões. A evidenciar o que aqui vai dito, lembremos que um dos nomes dados à referida geração, como a revelar o juízo de que se lançou mão durante muito tempo, é o de "poesia marginal", isto é, que se coloca à margem, que foge aos padrões estabelecidos, sem esquecer que a adjetivação é, não raro, destinada a seres delinquentes, aos que cometem crime.
Desvios de rota à parte, é mesmo de deixar exultantes os amantes da melhor literatura brasileira a escolha de Paulo Leminski como homenageado na mais importante feira internacional de literatura no País. Diria mesmo: rompendo as fronteiras definitivas dos julgamentos apressados ou intelectualmente estreitos, o fato dará maior alcance à poesia do principal nome da geração de 70, aquela que, muito mais que os modernistas de 22, descobriu o caminho para chegar ao impensável: o equilíbrio entre o apuro formal de elite e o mais genuíno coloquialismo --- sem artifícios, sem perder de vista a rigidez na construção poemática de feitio clássico, nem a verdadeira razão de ser da Arte como instrumento de comunicação e de alternativa de ação contra os males de um modelo econômico essencialmente perverso.
Demos voz ao poeta: "Acaso é este encontro/entre o tempo e o espaço/mais do que um sonho que eu conto/ou mais um poema que eu faço?".
Num momento em que o mundo se depara com novas formas de autoritarismo, curvando-se às ameaças de um imperador pós-moderno travestido de presidente da maior e mais delinquente das potências ocidentais, a homenagem a Paulo Leminski na Feria Literária Internacional de Paraty 2025 traz a lume, sub-repticiamente, o lado torto dos tempos atuais, e nos faz lembrar que o monstro redivivo é, porque sempre foi, uma ameaça de que jamais estivemos livres em termos econômicos, sociais e políticos.
"De repente/vendi meus filhos/a uma família americana/eles têm carro/eles têm grana/eles têm casa//a grana é bacana/só assim eles podem voltar/e pegar um sol em Copacabana", diz Leminski em "Verdura", exemplarmente bem interpretada por Caetano Veloso no disco "Outras Palavras".
Grandes poetas são grandes visionários, e sua arte é capaz de enxergar o que os olhos pequenos não veem. Ocorrem-me, porque oportunos, os versos de Drummond em "Visão 1944", estando o mundo sob os escombros da Segunda Guerra: "Meus olhos são pequenos para ver/o mundo que se esvai em sujo e sangue/outro mundo que brota/qual nelumbo/ --- mas veem, pasmam, baixam deslumbrados".
Leminski, como vimos, já reportara à rendição imposta à economia e aos interesses satânicos do império norte-americano. É abrir os olhos e ver.
 *Título de um poema de Leminski, do livro "Polanaises".
 

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Embaixo do azul suburbano

Quando, dia desses, escrevi sobre minha temporada em Friburgo, amparando-me em livro de memórias de viagens, um leitor quis saber: "Por que, estando na Suiça, pensava no Brasil?" Faltando-me, no calor da curiosidade alheia, palavras para discorrer de modo talvez mais convincente sobre o porquê, ou, não compreendendo bem as razões por que me formulara tal indagação, preferi ser taxativo: "Porque nunca esqueço de minhas raízes, telúrico que sou!" 
De Fernando Pessoa, ocorrem-me agora os versos antológicos: "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia. / Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia."
É assim que se dá comigo. Viajando por este mundo afora, mesmo diante das belezas mais deslumbrantes, invariavelmente espoca no peito a saudade telúrica, provinciana, da minha aldeia distante. Não raro, na solidão da lembrança, tenho a pueril impressão de que o céu de Iguatu é o mais belo, e suas noites as mais estreladas. Quando me encontro longe, bem longe da 'terrinha', é nela que, inesperadamente, penso, como que para haurir energias e revigorar a minha empolgação com a vida. Penso na força das águas barrentas do meu Jaguaribe, quando, tempo de chuva, há águas barrentas no meu Jaguaribe.
É ali, na vida vidinha da cidade do interior, que estão as minhas raízes, alguns dos grandes amigos e muitas das muitas pessoas que me são indispensáveis. De Iguatu, na linha do que ditou um outro poeta, trouxe comigo esse jeito torto de encarar a vida. De ver poesia em tudo. Por isso, voltam-me os versos do bardo português.
"Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai. E de onde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente. É mais livre e maior o rio da minha aldeia."
Iguatu, quando nasci, a 29 de março de 1956, naturalmente, era uma cidade ainda mais provinciana. Não havia a luz elétrica de Paulo Afonso, mas uma casa de forças, a Casa do Motor, como se dizia então, de que resultava a energia a diesel. Às nove em ponto, depois de três sinais que constavam de cortes rápidos da luz, à maneira das batidas de Molière, dominava a escuridão. Carros, uns dois ou três; poucos médicos, um advogado e nenhum dentista. Luis Barreto, que fazia as vezes de cirurgião, 'arrancava' dentes em fila, usando uma só seringa e o mesmo boticão. Não havia emissora de rádio, muito menos cinema. Minto: havia a Rádio Iracema, e o programa "Lembrei-me de você". O Cine Alvorada, que forjaria o cinéfilo, seria inaugurado pouco depois. Na rua em que nasci, a Rua do Fogo, aparado por uma parteira, os homens trafegavam em suas montarias, o que deixava o chão de paralelepípedo literalmente emporcalhado. E dos ficus-benjamins, caiam-me nos olhos, ardendo como pimenta braba, os lacerdinhas, como eram apelidados uns pequeninos insetos provenientes da Ásia.
Meu pai, que trabalhara com Zé Bezerra, no armazém poeticamente chamado de Escondidinho, teria em casa, mais tarde, ao redor dos meus sete, oito anos, um pequeno comércio, a "bodega de Deusdedith", onde se vendia um pouco de quase tudo, falando do estritamente necessário para abastecer uma despensa. Além dos enlatados, bolachas, queijo, feijão, arroz, açúcar etc., reservara um espaço para vender bebidas. Ali, sobremaneira aos sábados, reuniam-se quinze, vinte pessoas, num espaço que, confortavelmente, comportaria seis. Quando um ou outro se excedia, o que não era raro acontecer, e a embriaguez tornava frouxa a língua, na mansidão de um frei beneditino, meu pai se aproximava, e, pegando delicadamente no braço do bebum, apontava o caminho da porta. Se o indivíduo insistia em rejeitar o convite, a mão doce de meu pai ia aumentando a pressão na proporção exata da intransigência do importuno freguês. Uma vez, apenas, vi a coisa querer esquentar, mas logo a turma do "deixa-disso" chegou para aquietar. Na pequenez dos seus 1,60 m, e manso como um cordeiro, a figura de meu pai agigantava-se diante do desacato de quem quer que fosse. A índole, pacífica; a coragem, vez e outra, não.
Iguatu, tal qual a Penny Lane de Paul McCartney, numa canção que faria sucesso na minha adolescência, […] "está nos meus ouvidos e nos meus olhos, / lá embaixo do céu azul suburbano."



quinta-feira, 17 de julho de 2025

O canto de sereia das estradas*

"Fortíssimos consórcios, eu desejo/Há muito já de andar terras estranhas,/Por ver mais águas que do Douro e Tejo./Várias gentes e leis e várias manhas.", está n'Os Lusíadas, de Camões. Nos ensandecidos das estradas, nos amantes dos mais distantes rincões.
Quem costuma viajar de carro por certo terá reparado: é comum depararmos com viandantes solitários pelas estradas. São seres esgueiriços, incomunicáveis, ivariavelmente mal vestidos, de pés descalços, cabelos e barbas enormes, verdadeiros anacoretas a trilhar caminhos que parecem levar a destinos ignorados.
A estrada é mesmo a metáfora do imponderável. Está em Dante, "No mezzo del camin de nostra vita me retrovai per uma selva oscura" – ou seja: "No meio do caminho de nossa vida me encontrei em uma selva escura." Está em Drummond, "No meio do caminho tinha uma pedra." Em Bilac: "E paramos de súbito na estrada/Da vida: longos anos, presa à minha/A tua mão, a vista deslumbrada/Tive, da luz que teu olhar continha", e outros incontáveis poetas da literatura ocidental. As conotações são as mais diversas, mas sempre o caminho a sugerir a trajetória de cada homem, o vir-a-ser de nossa existência.
Em Paris, Texas, o clássico de Wim Wenders, vemos Travis caminhando por uma estrada deserta, como Proust, à procura de um tempo perdido. Carlitos faz o mesmo, ingênuo e terno, n'O adorável vagabundo --- para desaparecer na estrada feita "de pó e de esperança."
Acho que todos nós, que amamos viajar, temos um pouco desse componente quixotesco a nos mover ao encontro do improvável. A estrada metaforiza à perfeição essa prazerosa busca do desconhecido, ainda que se tracem projetos prévios e bem pensados. Há sempre a incógnita, o lado imprevisível da linha traçada. O surpreendente.
É assim que me sinto ao viajar. Embora tenha o costume de abrir o mapa sobre a mesa e percorrer com o lápis o trajeto a ser seguido, não raro mudo o destino programado, crio alternativas novas de chegar ao destino imaginado. A viagem torna-se mais curiosa e emocionante, as novidades surpreendentes, os lugares mais bonitos e mais sedutores, pela simples razão de serem novos e impensados os caminhos.
A vida bailarina, o viravoltear das coisas.
As viagens internacionais, por óbvio, as fiz de avião ou navio. São hoje em torno de 25 países --- vinte e três, para ser mais preciso. Mundos estranhos a atravessar minha vida, deslumbrando o menino da província que acalento no mais profundo de mim, pois que, à maneira de Milton e Fernando Brant, "há um menino, há um moleque/morando sempre em meu coração./Toda vez que o adulto balança, ele vem pra me dar a mão".
No écran das retinas, belezas impagáveis; no coração, histórias magníficas, imagens vivas de cidades nascidas dos sonhos de homens impossíveis: São Petersburgo, de Pedro, "O Grande", e de Dostoiévski, intérprete da loucura humana a um só tempo bela e insuportavelmente dolorosa. De Estocolmo, de Bergman e Strindberg, de Paris, de Victor Hugo, Flaubert, Sartre e Zola.
Em pensamento, volto a caminhar à beira do Sena, vendo à distância a Catedral de Notre-Dame, com suas torres imponentes, seu pináculo espetacular, seus portais ornamentados de esculturas e a sedutora rosácea central.
Agora, mais próximo, seus arcobotantes monumentais, na ponta leste da igreja, e, no alto, ameaçadoras, as suas famosas gárgulas. Ocorre-me lembrar Quasímodo, o simpático corcunda criado pelo gênio de Victor Hugo.
A magia das viagens, o canto de sereia das estradas.
*Do livro "Memória de viagens".


quinta-feira, 10 de julho de 2025

Belo país, outro mundo

Tomo nas mãos, e abro aleatoriamente, minhas "memórias de viagens". Ocorrem-me os versos de Imre Madách (1823-1864), em A Tragédia do Homem: "O que aqui é verdade sempiterna,/em outros mundos talvez seja absurdo,/onde o normal talvez seja o impossível."

Estou em Friburgo, na Suíça. Aqui sou hóspede de Vadinho e Paulinho da Gigi, dois iguatuenses para os quais o mundo se tornara pequeno. É um apartamentinho quarto e banheiro, simplesmente mobiliado com móveis arrebatados da rua. Neste país de bonecas é comum as pessoas abandonarem na calçada peças de sua mobília, sempre que adquirem outras novas. A cama, o armário de roupas, a pequena tevê e o freezer haviam sido adquiridos assim. Recordo que esse fato me deixou estupefato. Lembrei do meu país de tantos brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, para muitos do quais ter em casa estes utensílios era apenas um sonho improvável.
Havia à disposição dos estudantes estrangeiros um belo casarão ali perto. Era conhecido como Centre Libre, ricamente instalado com duas imensas cozinhas, salão de jogos, vários banheiros, biblioteca e equipamentos eletrônicos de última geração. Nas cozinhas, havia grandes armários divididos em pequenos espaços onde os usuários armazenavam açúcar, sal, manteiga, biscoitos e enlatados. Não tinham fechadura, suas portas trancavam ao leve toque de um ímã. Cada pessoa dispunha de um desses espaços e, muitas vezes, pude presenciar estudantes europeus de outros países interromperem o preparo da comida a fim de comprar, por exemplo, sal ou azeite que acabara, e, por esquecimento, não fora reposto. Impressionava-me que nenhum deles se sentisse à vontade para abrir a portinha ao lado e lançar mão daquilo de que estivessem necessitando. Envergonhava-me saber que os meus anfitriões não fizessem o mesmo. Eu não tinha lugar para colocar as mãos ao ver Paulinho abrir as portinhas uma a uma, até encontrar o que procurava para preparar o lanche. Hoje, corre mundo, e faz sucesso com uma empresa de turismo. Foi bom amigo.
A correção do povo suíço, nesse aspecto, é algo realmente impressionante. Certa vez, para citar um exemplo, visitando com um amigo friburguense um ponto turístico da cidade, deparei com uma objetiva de uma máquina fotográfica, pelo visto sofisticada, abandonada sobre uma mureta. Como não houvesse ninguém por perto (se não me engano, por instantes estávamos sós ali), tomei-a nas mãos, a um tempo surpreso e curioso, pelo que fui de imediato repreendido: – "Não toque, o proprietário haverá de voltar à sua procura!"
Aos poucos, no convívio de uma realidade tão diferente daquela a que estamos habituados, foi ficando mais claro para mim o conceito do que seja a educação e do quanto esse valor é importante na vida de um povo. Das minhas impressões, Vadinho discordava, alegando que os bancos suíços constituem o destino de tanto dinheiro roubado mundo afora. Mas, isso são outros quinhentos.
Intrigava-me que os ônibus não tivessem o que no Brasil chamamos 'trocador', aquele sujeito encarregado de receber os tíquetes, os quais são adquiridos em cada ponto com a simples inserção de uma moeda. Assim, não agindo com honestidade, o usuário pode se deslocar gratuitamente, o que via muitos brasileiros fazer.
Nas bancas de revista, que mais adequado seria chamar de pontos de venda de revistas e jornais, posto que não ofertam a imensa variedade das nossas, no Brasil, faz-se o mesmo que aos tíquetes de ônibus, com a diferença de que o acesso aos exemplares é absolutamente livre. Deixa-se a moeda, leva-se o jornal ou a revista. Vadinho e Paulinho, meus anfitriões, estavam sempre em dia com as notícias e os acontecimentos do mundo. Sem custos, é bom lembrar.
Naquele tempo era chocante para os turistas latinos encontrar tantos autosserviços para o que quer que fosse. Quando escrevo estas memórias, felizmente, muitos estão à disposição dos brasileiros em qualquer grande centro. Não vulneráveis quanto os suíços, é importante frisar, mas confiados à honestidade e à retidão de quem deles necessite.
A Suíça é, como disse, uma casa de bonecas. Nenhum país que conheço é tão rico quanto esse em beleza, com suas montanhas cobertas de neve, suas simpáticas estações de esqui, seus chalés de cores vibrantes, suas instituições culturais e suas muitas cidades medievais. Friburgo, a cidade em que estou à altura dessas memórias, é uma delas.
Fundada por volta de 1157, esta encantadora cidade está situada às margens do rio Sarine. Aqui, fala-se indistintamente o alemão ou o francês, mas é esta a língua dominante. Nas universidades, contudo, o alemão e o francês são recorrentes e, em algumas, o italiano, a terceira língua oficial do país. Além do romanche, o dialeto falado na Suíça oriental.
A poucos minutos de Lausanne e Berna, em viagem de trem, a que vou com alguma frequência durante os meses de minha permanência na Suíça, Friburgo destaca-se como atração turística europeia pelo seu centro histórico medieval, totalmente preservado. A sua catedral é exuberantemente bela e sua arquitetura gótica anuncia-se à distância com sua torre de mais de setenta metros.
Os dois meses e meio, três meses, que passo em Friburgo assinalam as menores temperaturas em cinquenta anos. O frio é inclemente e neva com frequência, o que, curiosamente, torna a baixíssima temperatura um pouco mais suportável. Coberta de neve, no entanto, a cidade é ainda mais bonita. Paradisíaca, é razoável dizer.
A Tragédia do Homem, peça de que citei os versos do poeta húngaro, é um drama de cunho filosófico que narra a história da humanidade através dos sonhos de Adão e Eva sob a influência de Lúcifer. De cunho existencial, explora o sentido da vida e a luta do homem por um mundo melhor. Tem um final apocalíptico, nada condizente com o país a que me refiro no texto. Por que, então, me ocorreram seus versos? Ao certo não saberei dizer. Que o leitor busque uma explicação. 




terça-feira, 1 de julho de 2025

Sobre cidades*

Não amo, sem alguma restrição, Recife e Salvador. Um tipo de ingratidão, uma vez que fui sempre muito feliz nas vezes em que estive numa cidade e outra. E não foram poucas. Falta à primeira, a leveza de Fortaleza, à segunda, a elegância de São Paulo, ainda que mal compare. Mas é belo seu centro histórico; irresistível, sua comida. E que Brasil circula pelas ruas, pelos becos do Pelourinho...

João Pessoa e Natal, embora simpáticas e charmosamente provincianas, ainda não marcaram a minha vida sob qualquer aspecto. Uma viagem aqui, outra acolá, mas nenhuma que tenha me ocasionado aquele prazer de estar ali. Maceió, já não digo. Acho a capital alagoana um degrau acima em termos de regozijo, de festividade. As praias de Alagoas são maravilhosas, muito mais que as praias de Natal, que andam na moda por esses tempos em que escrevo minhas memórias.
Belo Horizonte é uma das minhas paixões. Se falta a praia, o elemento natural que pesa muito no meu senso de valoração turística, sobra à capital mineira o encanto da cidade inteligente. Inteligente, este é o adjetivo que se aplica bem a BH, pelo que se respira aqui de cultura. Gosto de Belo Horizonte desde muito antes de conhecê-la, acho que tocado pelos livros de Pedro Nava, o maior dos nossos memorialistas.
Estudei na PUC de Minas, onde fiz mais de uma especialização em literatura brasileira. Além disso, fui a Belo Horizonte inúmeras vezes, algumas delas de passagem para Ouro Preto e outras cidades históricas, época em que fazia estudos sobre o barroco de Minas Gerais. Fiz 'morada' num hotel da Via Contorno, que tinha este nome e fica localizado ali nas proximidades do Felício Roxo, que é um hospital muito conhecido da cidade.
Anos depois, na Escola de Belas Artes da UFMG, fiz o doutorado, mergulhando nas águas profundas do "planeta Bergman". E Minas, para todo o sempre, passou a fazer parte de minha vida em termos intelectuais e artísticos. Terra de Drummond, de Nava, de Affonso Romano de Sant'Anna, de Adélia Prado, de Cyro dos Anjos, de Silviano Santiago... para citar uns poucos.
O mineiro, em que pese o preconceito de ser um povo desconfiado, é extremamente afetivo e sabe receber como poucos no Brasil.
Ademais, a cidade é um importante centro de literatura e teatro. Considero o teatro de Belo Horizonte, o fazer teatral, quero dizer, o melhor do país sem contar o eixo Rio-São Paulo. O grupo Galpão é hoje uma referência obrigatória. Com uma linguagem própria, através da qual se vai de Stanislávski a Brecht, de Tchékhov a Shakespeare, o grupo é sensacional. Por último, vi do Galpão uma colagem sobre Moliére, excepcional, nada que se compare, contudo, ao impacto que me causou a releitura de "Romeu e Julieta", há alguns anos. Puro Shakespeare, em que pese o "disruptivo" da montagem.
Além disso, como se pensa cultura nessa cidade! Os barzinhos de BH são maravilhosos e aqui se pode discutir literatura com a mesma naturalidade com que se discute o clássico Cruzeiro x Atlético de logo mais, no Mineirão.
Dia desses, voltei a BH. A cidade guarda o mesmo encanto, mas suas montanhas se dão a ver desfiguradas, objeto da sanha capitalista. Agora é a Serra do Curral, marco geográfico e cultural da capital mineira, que se dobra ante as ameaças da mineração. Que importa se é tombada pelo IPHAN, se foi um dia referência para a fundação de Belo Horizonte?
"Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te meu Triste Horizonte e derradeiro amor", voltam-me aos tímpanos as palavras de Drummond.  
Tempos atrás, enquanto estudava a poética de Carlos Drummond de Andrade, decidi ir a Itabira, cidade em que nascera o poeta. Estava em BH havia alguns dias, pouco menos de um mês, quero crer. Fui.
Itabira do Mato Dentro, como se chamava antes, fica a uns cem quilômetros de Belo Horizonte. É conhecida, quem sabe se por influência do filho ilustre, como a "cidade da poesia". Há nos lugares, em muitos, placas com poemas que assinalam 'a presença' de Drummond ali. Fiquei um dia inteiro em Itabira e visitei lugares interessantes, como o Museu Carlos Drummond de Andrade e o centro cultural que leva seu nome. Entrevistei pessoas que conviveram com o poeta e uma senhora, de quem (imperdoável) esqueço o nome agora, a quem está confiado o legado do poeta na cidade. Foi interessante, mas nada que pudesse acrescentar de muito significativo ao que já sabia sobre o autor pesquisado.
Lembro, contudo, que um tanto emocionado, diante da casa em que nasceu Drummond, não me contive e, de cor, interpretei para a minha companheira, à época, o clássico "Confidência do Itabirano", o desconcertante poema do nosso poeta maior: "Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso, sou triste, orgulhoso: de ferro. / Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas. / E esse alheamento do que na vida é porosidade, / e comunicação. // A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, / vem de Itabira, de suas noites brancas, sem / mulheres e sem horizontes. // E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, / é doce herança itabirana. // De Itabira trouxe prendas diversas que / ora te ofereço. / Esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; / este São Benedito do velho santeiro Alfredo / Duval. / este couro de anta estendido no sofá da sala / de visitas; / este orgulho, esta cabeça baixa… // Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público. / Itabira é apenas uma fotografia na parede. / Mas como dói!
Só então observei, sensibilizado, que rolavam daqueles olhos grandes e lindos, duas lágrimas. Serenamente, tão serenamente como agonizava aquela tarde de janeiro entre montanhas.
*Fragmento do capítulo sobre cidades. Memórias de viagens.