quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Diálogos sobre a fé

"A graça é algo que acontece ao longo da vida. Chega quando você menos espera. Claro, digo isso como quem nunca enfrentou a guerra, ou a tortura, ou a invasão".
Tenho pela obra de Martin Scorsese a maior admiração. Digo mais: tenho pela figura humana do cineasta ítalo-americano, cuja filmografia assemelha-se à dimensão estética do sueco Ingmar Bergman, não menor carinho intelectual (seja lá o que isso for!). Tentarei me fazer compreender.
A concluir pelo que pude conhecer do artista e do homem, a partir dos filmes que fez, das entrevistas que concedeu e dos textos que escreveu, examinados atentamente por este escriba, quero ressaltar, concluo tratar-se de um exemplo, raro, no contexto da grande arte, em que se pode colocar o homem no mesmo plano de sua obra.
Impressiona-me, o diretor e roteirista, pela genialidade de sua cinematografia, uma das mais belas do ponto de vista formal, e, por certo, de maior densidade de conteúdo.
Conquista-me o homem pela profundidade do seu pensamento, por sua visão de mundo, e, pasmem, pela religiosidade.
E quando falo de religiosidade, não me limito a destacar o caráter superficial com que comumente se usa a palavra, mas no sentido filosófico; como atitude diante do sagrado e da relação humana com o transcendente.
Como Bergman, quem sabe com a mesma verticalidade de sondagem psicológica e a mesma qualidade estética, elevada pela disponibilidade de recursos de linguagem certamente mais amplos e mais potentes no plano da expressão, Martin Scorsese transita pelo território da filosofia da religião a fim de investigar a natureza e os conceitos de Deus e do sagrado, a validade da fé e sua conflituosa interrelação com a racionalidade.
É nessa perspectiva, pois, em que artista e homem se encontram, ambos tratando da religiosidade sem se prender a dogmas que circunscrevam essa manifestação do sagrado aos limites de uma dada religião, mesmo, como se sabe, sendo ele, Martin Scorsese, católico e ligado em reconhecida factualidade aos fundamentos do catolicismo de Roma.
Note-se, por necessidade de maior clareza, que a palavra em sua etimologia se prende ao verbo "religar" (ou reconectar, numa opção lexical mais contemporânea), dando a ver a necessidade humana de reconhecer o fundamento último da existência, ou seja, religando-o à vida para além de suas limitações humanas.
É sob este aspecto que me refiro à figura do artista como homem, num tipo de simplificação que reconheço delicada, para tratar de um dos temas mais caros à filosofia da arte, matéria a que dediquei parte significativa de minha trajetória como professor de disciplinas que tratam da Arte em suas diversas dimensões.
É com entusiasmo, portanto, que acabo de ler (e recomendo enfaticamente) o recém-lançado "Diálogos sobre a fé" (Record, 2025), livro em que mais objetivamente se pode compreender o lado "religioso" de Martin Scorsese a partir de conversas levadas a efeito pelo cineasta com o padre jesuíta, jornalista e ensaísta italiano Antonio Spadaro.
Delicioso em sua textura formal, portanto muito mais que bem escrito, o livro vem a público num momento histórico de incertezas, imensas contradições e espiritualidade de consumo, o que, não bastasse o que representa como reflexão sobre uma das mais poderosas obras artísticas do Cinema, ensejando a percepção de elementos estéticos raramente examinados pela crítica especializada, proporciona, tanto ao estudioso quanto ao leitor comum, uma experiência reveladora --- algo como um lampejo em meio à escuridão.
Numa conversa franca, e ao mesmo tempo profunda sobre arte e fé, o livro explora os mistérios que se escondem no que existe de mais humano em Martin Scorsese, quer na perspectiva do artista inclassificável, quer na perspectiva do homem atravessado por obsessões, dúvidas, culpa, violência e incansável busca de Deus.
Ler este livro maravilhoso (que me perdoem o que existe de abstrato na adjetivação) é uma experiência mais que enriquecedora. É conhecer de mais perto um artista grandioso, que fez de sua arte prodigiosa e bela, um tipo de oração, como a descobrir que a fé é caminho único, incontornável, necessário para sua salvação.
 
 

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A CURVA DA ESTRADA

Para o poeta Fernando Pessoa a morte era como a "curva da estrada". Não o fim, mas uma passagem, um ponto no percurso da vida. Morrer, "apenas não ser mais visto".

Hoje, 26 de novembro, faz 31 anos desde que morreu Roberto Costa. Sobre ele, escrevi em livro de memórias o texto abaixo.

Os primeiros anos de minha vida, dividi-os entre as casas de papai e tio Nelzinho. Não raro, passava meses sem conviver com meus irmãos, por conta de viagens que fazia com o meu 'outro pai e a minha outra mãe', que eram Julieta Barros Costa, ou, simplesmente, Titieta, como a chamava amorosamente, e meu tio.
Cresci sendo educado, parte por meus pais, parte por esses tios maravilhosos, que, assim, naturalmente, passariam a ocupar no meu coração quase o mesmo espaço que meus pais de sangue. Amei-os tão fervorosamente como se fosse dado a alguém o milagre nunca conseguido de se ter dois pais e duas mães, igualmente amáveis e zelosos.
Mas foi a convivência com esse ser humano diferenciado que me causaria as maiores impressões, o jeito alegre de viver, a inteligência privilegiada, a sensibilidade de uma alma superior, a capacidade de lidar com as adversidades sem franzir a testa ou demonstrar qualquer irritabilidade. O sorriso sempre aberto.
Esses e outros incontáveis atributos, estavam ali, à minha frente, constituindo um exemplo a ser seguido, cedo ou tarde.
Com o tempo, na medida em que fui amadurecendo, a minha convivência com Roberto foi se tornando mais íntima, mais frequente. Saíamos juntos, ele, Edilmo e eu, mal começava o dia, até a Varzinha, onde, agrônomos, os dois administravam os algodoais e o rebanho bovino. Ficávamos ali até por volta das dez, onze horas, quando de volta à cidade, acompanhava-os de volta à casa.
Nos finais de semana, ao cair da tarde, ia com esses irmãos siameses (Roberto e Edilmo andavam quase sempre juntos) ao encontro de um grande e invariável grupo de amigos, para um drinque, e jogar conversa fora. Acho que, mais novo e condicionado a conviver com esses homens feitos, por isso mesmo fui amadurecendo precocemente. Participava das conversas, discutia os mesmos assuntos e tinha, guardadas as pequenas diferenças, os mesmos gostos para quase tudo.
Mais tarde, viria a atividade política. Roberto vereador, vice-prefeito, deputado estadual, prefeito, uma liderança leve e destituída dos achaques tão comuns aos políticos em geral, como a hipocrisia, a vocação para prometer e nunca cumprir, a arrogância e a prepotência, ia, passo a passo, constituindo uma referência que eu, sem qualquer esforço para tanto, passava a imitar, num tipo de espelhamento que me fazia crescer como gente. Hoje, quando paro para escrever estas memórias, a imagem de Roberto parece estar aqui, ao alcance de um simples olhar, e, sem esforço, posso ouvir a voz ligeiramente trêmula desse primo querido a quem devo tanto pelo que sou.
É compreensível que, pela visibilidade social e, sobretudo, pelo sucesso na atividade política, Roberto despertasse algum desconforto a muita gente, coisa que a sua morte e o reconhecimento, um tanto tardio, de suas imensas qualidades de homem poriam por terra.
Em vida, aqui e acolá, vez e outra, foi retaliado e objeto da maledicência de uns poucos, incompreendido, injustiçado, sem, contudo, jamais perder a serenidade ou alimentar qualquer sentimento negativo ou revanchista. Um homem bom, superior a qualquer maldade ou inveja de que fosse alvo.
Acima de tudo, porém, Roberto soube granjear amigos como ninguém. E era um líder nato, uma figura humana para a qual, onde quer que estivesse, todos os olhares naturalmente se voltavam. Tinha algo abençoado nos seus gestos mais desinteressados, uma radiação benigna em sua palavra.
Com o passar do tempo, cada vez mais, fico convencido de que Roberto era uma dessas pessoas que vêm ao mundo para cumprir uma missão, para dar com a sua vida um exemplo de complacência permanente, e boa vontade no trato com o próximo, a quem veem como um irmão.
Não bastassem essas qualidades absolutamente necessárias, de natureza íntima do ser humano, Roberto estava invariavelmente bem-humorado e tinha uma presença de espírito desconcertante. Eram alegres os momentos de entretenimento ao seu lado, tinha sempre uma piada nova, uma improvisação brincalhona, uma provocação jocosa com um e outro, um jeito de fazer festa das mínimas coisas.
Na atividade política, onde se notabilizaria pela capacidade de negociação, pela disposição para o diálogo e pela correção de propósitos, foi um visionário e um construtor de sonhos. Para ele, pude testemunhar de perto, nada era maior que o interesse coletivo, o bem-estar do povo. Suas ideias eram radicalmente assentadas na vontade da maioria, na satisfação das aspirações alheias, desde que, para torná-las realidade, jamais tivesse de abrir mão dos seus princípios, dos valores morais por que orientava suas decisões.
Sem dúvida, foi, à larga, um dos melhores prefeitos de Iguatu, em que pese o tempo mínimo de sua administração.
Como vereador e líder de bancada na Câmara, só uma vez me indispus com Roberto. Coisas da atividade política. Fui favorável a uma emenda a um projeto de aumento de salário dos servidores municipais, apresentada por um vereador de oposição, e, considerando a repercussão aos cofres públicos superiores às possibilidades reais, Roberto vetou-a. Deixei a liderança da bancada e 'cruzei' os braços ante os projetos de sua administração. E as matérias do seu interesse começaram a ser derrubadas pela oposição.
Dois ou três meses depois, por volta de onze horas, meia-noite, pouco mais ou menos, Roberto bate à porta de minha casa. Estava com o então vice-prefeito Marcelo Sobreira, exultantes os dois. A primeira pesquisa de opinião, uma novidade à época,  sobre a administração Iguatu acima de tudo, o lema do seu governo, indicava uma aprovação enorme, com números nunca obtidos por qualquer prefeito naquele tempo.
Fomos para a varanda de casa, abri um uísque e varamos a madrugada jogando conversa fora. Acabara aquilo que, em verdade, nunca existira, a suposta inimizade entre nós. Nas sessões seguintes, os projetos de Roberto voltariam a ser aprovados. Havia mais que o meu voto pessoal, que jamais negara ao que fosse bom para a cidade, havia o meu empenho, o discurso relativamente hábil e convincente, o jeito de tratar com os opositores, àquela altura, hoje vejo com clareza, assimilado do próprio convívio com Roberto.
Na noite do sábado, véspera do acidente trágico em que viria a falecer, Roberto veio a ter comigo. Eu jantava com Sulene, minha mulher à época, num restaurante da cidade. Falou-me das visitas que fizera a alguns vereadores. Nutria a vontade de me tornar presidente da Câmera.
Não o fez. Sorrateira e implacável, "A indesejada das gentes"* esperava-o à beira do caminho. 
*A expressão é do poeta Manuel Bandeira, e se refere à Morte.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Pássaro que voa pelo sem-fim dos tempos

Em casa, tendo nas mãos um clássico de Dostoiévski, recebo ligação telefônica do professor Auto Filho: "Vamos tomar um café na Cultura? Quero apresentá-lo ao Osvaldo Araújo. Ele quer você escrevendo para o Segunda Opinião".
Pelas duas, duas e meia da tarde, encontramo-nos no café da livraria. Osvaldo ainda não havia chegado, e Auto, do alto de sua presença marcante de intelectual imenso (que me perdoem a intencionalidade do trocadilho), discorre sobre o projeto do jornal. Fala de Osvaldo Araújo com um carinho em que pude perceber a existência de uma grande amizade. Mais que isso: Pude perceber que havia entre os dois jornalistas uma identidade intelectual que extrapolava os limites do ideológico para ganhar contornos existenciais, se se pode usar a expressão para dizer do que se entende como verdadeiro papel do intelectual numa sociedade marcada por desumanas contradições.
Era compreensível, pois, no espaço de tempo que não saberia agora precisar, que já pudesse nascer ali, antes de conhecê-lo pessoalmente, uma admiração enorme pela figura de Osvaldo Araújo.
Eis que chega, quase pedindo licença para chegar, tamanha a humildade de sua presença, o homem tão esperado. Vinha lento e manso, elegante e doce, como que envolto no halo de luz que rodeia os verdadeiros homens do bem.
Começava ali, entre um cafezinho e outro, uma dessas amizades de que me orgulho, e que pude dimensionar com exatidão nas primeiras horas de segunda-feira 10, quando nos deixou, assim, ao jeito de um menino arteiro, como que numa brincadeira ou truque lançado a "um milhão" de amigos e admiradores, ainda incrédulos de que tenha partido.
Hoje, como em todas as quintas-feiras nos últimos quatro ou cinco anos, sento-me diante do computador para escrever a crônica da semana para o Segunda Opinião. Mas sou tomado por um bloqueio criativo para o qual, por óbvio, não encontro palavra capaz de definir. Não haverá, do outro lado da linha, a figura indizível de Osvaldo Araújo, a quem confiava a publicação do texto e a escolha da imagem que o encimava, diga-se aqui, muito mais que uma simples ilustração, um tipo de "lead visual" a conquistar o interesse do leitor e antecipar as razões de ser da coisa escrita.
Se, a Carlos Drummond de Andrade, foi possível escrever um poema sobre a própria incapacidade de escrevê-lo, pois que "está cá dentro, viva, inquieta", que esta crônica escreva-se por si própria. Ela nasce do vazio, da ausência, da saudade que nos deixou a figura mais que humana de Osvaldo Araújo.
Como escritor, foi único numa certa forma de dizer sobre outros escritores. Mais que um grande resenhista, desses que atuam nas salas de redação das principais editoras, tinha Osvaldo Araújo um senso aguçado de percepção, uma agudeza de espírito, uma capacidade de transitar por entre as linhas do escrito, que fizeram dele um verdadeiro mestre.
Ao comentar questões da economia e da geopolítica, fazia-o com a sensibilidade analítica e elegância de estilo que tornava compreensíveis os temas mais complexos. Nesse sentido, ia fundo ao falar sobre os problemas sociais, e era notável como sabia apontar caminhos e alternativas de ação. De outro lado, no plano da expressão propriamente dita, tornava deliciosos os assuntos mais áridos, trabalhando à perfeição as potencialidades do léxico e os recursos da sintaxe.
Escreveu, por último, um trabalho raro sobre escritores cearenses, em que comenta três dos livros de minha autoria, já resenhados anteriormente por ele em outras publicações. Quando quis lhe agradecer pela generosidade da iniciativa, fazendo-me figurar entre tantos craques que admiro e que tenho como referência, foi taxativo: "Não seja demasiado humilde, pois não o faria se não admirasse sinceramente o que você escreve!"
Calei, pela simples razão de que, em termos de humildade e elegância, pouca gente sabe o que sabia à perfeição Osvaldo Euclides de Araújo.
É, agora, um pássaro que voa, leve e solto, pelo sem-fim dos tempos. 
 
 
       
 
  

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Valorizar as pausas, respeitar o silêncio

Anton Tchekhov (1860-1904), mestre do conto moderno e importante dramaturgo russo, confiara a segunda montagem da peça A Gaivota, clássico de sua autoria, a Constantin Stanislavski (1863-1938). Espetáculo pronto, chega para o diretor e reclama: - "O que você fez, o espetáculo vai ficar esticado, muito maior do que o previsto?", ao que Stanislavski responde: - "Nada, apenas observei as pausas, valorizei o silêncio." 
Que bela lição, não apenas de semiótica teatral. Falo de uma outra lição, que pouca gente aprendeu: observar as pausas, valorizar o silêncio.
Na vida, quase sempre, é assim. A gente não observa as pausas, não valoriza o silêncio. E, no entanto, quanta coisa ruim poderia ser evitado. Quantas feridas abertas a menos, quanto sofrimento...
É que quase nunca percebemos o momento de calar, de ouvir mais o que o outro tem a dizer.
Nos relacionamentos, não raro, acontece de uma palavra desnecessária pôr por terra o que se ergueu com tanto entusiasmo, o que se fez com tanto amor.
Por que disse que beijaria o chão em que eu pisasse, se deveria me matar?,  diz Nina, personagem da peça de Tchekhov, em cena memorável.
Na ânsia de construir, destruímos. Na vontade de fazer valer a nossa vontade, não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio. E o mundo desmorona.

Consta que a primeira montagem de A Gaivota, em 1896, fora um fiasco. De público e de crítica. Uma pena, leve-se em consideração que o texto é maravilhoso, poético, de uma harmonia estética invulgar.
O próprio autor dissera sobre ela: - "[...] uma comédia, três papeis de mulher, seis para homens, quatro atos, uma paisagem (vista para o lago), muitas conversas sobre a literatura, um pouco de ação, um toque de amor."
Mas o público a repudiara. Não foi capaz de perceber o que havia por trás da cenografia. Não se observaram as pausas, não se valorizara o silêncio.
Mas a vida, assim como esconde, mostra, revela, expõe. O tempo é sábio, e, cedo ou tarde, coloca cada coisa em seu devido lugar. O que desagradava, encanta, seduz, conquista. É observar as pausas, respeitar o silêncio. 
Dois anos mais tarde, sob nova direção, A Gaivota, marcaria época no teatro universal. Desde então, uma "gaivota" passou a ser o símbolo do Teatro de Arte de Moscou, uma das mais prestigiadas casas de espetáculo do mundo.
Como se explica que uma mesma peça seja um fracasso hoje, um sucesso estrondoso pouco tempo depois?
 Simples: Stanislavski, que a dirigiu numa segunda montagem, percebera na obra uma economia de voz, de movimento, uma contenção de gestos, como jamais alguém fizera.
Numa palavra: observou as pausas, valorizou o silêncio.
Na vida, como no teatro, a essência das coisas muitas vezes está nas entrelinhas, num gesto que quase não se percebe, numa palavra que não se diz, nos sinais que nunca vemos...
Nas pequenas coisas da vida estão os mais fortes sentimentos, os maiores significados, as maiores aflições. Todavia, quantas vezes não deixamos de fazer, na vida, como Stanislavski, no teatro?
Não observamos as pausas, não valorizamos o silêncio...
 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Tenho uma dor aqui, do lado da pátria

Diante da violenta ação policial nos complexos do Alemão e da Penha, que resultou na execução sumária de mais de uma centena de pessoas, entre as quais muitos adolescentes, a maioria identificados como bandidos, impõe-se ao juízo de muitos a necessidade de que, no combate aos traficantes que assomam país afora, tudo é válido e aceitável, mesmo que ao arrepio da lei e da mais elementar noção do que seja o Estado de Direito.
Prato cheio para as pretensões eleitorais da extrema direita, ávida de retomar o poder e implantar políticas de segurança pública baseadas na convicção de que violência se combate com violência, e, a exemplo do que se viu na terça-feira no Rio de Janeiro, autorização prévia para execuções extrajudiciais que extrapolam até mesmo o Direito de Guerra.
É revoltante, não fosse antes lamentável que se pense assim, num país em que a riqueza é desumanamente concentrada, e no qual as classes dominantes permanecem indiferentes ao caos em termos de segurança pública, contanto que preservados seus privilégios e garantidas as formas muitas vezes inconfessáveis de aumentar sua fortuna.
Há pouco mais de 24 horas do início da operação (um sucesso, nas palavras do governador Cláudio Castro), contam-se 121 mortos. Muitos deles com tiros de fuzil à queima-roupa, pés e mãos amarrados, outros com perfurações de faca e alguns literalmente decapitados.
Na esteira das estarrecedoras imagens exploradas à exaustão pelos principais jornais e tevês brasileiras, em que se veem dezenas de corpos enfileirados numa praça da Penha, pôde-se perceber: eram quase todos negros.
Atacam-se as consequências, ignoram-se as causas, numa lógica de interpretação intencionalmente alheia às relações do tráfico de drogas, entre outras práticas da criminalidade, com as engrenagens perversas da economia, da forma de governar (de que o Rio é tradicionalmente o melhor exemplo) e das instituições públicas, não raro indiretamente envolvidas em práticas de favorecimento de lideranças do PCC e do Comando Vermelho.
E haja oportunismo e desfaçatez, bem na linha do que professam os governadores do Rio, de Minas e de Goiás, os dois últimos já em plena campanha como virtuais candidatos da extrema direita a presidente.
Para essa gente, não importa que comunidades e vidas sejam sacrificadas em nome da "ordem e do progresso", numa alusão freudiana que remete ao lema positivista do pavilhão nacional. A uma e outra, pouco significa que falte o saneamento, escolas, postos de saúde, creches, áreas de esporte e lazer, espaços de convivência, programas de incentivo à arte e à leitura, pois que é menos custoso para o Estado a compra de "caveirões" com que transportar cadáveres --- e a indiferença diante dos esgotos a céu aberto dentro dos quais se misturam a lama podre dos dejetos e o sangue ainda quente das execuções.
Se é procedente a afirmação de que nem todos os problemas de segurança são de cunho social, não há negar que jamais haverá para os mesmos qualquer solução que ignore a desigualdade social no país, das mais alarmantes mesmo na perspectiva de países pobres.
No desfecho da coluna de hoje, cabe uma derradeira informação: a Polícia Civil do Rio de Janeiro acaba de divulgar a lista parcial de 99 mortos na operação da última terça-feira nos complexos do Alemão e da Penha. Desses, nenhum havia sido identificado pelo Ministério Público na investigação em que se baseou a operação. Ou seja: nenhum deles tinha mandado de prisão relacionado a esse processo.
Diante desse quadro de horror e incertezas, ocorrem-me os versos de Cristina Peri Rossi, poeta uruguaia sobre cuja obra escreverei aqui na próxima crônica: "Tenho uma dor aqui/do lado da pátria".
 
  
 
  

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Mera coincidência

Convidado a participar de debate sobre Mera coincidência (1997), por um ato de correção intelectual senti-me condicionado a revê-lo. E qual não foi a minha satisfação ao perceber o quanto o belo filme de Barry Levinson guarda irretocável atualidade, quer do ponto de vista dos meios de expressão adotados pelo diretor, quer pelo que representa como uma contundente crítica às práticas inconfessáveis que imperam nas relações entre políticos e mídia, num tipo de conluio recorrente em que, desde tempos remotos, o objetivo é manipular o povo em favor de interesses não menos inconfessáveis. Explico-me.
 
O filme narra um caso fictício muito próximo do que, sabemos, é comum ocorrer não só nos Estados Unidos, país em que está ambientado o filme de Levinson, mas em quase todos os lugares do mundo: a criação de factoides com motivações políticas.
 
No caso, tudo tem início quando um presidente e candidato à reeleição americano é flagrado em prática de abuso sexual contra uma adolescente. A exatos 11 dias da eleição, o fato tem uma repercussão monstruosa e ele começa a despencar nas pesquisas, para o que sua equipe é mobilizada a fim de tentar reverter a situação.
 
É contratado, para tanto, um especialista em campanhas chamado Brean (Robert De Niro), que, por sua vez, decide contratar Stanley Motss (Dustin Hoffman), um produtor de cinema de Hollywood, para realizar uma peça 'cinematográfica' sobre uma suposta guerra dos EUA contra a então pobre e inexpressiva Albânia.
 
O filme é produzido, a imprensa passa a explorar a guerra improvável e o presidente, amparado no apelo nacionalista que a notícia comporta, volta a liderar com margens irreversíveis as pesquisas de intenção de voto.
 
Mas, como é comum em todo ardil, a montagem do espetáculo mostra-se falha, quando a Casa Branca, ávida de resultados, põe os pés pelas mãos e divulga a retirada de suas tropas do território inimigo antes do tempo previsto por Brean (a cena em que Robert De Niro e Dustin Hoffman tomam conhecimento da ação irrefletida do governo é impagável). Que fazer então?
 
Lança-se mão do plano B: na linha do que ocorrera a Ryan, a famosa personagem do filme de Steven Spielberg, um soldado americano teria ficado sob o controle dos albaneses, o que leva o presidente a determinar o seu resgate. Novas trapalhadas à parte, finalmente o presidente é reeleito, mas um detalhe vem se constituir num elemento dramático importante: Stanley Motss não pode usufruir do imenso prestígio conquistado junto à Casa Branca. O que lhe terá ocorrido?
 
O roteiro de Mera coincidência é, como se pode ver, curioso, intrigante, bem construído, na linha do que Barry Levinson fizera antes, nomeadamente com Rain Man, filme com que conquistou o Oscar e o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 1989. Mas o estilo e a originalidade com que manipula os meios de expressão é o que mais impressiona (ou me impressionou, para ser mais exato). Vejamos.
 
Mera coincidência constitui, enquanto estrutura narrativa, um exemplo clássico de metalinguagem, ou seja, sua tessitura realiza-se como num "movimento para o abismo", expressão com que André Gide definiu a sobreposição de narrativas, ou, em termos mais claros, a ocorrência de uma narrativa dentro da qual se desenvolve outra narrativa. Filme dentro do filme.
 
A narrativa de primeiro plano, cujo desenvolvimento conta a história de um escândalo e a necessidade de se criarem factoides capazes de reverter os prejuízos para o envolvido (o presidente candidato à reeleição), alicerça-se sobre a construção de uma outra narrativa: aquela que é confiada a Stanley Motss.
 
As sequências de realização do filme que induzirá ao logro, da produção do roteiro à direção da atriz durante as filmagens, são, neste sentido, emblemáticas, para não falar da presença de operadores de câmera, auxiliares de direção, iluminadores, maquiadores etc., elementos que, ainda mais, tornam explícito o discurso metalinguístico.
 
O fato de determinadas críticas serem realizadas no interior de estruturas de produção restritivas, como ocorre ao filme Mera Coincidência, leve-se em conta o fato de que existem nos Estados Unidos códigos de conduta para os diretores de cinema, por si só justificaria o meu entusiasmo com o filme.
 
Mas Barry Levinson foi muito além. Seu filme, enquanto constructo artístico, é irrepreensível. Os enquadramentos dos atores, em que sobressaem os closes reveladores do ânimo e das emoções das personagens, por exemplo, são estilizados e inovadores, mesmo para um tempo em que tudo parece já ter sido feito em termos cinematográficos. 
 
Ainda assim, é também notável a movimentação de câmera, sua angulação em cada plano, a luz, utilizada à perfeição, bem como a direção de atores, são elementos estéticos que fazem de Mera coincidência um grande filme. O engodo de que são vítimas os eleitores americanos, nessa mise en abyme que é a narrativa dentro da narrativa, parece extrapolar os limites da realização fílmica  --  e servem para mostrar que somos manipuláveis também.

Em tempos de tantas incertezas, sob ameaças de um novo imperialismo norte-americano, guerras e práticas autoritárias que pensávamos definitivamente varridas do cenário geopolítico internacional, rever uma obra como Mera coincidência, de Barry Levinson, é uma experiência que emociona e enriquece, pois que a arte dita convencional, na contramão do que propõem os que professam a sua morte em tempos de IA --- ainda pulsa, viva e resiliente, a denunciar o lado torto da existência. 

terça-feira, 14 de outubro de 2025

Histórias de plágio (ou não) na música popular brasileira*

Semana que passou escrevi neste espaço sobre "intertextualidade", citação, influência etc., e a prática ilícita da apropriação, cópia, furto, e outros procedimentos ilícitos vulgarmente chamados de plágio. Ao final do texto, pelas limitações de espaço, tão-somente fiz referência ao interessantíssimo livro "Você diz que meu samba é plágio", de Juca Novaes e Rodrigo Mendes, que acabara de ler. Terminava a coluna, por oportuno, com a observação de que voltaria ao tema. Faço-o hoje, reafirmando tratar-se de uma publicação incontornável sobre a matéria polêmica.
Intencionalmente, como os autores deixam evidenciado na Introdução ao livro, o título é feito de um trecho da música "Você não ouviu" (1966), de Chico Buarque de Holanda. De cara, pois, o livro expõe a sua vocação desinteressada, tomando-se o termo no sentido de descontraído, leve, gostoso, ainda que sem jamais abrir mão do rigor informativo. Coisa preciosa no gênero, portanto.
Imagine o que existe de inquietante em se saber que clássicos do cancioneiro popular brasileiro, músicas que nos acompanharam em diferentes fases de nossas vidas, "de repente, não mais que de repente", como está em Vinicius de Moraes, tenham a sua autoria questionada. Mais que isso, que essas músicas sejam apontadas como exemplos de "plágios descarados", bem na linha do que ocorre em casos de artistas da nossa mais assumida admiração, a exemplo de um certo Raimundo Fagner que, com justiça, por seu talento e inquestionável competência artística, figura entre as maiores expressões da Música Popular Brasileira. No mínimo, inquietante, para não dizer estarrecedor.
Entre os mais de 80 pequenos artigos, talhados todos eles em estilo que transita da notícia jornalística para a crônica especializada, com vasta e criteriosa referência às fontes, os autores, também eles compositores e músicos, além de advogados especializados em Direito Autoral, percorrem a história da música brasileira expondo os casos mais notórios de plágios e/ou acusações levianas que macularam ou destruíram reputações artísticas, desde épocas remotas aos dias de hoje.
Nesse sentido, é quase impossível destacar um ou outro desses fatos sem incorrer num tipo de subjetivação, tão numerosos e absolutamente interessantes são todos eles, como o da marchinha "Cidade Maravilhosa", de autoria de André Filho (1906-1974), muitas vezes acusada de plágio de um trecho de "La Bohème, de Puccini.
A polêmica, minuciosamente examinada pelos autores desse belíssimo livro, foi tanta e tão séria, que o vexame a que foi exposto o autor torna-se mais curioso que qualquer conclusão acerca do suposto plágio. Como a pouparem-se de entrar no mérito, o que roubaria do livro o componente prazeroso da leitura, Juca Novaes e Rodrigo Moraes proporcionam ao leitor, antes, uma experiência lúdica, um jogo que ao mesmo tempo deleita e ensina, à maneira de Horácio, poeta da Roma Antiga.
São igualmente sedutores, e delimitados pelo mesmo fio delicado que separa a constatação da injúria, os casos em que estiveram envolvidos nomes lendários da música brasileira, como Mário Lago (1911-2012), autor de "Nada Além" (com Custódio Mesquita), de 1938. Lago foi acusado de cometer o mesmo ilícito em pelo menos duas ou três composições por ele assinadas, sendo "Aurora" (com Roberto Roberti), de 1940, o caso mais relevante: "Se você fosse sincera ô ô ô ô, Aurora/Veja só que bom que era, ô ô ô ô, Aurora".
Que dizer das acusações assacadas contra Chico Buarque ("Januária"), Caetano Veloso ("Marinheiro só"), Roberto Carlos ("Eu disse adeus"), Tom Jobim ("Insensatez"), Vinicius de Moraes ("Samba em prelúdio") ou mesmo o maestro Villa-Lobos? Sobre esses, é preciso frisar, Juca Novaes e Rodrigo Moraes saem em defesa explícita, isentando-os de plágio ou considerando aceitáveis as influências reconhecidas em algumas músicas de enorme sucesso. Tudo isso, a preservar a seriedade do estudo, com a adoção de critérios que sobressaem a eventuais fumaças da mera fofoca ou inconsequentes rumores.
Caso particular, por tratar-se de omissão imperdoável ou apropriação indébita, volto a referir, envolve o compositor cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes, em pelo menos dois gravosos exemplos, ambos no disco de estreia, "Manera Fru Fru Manera", de 1973. Nele, a letra da música "Canteiros", escancaradamente copiada do poema "Marcha", de Cecília Meireles, aparece no disco sem qualquer referência à poeta carioca, bem como a belíssima "Penas do Tiê", indiscutível reescritura de composição do folclorista, compositor e maestro alagoano Hekel Tavares.
No primeiro caso, o artista cearense alega responsabilidade da gravadora, Polygram, por não lançar o encarte ao disco em que apareceria o nome de Cecília Meireles. No segundo, infelizmente, o próprio Fagner retratou-se em carta, abrindo mão dos direitos autorais da música em favor dos filhos de Hekel Tavares. Ainda assim, insinua ignorar a existência prévia da composição supostamente plagiada.
Conclusivamente, retomo o eixo de argumentação da coluna anterior: não fica afastada a hipótese de que Fagner tenha feito uma descuidada citação intertextual. Conta a seu favor o fato de que, no caso de "Canteiros", há uma outra referência poética a autor muito conhecido, o também cearense Belchior, cujos versos de "Hora do Almoço" são reproduzidos, explícita e assumidamente, por Raimundo Fagner.   
 *O título da coluna constitui subtítulo do livro.
 
 

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Intertexto: um breve olhar

No auge do Cinema Novo, o cineasta François Truffaut afirmou: "Todos os grandes filmes já foram feitos". Em palavras miúdas, o realizador de "Os Incompreendidos" evidenciava que, à certa altura, nada seria absolutamente original em termos cinematográficos, ou seja, todo e qualquer filme, sob algum aspecto, daria a ver influências recebidas de outros filmes marcantes da história do cinema: a recorrência de um tema, uma perspectiva de análise, um enquadramento, um movimento de câmera, as estratégias narrativas do "texto" cinematográfico, portanto, ecoariam realizações já conhecidas, absorvidas como verdadeiros modelos a serem seguidos.
A história da sétima arte confirmaria as palavras do cineasta francês. Assim, tornou-se comum no cinema o que se convencionou chamar, a partir da semiótica, de intertextualidade*, e filmes se notabilizaram por citar outros filmes, não raro explorando fragmentos de realizações cinematográficas anteriores. Um tipo de reconhecimento autoral, muitas vezes constituindo homenagens memoráveis a autores notáveis, a exemplo de John Ford, Fellini, Kurosawa, Rossellini, Bergman e tantos outros gênios do cinema, cujas obras ficariam gravadas no imaginário do espectador.
Na falta de melhor expressão, passou-se a falar de "filme dentro do filme", como a explicitar a intencionalidade do realizador: exaltar seus mestres, dos quais terá herdado o jeito de fazer cinema, de lançar mão dos recursos de linguagem de uma arte nascida da soma de outras artes, quer na perspectiva da forma, do plano da expressão, quer na perspectiva do conteúdo. Isso, por dever de justiça, jamais seria considerado, pelo menos entre os especialistas ou mesmo do simples cinéfilo mais familiarizado com esta arte fascinante, como plágio, ou seja, imitação ilícita de uma obra pré-existente e protegida pela lei autoral.
A intertextualidade ocorre sempre que um "texto" (no caso, o texto cinematográfico) é citado por outro texto, num tipo de diálogo com textos já existentes. Importante destacar, por oportuno, que esse fenômeno ocorre em relação a diferentes tipos de texto: verbais, não verbais e mistos, a exemplo do cinema. Toma-se o texto aqui, claro, em sentido amplo: um poema, um romance, uma notícia de jornal, uma propaganda, uma tela, uma música etc., são textos, mesmo que estruturados em linguagens distintas.
Na música popular brasileira, por exemplo, o fenômeno se faz presente em grandes clássicos, verdadeiras obras-primas do cancioneiro musical. Caetano Veloso, para ficar num exemplo, reconhecido compositor, letrista e intérprete, nome de inquestionável correção profissional, usa e abusa do recurso: "Você diz a verdade, e a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir". Os versos, belíssimos, da música "Dom de Iludir" reeditam um clássico de Noel Rosa e Vadico: "Pra que mentir, se tu ainda não tens esse dom de saber iludir? Pra que mentir, se tu não tens ainda a malícia de toda mulher?".
Em "Sampa", outro clássico de sua autoria, Caetano Veloso faz referência explícita a "Ronda", de Paulo Vanzolini. Em "Terra", homenageando o conterrâneo Dorival Caymmi, reproduz versos de "Você já foi à Bahia?": "Na sacada dos sobrados, da velha São Salvador, há lembranças de Donzelas do tempo do Imperador. Tudo, tudo, na Bahia faz a gente querer bem. A Bahia tem um jeito...".
São inúmeras as composições em que Caetano Veloso cita versos conhecidos de autores consagrados. Nada mais convincente, nesse sentido, que o estribilho do clássico carnavalesco "Frevo Novo", em que os versos "A praça Castro Alves é do povo, como o céu é do avião", notável adaptação de "A praça é do povo, como o céu é do condor", do poema "O povo no poder", do romântico Castro Alves. Aqui, a revelar a sensibilidade estética de Caetano Veloso, o próprio espírito do poema original é resgatado, numa exaltação festiva do libertário poeta da terceira fase do Romantismo brasileiro, cantado a plenos pulmões nas ruas de Salvador durante o Carnaval.
A propósito, acabo de ler um livro extraordinário sobre o tema: "Você diz que o meu samba é plágio", de Juca Novaes e Rodrigo Moraes, Salvador EDUFBA, 2025. Trata-se de um trabalho incontornável sobre plágio, tema delicadíssimo em tempos de Inteligência Artificial. Recomendo-o com entusiasmo.
E voltarei ao tema depois. 
*São conhecidos, mais vulgarmente, sete tipos de intertextualidade: alusão ou referência, citação, paráfrase, epígrafe, bricolagem, paródia e tradução.
 
 
 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Louvação ao poeta amigo

"O poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente", são os versos iniciais do poema Autopsicografia, do poeta português Fernando Pessoa. É com eles que abro a coluna de hoje, singela louvação a Cícero Braz de Almeida.
O meio da semana em Fortaleza foi marcado, no campo da literatura, pelo lançamento do livro "Porta Estreita", de Cícero Braz de Almeida. O local não poderia ter sido melhor, o salão de eventos do novo "Docentes & Decentes", leve-se em conta que o nome do recém-inaugurado restaurante remete a uma história de boemia que lembra, por exemplo, os velhos tempos do "Cais Bar" e do "Estoril", cenários da melhor e mais notável convivência de artistas cearenses.
A exemplo dos dois aclamados epicentros de noites inesquecíveis, o "Docentes & Decentes" traz à memória tempos que entraram na história de nossa cultura popular.
Cenário de grandes festas da literatura, da boa convivência e do repertório musical mais refinado, lá, por certo, Cícero Braz terá gestado em sua alma prolífica muito do que agora publica no seu belíssimo e mais novo trabalho, objeto da entusiástica recepção por parte de estudiosos da literatura, escritores, músicos, cantores, compositores e, o que é mais importante, conforme destacou em seu rápido e comovente depoimento, amigos que Braz conquistou do alto de seu notável carisma como pessoa humana coberta de luz.
Tenho pela arte de Cícero Braz de Almeida uma particular admiração. Trata-se de artista de múltiplas habilidades: letrista, poeta, prosador, instrumentista e intérprete de reconhecido talento, por cujas searas trafega com igual segurança e apurado gosto estético.
Agora, com o livro "Porta Estreita", aposta num arco literário mais exigente (a literatura "livresca" propriamente dita), posto que, no plano do conteúdo, a coletânea reedita temas conhecidos de sua trajetória como compositor e intérprete
É no plano da expressão, portanto, que se pode perceber no livro suas incursões mais elaboradas, o jeito pessoal de construir o poema. Explico melhor: Por ser músico, e dos bons, sua poesia dá a ver um domínio de linguagem musical extremamente sedutor, colocando-se muito acima da dimensão meramente semântica do texto, mesmo quando, de modo consciente, opta por descumprir padrões de versificação tradicionais.
É, portanto, a força musical que sobressai, e o poema derrama-se em melodiosa experiência sonora, sob cuja matéria impera um rigoroso senso de medida, em que pese alguma irregularidade do estilo, revelando o criador cônscio de suas potencialidades e contenções --- estas, próprias daqueles que não se atiram a aventuras enquanto escritores; aquelas, muito maiores e mais frequentes no conjunto de sua produção e de suas inquietações artísticas.
Como já disse em comentário a outro de seus livros, Cícero Braz não é apenas um artista versátil e eclético, desses que surgem vez e outra nos meios literários. Se o artista faz bem tudo o que faz artisticamente falando, a pessoa humana é singular, um tipo de que andam carentes os tempos de hoje.
Isso para não descer a curiosidades, como o fato de ser ele um notável conhecedor da música popular brasileira, capaz de, com sua memória prodigiosa, ao primeiro acorde, para além de identificar a música, dizer quem a compôs, e, não raro, em que circunstâncias o fez.
Sob este aspecto, é aula escutar o que tem sempre a dizer sobre os bastidores da MPB, os encontros e desencontros de grandes nomes do cancioneiro popular, suas impensáveis excentricidades, seus mistérios íntimos mais inconfessáveis, suas intensas e mal resolvidas paixões, suas conquistas e seus fracassos mais comoventes. Aula e prazer sem nome, acrescento.
Numa noite de beleza radiante, para um contingente de boêmios e frequentadores históricos, como a renascer das cinzas, qual fênix, o novo "Docente & Decentes" foi palco de uma festa memorável, e a poesia de Cícero Braz objeto de sensibilizadora aclamação. 
 
 
 

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

De glórias e soluços

É vasta a produção de obras literárias que tratam da fugacidade das coisas. De Platão a Foucault, de Jorge Luis Borges a José Saramago, de Vieira a Drummond, passando por autores os mais diversos, a exemplo de Gregório de Matos e Manuel Bandeira a Mário Quintana; de Machado de Assis e Jean-Paul Sartre ou Simone de Beauvoir, escritos imorredouros constituíram para além de páginas de notável beleza e reconhecida profundidade.
Proporcionaram-nos (ou deveriam proporcionar), esses textos, através dos tempos, reflexões que poderiam nos ter tornado seres melhores, menos curvados à fogueira das vaidades tolas e dos sentimentos condenáveis.
Ocorrem-me, enquanto escrevo as primeiras linhas da coluna de hoje, guardados de cor, porque eivados de beleza formal e força conteudística raras, os versos antológicos de Luis Vaz de Camões: "Mudam-se os tempos. Mudam-se as vontades, /muda-se o ser, muda-se a confiança; /todo o mundo é composto de mudanças, /tomando sempre novas qualidades".
O autor, como sabemos, sofreu significativas influências de Petrarca, vate italiano, cuja obra ecoa Platão, que, por sua vez, em essência, e como poucos, racionalizou a transitoriedade da realidade humana.
De Cecília, ao sabor de certeiras lembranças, chegam-me os versos do poema Retrato: "Eu não tinha este rosto de hoje/assim calmo, assim triste, assim magro/nem estes olhos tão vazios/nem o lábio amargo".
A vida, com a rapidez de um sopro, põe por terra grandes palácios, torna feio o que foi beldade, sujo e podre, o que teve brilho e perfume; frágeis e irreconhecíveis, as mãos que torturaram, e asquerosos os dedos com que se apontaram supostos pecadores, eles mesmos conspurcados pela motivação da injúria e da difamação perversa.
Redonda, e girando pelo sem-fim dos dias e das noites, a terra vai compondo seus mistérios, reescrevendo a História, dando voz aos que silenciaram, tolhidos pelo poder da acusação leviana de Moros (Sérgio), Deltans (Dallagnol) e Gabrielas (Hardt), em tenebrosas práticas de lawfare, desavergonhadamente usado como instrumento jurídico de perseguição da mais legítima liderança popular brasileira.
Mas tudo muda, tudo se transforma, cedo ou tarde, a verdade se revela, e, como que por milagre, renascem das cinzas os que pareciam mortos, os humilhados e ofendidos, para galgar as mais merecidas e definitivas glórias.
Semana que vem, o falso herói de Curitiba será julgado pela primeira turma do STF, dentre cuja composição, altivo e tecnicamente infalível, desponta um tal Cristiano Zanin, tantas vezes cerceado, ameaçado pela prepotência de um juiz injusto e movido a ódio, os olhos voltados para o Supremo a que nunca chegará por razão de sua desabrida ganância e indisfarçável desfaçatez.
E o tal Deltan, ex-deputado cassado pela prática de crimes e malfeitos, debaixo de que escuridão tece seus planos diabólicos? Para que público apresenta hoje seus softwares, seus slides ardilosamente desenhados, seus gráficos, seus áudios e vídeos montados para fins espúrios e interesses inconfessáveis?
Quem descobrirá onde se esconde, anônima e desmoralizada, a tal juíza, plagiadora de pareceres, laudos, sentenças?
As tais mudanças de que nos falou Camões.
O ex-presidiário é hoje presidente, aclamado aos quatro cantos do mundo. O ex-presidente é hoje presidiário, afogado em lama, falcatruas e tramoias (abraçado ao desespero), a quem, vez e outra, segundo o filho 2, em entrevista recente, falta ar nos pulmões "por mais de dez segundos", como a imitar, entre soluços, bem na linha do que fez, a asfixia daqueles que agonizavam --- dramaticamente! ---, por falta da vacina que se recusou comprar.

                 
 
    
 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

The Economist: o que o Brasil pode ensinar

A poucos dias do julgamento de Jair Bolsonaro e sua corriola golpista, eis que uma das mais prestigiadas revistas do primeiro mundo traz em sua última edição valiosa matéria de capa sobre a política brasileira e o que, em editorial, considera uma verdadeira lição de democracia que o país dá aos Estados Unidos.
Não é pouco. A The Economist, ao lado de ser, como dissemos, uma publicação importante e extremamente lida (algo em torno de dois milhões entre Europa e Estados Unidos) sob nenhum aspecto pode ser classificada como progressista, pelo menos no sentido político-ideológico. Antes pelo contrário, sua linha editorial sempre esteve alinhada com o liberalismo clássico, favorável ao livre-comércio e aos mecanismos de globalização tradicionais. Destina-se, por isso mesmo, a um público altamente qualificado do ponto de vista intelectual e econômico, executivos influentes e elite financeira dos grandes centros do capitalismo contemporâneo.
Essas informações, faço questão de deixar evidenciado, têm por objetivo afastar a tortuosa ideia de que a extrema direita brasileira esteja sendo objeto de perseguição, a exemplo do que afirma o presidente norte-americano Donald Trump na intenção de justificar o tarifaço aplicado contra exportadores brasileiros.
Já no seu editorial, intitulado "Brasil dá aos Estados Unidos lição de maturidade democrática", a revista diz que o processo de investigação levado a efeito contra o ex-presidente, na contramão do que professa "a esquerda americana" (sic), revela maturidade democrática.
"Os Estados Unidos estão se tornando mais corruptos, protecionistas e autoritários --- com Donald Trump, esta semana, mexendo com o Federal Reserve (Fed) e ameaçando cidades controladas pelos democratas. Em contraste, mesmo com o governo Trump punindo o Brasil por processar Bolsonaro, o próprio país está determinado a salvaguardar e fortalecer sua democracia, diz a revista.
Mais: The Economist rotula Jair Bolsonaro de "Trump dos trópicos", e considera que o ex-presidente e seus aliados deverão ser condenados. Numa percepção que reflete a consistência de sua opinião, acrescenta que o plano contra a democracia brasileira "fracassou por incompetência" e "não por intenção".
Para a prestigiada revista londrina, parte numericamente dominante dos brasileiros, inclusive partidos de cartilhas divergentes, à esquerda e à direita, está convencida de que Bolsonaro significou um grande mal para o país. E conclui asseverando que o Brasil representa "um caso de teste de como os países se recuperam de uma febre populista".
No momento em que o deputado Eduardo Bolsonaro, atormentado pela proximidade do julgamento de seu pai, ameaça expandir suas ideias delirantes para o continente europeu, numa ação que diz ser "o golpe definitivo" contra Alexandre Moraes, a publicação de matéria sobre a conclusão do processo contra Jair Bolsonaro e seus apaniguados, pela The Economist, materializa a opinião internacional acerca do que vem ocorrendo no Brasil hoje.
Não é pouco, reitero. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Pra não dizer que não falei de política*

"A ignorância está na origem das superstições e de todos os outros males da humanidade". Disse-nos Epicuro (341-270 a.C.).
Por WhatsApp, recebo de leitor uma mensagem curiosa: "Leio com profundo interesse seus textos. São bem escritos e exploram temas que despertam a vontade de lê-los com prazer e atenção". Mensagem elegante e elogiosa, como se vê, não fosse o MAS que causa desconforto a qualquer escritor: "... gostaria de saber por que deixou as questões políticas de lado? É mais cômodo?"  A mensagem subliminar é clara: "O que está por trás de sua omissão?" (palavras minhas). Necessário esclarecer ou não, faço-o imbuído dos melhores propósitos, sobretudo em respeito ao referido leitor. Vamos lá.
Ao optar por dar ênfase à questão cultural, proporcionando aos leitores minha humilde contribuição no sentido de despertar e/ou fomentar o interesse pelas artes em suas diferentes linguagens --- cinema, teatro, música e, em especial, a literatura ---, não estou incorrendo em qualquer tipo de omissão, uma vez que são evidentes as minhas posições políticas e ideológicas, mesmo quando me dedico a falar daquilo que, aos olhos de muitos, parece não ter um interesse "prático" ou exercer o que, na falta de melhor expressão, poderia definir aqui como "função social". A Arte, por exemplo.
Querido leitor. Desarmado e inconscientemente omisso (indiferente, digo melhor!), é aquele que ignora a importância da cultura, que desconhece o passado da civilização em que vive, que não tem uma postura crítica do presente, que não vê que a Arte, não sendo o único instrumento de politização das pessoas, é por certo o mais eficiente, pois que seu poder didático é que justifica, para ficar num exemplo, o que fez Paulo Freire em Angicos, associando a seu método de alfabetização elementos da cultura popular nordestina, o teatro, a dança, os folguedos populares e suas manifestações estéticas.
É a falta de cultura de grande parte da população, a que se soma o oportunismo de setores perversos de nossa elite econômica e social, que quase levou o país ao desastre, e que ainda ameaça de forma preocupante a sua soberania, os valores do Estado Democrático de Direito, as liberdades essenciais de nosso povo.
É a falta de cultura que faz com que tantos brasileiros não pensem com sua própria cabeça, que se submetam ao fanatismo religioso mais delirante, que elejam falsos messias e políticos que se vendem como salvadores da Pátria, "mitos" de barro, ancorados em mentiras e desfaçatez.
Brecht estava certo: "Infeliz de um povo que precisa de heróis". É olhar para o passado e ver o que fez Hitler, na Alemanha; o que fez Stalin, na Rússia; o que fez Mussolini, na Itália; o que, nos dias de hoje, faz Trump nos Estados Unidos --- e quer fazer no mundo.
É a falta de cultura, de escolas, de acesso facilitado ao teatro, ao cinema, aos espetáculos artísticos em grande escala, a inexistência de bibliotecas e do hábito de ler, o que leva multidões às praças para pedir a volta da ditadura, e pessoas a bater continências para pneus e entrar em transe diante de Malafaia e outros "malas", filhotes ignaros do fascismo mal disfarçado e mais asqueroso.
Querido leitor. Não existe meio mais eficaz, para que um povo descubra a sua real identidade, que valorizar a cultura, o patrimônio intelectual e artístico de seu país e do mundo, agora muito mais, quando as fronteiras se diluem e a globalização, com as mais desencontradas implicações, é viagem sem volta.
Por isso mesmo, concluo, é que tenho tentado destinar a ex-alunos, professores, e a todos os interessados por cultura, minhas crônicas semanais, despertando-lhes a curiosidade e o desejo de conhecer melhor o que dizem os filmes, os livros, os espetáculos do teatro e da música, a vivenciar a experiência e a emoção estética, a contemplar o belo que "haverá de salvar o mundo".
De uma vez por todas, entenda, a cultura é a mais poderosa e a mais eficaz das armas políticas.
 *O título ecoa composição clássica de Geraldo Vandré.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Pequenos milagres do amor

Amor me move: só por ele eu falo. Dante (1265-1321), Divina Comédia.

Em sua bela autobiografia Viver para contar, Gabriel García Márquez traz em epígrafe uma afirmação bastante curiosa: "A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la."
Prestes a começar um livro de memórias, vacilei, entre empolgado e inseguro. Achava um desafio tentar resgatar da mente já embotada acontecimentos tão distantes, agora que estamos em 2025.
O livro do escritor colombiano, assim, foi decisivo para que eu tivesse o atrevimento de produzir essas minhas memórias. Sem estrutura definida, sem o rigor assente em alguns clássicos do gênero. Não, não. Que saíssem essas recordações em absoluta afinação com a etimologia da palavra, isso me bastava. Do latim re + cordari: trazer de volta ao coração. E que o leitor, se houvesse, percebesse que o livro foi se compondo ao sabor das lembranças acidentais, da pequena chama que se acende na mente e no coração, quando, por exemplo, somos 'tocados' pelo perfume de alguém, pela música que por alguma razão marcou nossa vida, ou por depararmos, sem explicação, com fotos de uma viagem, de um lugar ou de alguém que, um dia, amamos mais do que nos fora dado amar.
Assumo que sou um saudosista, e que tenho uma tendência irrefreável para valorizar o passado, não de forma piegas, fechando os olhos para o caminho que se estende à frente, lamentando o que podia ter feito e não fiz. Nunca. Mas gosto de lembrar passagens, momentos de minha vida, lugares em que estive neste mundo vasto, como quis Drummond, sozinho ou na companhia de pessoas que enriqueceram minha história com a força de suas presenças.
Gosto do gênero. Memórias, biografias, autobiografias, diários. Leio sempre, de Jorge Amado a Rosa Montero, de Joel Silveira a Simone de Beauvoir. Agora, por último, li algumas autobiografias interessantíssimas: As curvas do tempo, de Oscar Niemeyer; O teatro e eu, de Sérgio Brito; Memórias de um intelectual comunista, de Leandro Konder; o extraordinário Meu último suspiro, de Luiz Buñuel, A soma dos dias, de Isabel Allende, e, ainda quentinho, em nova edição, De menino a homem, de Gilberto Freyre.
Acho uma experiência curiosa essa de voltar um pouco no tempo, de revisitar o passado.
Talvez por isso Ouro Preto, e algumas outras cidades do circuito histórico de Minas, estejam entre as viagens inesquecíveis. Entre 1979 e hoje, fui diversas vezes às cidades históricas mineiras, de cujas viagens, era minha intenção, resultaria um trabalho sobre o barroco brasileiro, tomando por base o acervo de Minas Gerais. O tempo passou e pouco escrevi sobre isso, um ou outro artigo, um ensaio numa especialização na PUC, e só. Em meio aos registros, pequenas anotações em agendas e papeis esparsos, dos quais tiro muitas das referências de que se compõem minhas recordações, deparo, a cair de entre as páginas de um livro, com um esboço do que seria um artigo sobre Os profetas de Congonhas do Campo.
Coisa do talvez ou do quem sabe, um sinal sonoro leva-me a abrir o display do celular em que me chega uma mensagem do Saulo, meu filho, a cujo texto se soma uma foto. No adro da Igreja de São Francisco, em Ouro Preto, sentados à mesma mureta em que fotografei seu pai muitos anos atrás, aparecem, lindos e amados, meus netos Saulo Filho e Luiza.
Coincidências que dispensam explicação. Pequenos milagres do Amor.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Livro de uma vida toda

"Ora, se deu que chegou/(isso faz muito tempo)/no banguê do meu avô/uma negra bonitinha/chamada negra Fulô". JORGE DE LIMA.

Prêmio após prêmio, a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz vai se consolidando nos meios acadêmicos brasileiros (e fora deles, destaque-se) como um dos nomes mais importantes do pensamento contemporâneo. Membro da Academia Brasileira de Letras e autora de livros já reconhecidos clássicos e indispensáveis para a compreensão do que se poderia considerar o caráter nacional brasileiro, a autora de "As barbas do imperador" é contemplada agora com o Jabuti Acadêmico, categoria História e Arqueologia, pela publicação de "Imagens da branquitude, a presença da ausência" (Companhia das Letras, 2025).
Considerado pela própria autora como fundamental no conjunto de sua vasta e incontornável obra, "livro de uma vida toda e virada cognitiva", como afirmou a este colunista, o livro premiado excede aos limites estabelecidos em padrões convencionais da pesquisa no campo da investigação do sistema de privilégios materiais e simbólicos que permeia a formação de uma sociedade marcada por imensas contradições. É que Lilia Schwarcz, em nova chave, aprofunda o que em livros anteriores, em artigos e conferências ministradas nos últimos anos, pode-se definir como análise e interpretação de parte expressiva do acervo iconográfico brasileiro (imagens, gravuras, fotos e outras representações visuais) através do qual se construíram, no que toca à questão racial, nossa história e nosso imaginário. 
É fato, sob este aspecto, que, à Lilia Schwarcz, desde os primeiros livros, os significados ocultos, o significante "invisível" de nossa produção iconográfica, sempre despertaram um grande interesse, a exemplo do que se pode perceber, por outros ângulos e métodos de análise, no seminal "O sol do Brasil" (Companhia das Letras, 2008), livro no qual se debruça sobre a figura de Nicolas-Antoine Taunay e outros artistas franceses no Rio de Janeiro no início do Oitocentos.
Nesse livro, cabe ressaltar, verdadeiro exemplo de como se deve escrever a história da cultura, nas palavras de Alberto da Costa e Silva, a presença dos escravos em meio a paisagem da cidade e nos registros iconográficos constituiria um capítulo à parte, como a declarar o inegociável compromisso da historiadora no debate sobre a questão racial no Brasil a partir de então.
Reportando-se à importância desse livro notável, acrescento, Alberto da Costa e Silva ("Meu pai intelectual", afirma Lilia Schwarcz), em texto de apresentação, "O sol do Brasil" configura um tipo de ensaio de iconologia que nos remete Erwin Panofsky  e seu clássico absoluto "Significação nas Artes Visuais". 
O certo é que "Imagens da branquitude, a presença da ausência", se ecoa vozes estéticas presentes em livros anteriores de Lilia Schwarcz, o faz por outro viés, com outra pegada e senso de análise inequivocamente mais apurado do ponto de vista metodológico. Não que o livro, vale evidenciar, mesmo por esta perspectiva, fuja àquilo que é uma das marcas mais pessoais da autora: o cuidado no tratamento da linguagem, o uso atento do léxico e, mais que qualquer outra coisa, a habilidade na escolha de estratégias narrativas, a elegância com que Lilia Schwarcz trata a palavra a fim de escrever história como quem escreve poesia, em que pese a função da linguagem com que tece sua narrativa a um só tempo referencial e sedutora. 
Para não falar, por óbvio, do embasamento teórico que dá sustentação a esse livro tão valioso. Sob este aspecto, aqui e além, com maior ou menor intensidade, pode-se respirar perfumes de teorias diversas, de Panofsky, já referido, a Barthes; de Didi-Huberman a Susanne Langer ou mesmo Mikel Dufrenne.
Mas há que se pontuar: é o olhar pessoal de Lilia Schwarcz que sobressai, leve e solto, num exercício acadêmico diferenciado, como a romper as barreiras que separam o pensamento científico da atitude estética. 
Por essas e tantas outras razões, "Imagens da branquitude, a presença da ausência", é livro fundamental para quem se dedique ao exame de nossa formação, de como se construíram os laços de conveniência e de cumplicidade inconfessável, de como se reproduziram, sub-repticiamente, os valores das classes dominantes, de como foram assegurados seus privilégios, e, como particular atenção, de como se deu o processo de legitimação do preconceito racial, de gênero e outras formas de discriminação a partir da produção imagética.
Um livro indispensável, insisto.