sexta-feira, 4 de abril de 2025

Vida e beleza em meio aos mortos

Uma manhã de sol, em Paris, sou acordado bem cedo por um amigo brasileiro que chega à cidade pela primeira vez. Era espírita devotado, queria, antes de qualquer coisa, visitar o Cemitério Père Lachaise. Não me ocorreu que essa fosse uma prioridade no programa de alguém que chega a Paris numa manhã de sol.
Explicou-se. Ali estão enterrados grandes vultos da humanidade, entre eles, Allan Kardec, o pai do espiritismo. E, para me convencer de que valeria a pena irmos ao Père Lachaise, desfia um rosário de nomes famosos que descansam ali. Sabendo-me amante da literatura, menciona Honoré de Balzac, Oscar Wilde, Paul Éluard, Marcel Proust, entre outros. Vai à música: Maria Callas, Édith Piaf, Rossini, Frédéric Chopin. Cita pensadores: Pierre Bourdieu, Auguste Comte, Michelet. Atores e cineastas: Sarah Bernhardt, Marcel Camus, Yves Saint-Laurent. E, como sabe que aprecio a pintura, dá-me o golpe fatal: Amedeo Modigliane, Eugène Délacroix, Jeanne Hébuterne…
Levanto-me, traço um café au lait avec petit-beurre, e saímos em direção ao metrô.
O Cemitério Pére Lachaise fica nos arredores do gigantesco centro de Paris, vigésima circunscrição administrativa da capital francesa. É o principal cemitério da cidade e o mais famoso do mundo. Fica no alto de uma colina, de onde se vê Paris. É bastante arborizado e, diferentemente do que se dá na maioria dos cemitérios, o lugar exerce sobre o visitante um certo sortilégio. É mágico. É fascinante estar aqui.
O nome constitui uma homenagem ao confessor de Luís XIV, Père de La Chaise, e seu terreno foi adquirido por Napoleão, em inícios do século XIX. O projeto dessa necrópole foi confiado ao arquiteto Alexandre Théodore Brongniart, em 1803.
É expressivo o número de pessoas que visitam todos os dias este campo santo. Sem que tivéssemos combinado, para que se tenha uma ideia, vamos cruzar com muitas pessoas conhecidas, brasileiros que, como nós, estavam aqueles dias em Paris e com as quais havíamos estado antes, em algum lugar. É curioso como um recanto destinado aos mortos, guarde tanta vida, tanta animação. Aqui, as pessoas riem, brincam, comem sanduíches e bebem refrigerantes. Uma festa. E muita fotografia, claro, que, para todos os efeitos, não é coisa permitida.
Os túmulos lembram monumentos. Repousam sob imensos blocos de pedra, como disse, celebridades. Consta que, pela incomensurável demanda da burguesia parisiense o Pére Lachaise teve de passar por muitas reformas e ampliações. A localização do cemitério, um lugar de difícil acesso, ensejou uma grande insatisfação entre os franceses, até que, para cá, viessem trasladados restos mortais de pessoas importantes da sociedade parisiense. Hoje, é motivo de orgulho para os franceses, e constitui uma das mais procuradas atrações turísticas da cidade.
Logo à entrada, numa pequena via ladeada por pilastras e grossas correntes, deparamos com um mapa do cemitério, em que se veem outras informações relevantes para o visitante. As ruas são pavimentadas, renques de árvores ladeando o caminho.
O primeiro túmulo que visito é o da escritora Colette, em cuja lápide se lê a inscrição sucinta: Ici repose Colette (1873-1954). Em seguida, o de Louis Visconti (1791-1853), arquiteto, um mausoléu imponente, encimado pela figura do artista em posição de descanso. A escultura é, sem si, uma obra de arte em estilo neoclássico do mais elevado nível.
E vou, agora sem a companhia do amigo espírita, que desabalara à procura do jazigo de Allan Kardec, percorrendo as alamedas pavimentadas em cujas laterais estão as sepulturas. Paro aqui, dou uma espiadela ali, demoro numa e noutra, leio as inscrições, os epitáfios, os elogios fúnebres gravados das mais variadas maneiras, sempre atento, contudo, sem jamais perder de vista o significado de estar na morada de muitos dos maiores vultos da história das artes, da filosofia e de tantos outros campos do conhecimento.
Louis-Jacques David (1748-1825) está logo ali. Diante do túmulo do pintor neoclássico, ocorre-me lembrar das suas obras vigorosas, vibrantes, a vocação para registrar os atos heróicos do povo. Vem-me aos olhos, num registro da memória, O Juramento dos Horácios, com que o artista celebra a arte, a glória e o patriotismo da Roma antiga. Vi-o, há poucos dias, no museu do Louvre. É um dos quadros mais belos da história da pintura e faz parte do conjunto de obras de que mais gosto, que mais admiro.
Adiante, lado a lado, dois monstros sagrados da literatura: La Fontaine (1621-1625) e Molière (1622-1673), próximo, a poucos metros, deparo com o mausoléu do pintor Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875). À esquerda, mais simples e não menos belo, o túmulo de outro grande nome das artes plásticas, Dominique Ingres (1780-1867).
E vou, sem perder o entusiasmo, visitando a morada de grandes nomes, paro aqui, passo a vista acolá, anoto uma coisa e outra, fotografo… O diário já cheio de rabiscos.
Agora, a dançarina Isadora Duncan (1877-1927), minutos depois, la famille Gasson-Piaf, onde repousa a genial Édith (1915-1963). Atrevidamente, solfejo La vie en rose, ao que me segue, num francês elogiável, o meu amigo espírita, que voltara finalmente à minha companhia.
E assim, concluímos a visita ao Pére Lachaise, duas ou três horas depois. Não sem antes irmos, ainda, aos túmulos de Oscar Wilde (1854-1900), Marcel Proust (1871-1922), autor que me fascinara com o seu monumental Em Busca do Tempo Perdido, George Bizet (1838-1875), Honoré de Balzac (1799-1850) etc.
Sobre a lousa de mármore dos túmulos, é comum se verem bilhetes, declarações de amor aos que ali repousam. No de Modgliane, para ficar num exemplo, sob pequenas pedras que lhes servem de peso, são incontáveis os papeis com referência à vida desregrada do pintor, um verdadeiro ícone da arte maldita.
Caía a tarde, quando deixamos o Père Lachaise, esta necrópole cheia de encanto, de mistérios, de poesia, que nos toca e emociona  –  e de que nunca vou me esquecer.
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quarta-feira, 26 de março de 2025

Meus tempos de teatro

Em 1974, voltando de Cuiabá, onde exercera profissionalmente o jornalismo, aos 18 anos, decido morar em Campina Grande. A cidade é um centro de referência no Nordeste em termos culturais. Na literatura, na música, no teatro, é considerável o que se fez e se faz ali.
Eu iniciava o último ano do segundo grau, como se chamava o ensino médio naquela época. Matriculei-me no Epuc (Estudos Pré-Universitários Campinenses), onde, sob a direção da respeitada diretora teatral Lourdes Capozzolli, o grupo Os Dionisíacos iniciava as discussões do texto O Palácio das ilusões de uma negra, peça de Adrienne Kennedy e do beatle John Lennon. A história gira em torno dos dramas psicológicos da jovem Sarah, uma menina atormentada pelo preconceito e pela inexistência de um referencial negro na sociedade em que vive. Drama psicológico, tecido a partir da arguta percepção da autora norte-americana, um texto cru, perturbador e extremamente poético.
Convidaram-me para fazer o Cristo Negro, além de Patrice Lumumba, um dos personagens centrais da peça. O convite, embora me parecesse um reconhecimento da minha atuação noutro espetáculo de que participara ao chegar à Campina Grande, causava-me estranheza --- hoje, um misto de vergonha e indignação. Numa peça que tinha como tema o problema do racismo e suas terríveis implicações na vida dos negros, a exemplo dos conflitos psiquiátricos vividos pela garota Sarah, imaginem um branco pintar o corpo de preto para representar Cristo e um líder negro da importância de Patrice Lumumba. O acinte, para surpresa minha, passou despercebido da crítica e, principalmente, dos atores negros paraibanos. Hoje seria fatalmente acusado de "blackface", e objeto de severa condenação. Hipótese aceitável para que tenham tirado de Fernanda Torres a estatueta de melhor atriz em Ainda estou aqui.
À época, contudo, não me deixei guiar pelo senso do politicamente correto e aceitei o desafio. Compus o personagem com rigor, dedicando-me a estudar o perfil psicológico de Lumumba, a sua atuação como líder anticolonial do então Congo Belga, atual República do Congo, sua impostação de voz, seu gestual etc.
Ao final de três ou quatro meses de ensaio, fizemos a estréia no Teatro Municipal, para um grande público, dos maiores registrados para uma montagem local. O espetáculo foi objeto de uma crítica impiedosa, mas, para a minha alegria, a imprensa foi unânime em aplaudir a minha atuação, quer como Cristo, quer como Patrice Lumumba. Recém-chegado e desconhecido, elaborei de modo convincente o papel e fiz, de fato, uma boa interpretação, o que me valeria a escolha de "ator revelação do ano."
No ano seguinte, voltei para o Ceará e passei a atuar no teatro de Fortaleza ao lado de Eurico Bivar, Cleide Quixadá, Pontes, Maurício Estevão, Fernando Piancó, José Tarcísio e outros nomes de destaque nas artes cênicas do estado.
Faria, inicialmente, A cadeira do dragão, de Bivar, interpretando um dos personagens centrais da peça. A minha atuação teve uma boa repercussão no meio teatral e a seu respeito saíram uma e outra nota através da imprensa. Eu usava uma barba à Stanislávski, o teatrólogo russo cujo método havia me conquistado por inteiro à época, o que me valeria uma referência jocosa do diretor Guaracy Rodrigues: – "Chegou à Fortaleza o Stanislávski tupiniquim!"
Guará, como era conhecido, em que pese a brincadeira maliciosa, antes que terminássemos a temporada com A cadeira do dragão, no Teatro da Emcetur, formalizaria o convite para que eu fizesse A noite seca, de Geraldo Markan. Perguntei-lhe se o "Stanislávski tupiniquim estava à altura do papel", ao que ele, com o sorriso bonachão, respondeu: – "Você é o melhor ator da nova safra!". Não era.
Fiz um padre reacionário de nome Fernando. Havia outro padre, progressista, que Fernando Piancó interpretaria à perfeição. Acho que o talento de Piancó despontaria a partir daí, pois, naquela época, timidamente pedia que o ajudasse na elaboração da sua personagem. Grande amigo e grande ator, Fernando Piancó.
A peça seria censurada. Na data da estreia, que não aconteceria, todo o elenco e o diretor Guaracy Rodrigues fizemos uma vigília de protesto diante do Teatro José de Alencar. Vestíamos preto e portávamos nas mãos alguns cartazes com textos alusivos ao ato de interdição da peça. Havia um público imenso e, alternadamente, alguém gritava uma palavra de ordem. A polícia ali, atenta, ameaçadora.
Comunicado por alguém na abertura de um show no Centro de Convenções de Fortaleza, Caetano Veloso, bem no estilo impactante de dizer as coisas, interrompe a primeira música do espetáculo e declara: – "Quero me solidarizar com os atores da peça A cadeira do dragão, que foram impossibilitados de se apresentar hoje por conta de um ato condenável da Polícia Federal."
Eram anos de chumbo no Brasil.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Humano, demasiado humano*

A vida entre livros leva-nos a compreender pensamentos "antípodas", e a admirá-los, na contradição de desencontrados saberes. Mais que isso, numa espécie de personalização múltipla, de desdobramentos anímicos, a enxergar as coisas como que por espelho de mil faces --- e mil encantos. Pessoa, o poeta português, deu-nos aula de sensibilidade estética ao multiplicar-se em muitos seres, trabalhados à perfeição no fenômeno inigualável da heteronomia. Aqui, como Alberto Caeiro, valorizamos as sensações e nos tornamos pagãos; ali, a exemplo de Ricardo Reis, incorremos em classicismos e formalidades eruditas; mais adiante, no espaço indefinível de um 'acolá', somos tomados de angústia, perplexos diante de um mundo que nos seduz e escraviza.    
Por volta de 1972, contava eu uns 16 anos, descobri Nietzsche. Obra do talvez ou do quem sabe, e caiu-me às mãos o Humano, demasiado humano. Como vivesse uma fase profundamente mística, participando de grupos de jovens religiosos, lembro que ler o filósofo alemão foi algo a um tempo desafiador e desconcertante. Afinal, tratava-se do pensador que escrevera O anticristo, e que professara a morte de Deus.
Mas, lembro, não conseguia me desvencilhar daqueles aforismos carregados de lucidez e sabedoria. Era uma experiência maravilhosa, incomunicável, profundamente sedutora conhecer um intelectual que se assumia humano, demasiado humano. Com um defeito, apenas, contrapor-se ao Cristianismo, que, àquela altura dos meus dias, era para mim um referencial. Não falo da referencialidade meramente religiosa, igrejeira. Não, víamos (e estudávamos o Cristianismo) mais como uma filosofia, uma doutrina baseada na alegria de viver, partilhar, dividir tanto quanto possível o milagre do amor. Talvez estivesse aí a razão de ser algo deslumbrante o fato de ler Nietzsche, de conhecer a luz ofuscante de sua filosofia e a motivação de saber mais e mais de sua vida, marcada por tantos conflitos e tantos dramas.
Hoje, quando escrevo estas linhas, e a leitura da obra do autor de Assim falou Zaratustra é coisa mais amadurecida do ponto de vista intelectual, causa-me um tipo indefinível de prazer saber que Nietzsche não é tão anticristão assim. Deixemos de lado a ousada discussão.-
O meu gosto pela filosofia nasceu, contudo, desse primeiro contato com o pensamento nietzscheano, e com a sua poesia, claro, pela qual revelava a sua inquietante busca de Deus: "Quero conhecer-Te, Desconhecido,/Tu, que te agarras ao fundo de minha alma/que atravessas minha vida estranho/e intocável como a tempestade./Quero conhecer-Te, ainda que para servir-Te."
Por força de Nietzsche, curioso, é que voltei no tempo, e fui a Sócrates, Platão, Aristóteles, percorri os caminhos que percorreram os Cínicos, os Céticos, os Epicuristas, os Estóicos… Atrevido, na sede insaciável de conhecer, cheguei a Hegel, Kant, Schopenhauer, Marx…
Retornei a Nietzsche, de quem leria O nascimento da tragédia, Além do bem e do mal, A gaia ciência, Ecce homo etc. Assim, fortalecido na minha fé, na crença de que nem tudo resume-se ao que está aqui, nessa passagem repleta de "eternos retornos", por ignorância ou seja lá o que for, tenho vivido a vida, com Nietzsche e com Deus, num mundo, muitas vezes, sem Deus e sem sentido.
*Título do primeiro livro de Friedrich Nietzsche logo que rompeu com Richard Wagner e Schopenhauer. Escrito em aforismos, a obra aborda variados temas, abrangendo questões de religião, metafísica, política, arte e literatura. Publicado em 1878, pretende-se "um livro para espíritos livres". 

sexta-feira, 14 de março de 2025

Se o desejo acaba

Durante happy hour, conversamos em grande roda sobre infidelidade. Embora delicado, é tema de pauta, num tempo em que "ficar" é a palavra que define uma relação sem compromisso. De ambas as partes, por óbvio.
Penso que a infidelidade acontece quando um relacionamento, por sólido que pareça, vai se tornando frio, e o outro não desperta mais que amizade, companheirismo, esses pequenos-grandes valores que, sendo a essência do que deveria ser chamado amor, não são bastantes para preencher o tesão pela vida.
Quando isso ocorre, e tantas vezes ocorre, a porta está aberta para a aventura. É isso infidelidade? Não sei se a palavra se aplica adequadamente, hoje em dia, para definir essa difícil experiência de abrir-se ao desconhecido, o que, cedo ou tarde, se morreu o desejo, pode fatalmente acontecer. Não se trata (por Deus!), de fazer aqui a apologia de um erro, nem o elogio da traição. Pelo contrário.
O ideal, pois que a paixão nasce do idealismo antes de ser amor, seria que o correr do tempo fizesse crescer a atração que se nutre por aquele ou aquela com quem se decidiu viver. Mas nem sempre é assim que as coisas acontecem. Chega um tempo em que desaparece o encanto, a química, a mágica que um dia "nos fez desmoronar em presença do outro". E a vida vai se tornando uma rotina pesada ao lado de alguém a quem se escolheu para dividir a mesma casa, a mesma mesa, a mesma cama. Haverá um tempo em que a pessoa que foi objeto de nossa admiração, dos mais impossíveis sonhos, é apenas a pessoa de quem se passou a conhecer os defeitos, as imperfeições, os vazios interiores, as manias ditas insuportáveis...
Lya Luft, a bela cronista do amor, diz em um de seus textos memoráveis:
"Se um dia, depois de muitos anos de casamento, há tempos transformado em amizade, o outro nos pedir a liberdade, numa prova de lealdade que sempre exaltamos, qual vai ser a nossa reação?". Se nos propuser: "Somos amigos, bem amigos, mas é hora de vivermos separados!", como vamos entender isso?
Estou convencido de que ninguém aceitará sem sofrimento tal realidade, quando o desejo, no outro, acaba. Na hora em que se sente preterido, o mundo parece desabar sobre a cabeça, e se sente vontade de morrer. E, no entanto, quantas outras dores seriam evitadas se se soubesse lidar com a desilusão!
Infidelidade, nessas circunstâncias, é palavra que não se aplica. Está no dicionário: "Qualidade de infiel", que, por sua vez, é como se define "quem não cumpriu aquilo que se obrigou ou se obriga".
O amor não é obrigação. O amor é dádiva. O amor é a união da amizade com o desejo. Se se desgastou, como nos lembra a cronista, "por que não nos permitirmos a quebra do contrato" e partimos para a condição de amigos? Mas quase nunca isso é possível para quem perdeu o posto de objeto adorado. Haverá sempre a resistência, a tentativa em vão de sustentar o que está no chão, em pequenos pedaços.
Por isso a aventura pode vir, devagar ou às pressas, sorrateira ou desavergonhada --- e, do inesperado, a nova paixão. Se o desejo acaba.
Durante a conversa a que me referi no alto, ocorreu-me citar Jabor: "O amor depende do nosso desejo, é uma construção que criamos. Sexo não depende do nosso desejo: nosso desejo é que é tomado por ele".
Entre um chope e outro, já caía a tarde, as convicções aflorando, levemente tocadas pelo efeito do álcool, mudamos de assunto.
E nossos olhares se voltam, como que por milagre, para um jovem casal que se beija calorosamente na mesa ao lado.  
 

sexta-feira, 7 de março de 2025

Picasso, o estrangeiro*

Tenho em mãos, no transcurso desses últimos dias, o belíssimo livro "Picasso, o Estrangeiro", em que Annie Cohen-Solal, escritora, historiadora e professora da Universidade de Bocconi, de Milão, Itália, traça a mais original das biografias de Pablo Picasso. Como esteja a meio caminho entre o início e o final da obra, adio a pretensão de tecer sobre o livro de Solal minhas impressões, como disse, as mais positivas até aqui. De pronto, vêm à mente, no entanto, o impacto de visita minha à Espanha, mais particularmente ao Museu Picasso, em Barcelona, registrada em crônica que tomo a liberdade de reproduzir abaixo.
AMANTE DAS ARTES plásticas, sem ao menos imaginar que algum tempo depois viria a lecionar num Curso Superior de Licenciatura em Artes Visuais, quando procuraria refinar os meus parcos conhecimentos da pintura, sobremodo, deparo com uma das mais concorridas atrações turísticas de Barcelona, o Museu Picasso.
Localizado numa ruazinha estreita, dessas vielas típicas das cidades medievais, o museu abriga em torno de 3.000 peças de Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno Maria de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso (ufa!).
Fundado em inícios dos anos 1960, instala-se em cinco palácios na Carrer Montcada. O seu acervo, embora importante, não guarda muito do que se pode considerar mais expressivo da vastíssima produção do artista malaguenho, mas é considerável o que há de cerâmicas trabalhadas, desenhos e pinturas, além da série As Meninas, com que Picasso homenageia a obra-prima de Diego Velásquez.
O quadro do pintor barroco, imenso, 318 x 276 cm, que se encontra no Museu do Prado, é considerada uma das mais complexas realizações da arte ocidental. Descortina uma cena íntima da família de Filipe IV e exemplifica uma fase da pintura de Velásquez caracterizada pelas pinceladas soltas e pela exploração da luz como um dos efeitos mais expressivos de sua arte a um tempo prodigiosa e suave. Nela, aparecem a infanta Margarida e suas damas de companhia, bufões, uma anã e uma criança brincando com um cão. À esquerda, num tipo de autorretrato que entraria para história da arte como obra desafiadora e inquietante, o próprio pintor e, através da imagem refletida num espelho, o rei Filipe IV e a rainha.
Aqui, neste museu de Barcelona, temos a oportunidade de contemplar algumas das 44 peças da série realizada pelo artista catalão em releitura da obra de Velásquez. São quadros de inspiração cubista, através dos quais Picasso buscou alinhar a arte espanhola com as tendências então dominantes na Europa. As obras se prestam à perfeição para se analisar alguns dos aspectos estruturais e simbólicos de uma fase importante do pintor, a técnica intensa e vibrante, seu processo de criação artística inovador e extremamente pessoal.
Além dessa, que é a obra de maior significado no rico acervo do Museu Picasso, acompanho com atenção desenhos realizados pelo artista em fins do século XIX, e o famoso A Primeira Comunhão (1896), tida como a primeira grande obra daquele que é considerado por muitos o maior artista do século XX.
Uma amiga, entre curiosa e desinformada, pergunta-me onde se encontra a tela Mulher Chorando, sobre a qual eu tecera comentários na noite anterior. Observo-lhe que essa tela é de uma coleção particular, está em Londres, e, baixinho, inclinando ligeiramente a cabeça sobre seu ombro, repito os versos de Rafael Alberti: – "Se puede llorar piedras…" Ela me dá um tapa e, que nem menina, diz, "Bicho ruuuimm!!!"
À saída do museu, um grupo de amigos discute a possibilidade de irmos até Valência, que fica a meio caminho entre Barcelona e Madri. Fico exultante, esperançoso que a decisão a ser tomada tornasse possível o velho sonho de conhecer essa cidade em que viveu Ernest Hemingway, supostamente atraído pelas suas famosas touradas. É frustrada a minha esperança. Não seria sensato, uma vez que temos compromissos em Toulouse.
Málaga, a terra de Pablo Picasso, Sevilha, Cades, Granada, Córdoba, na Andaluzia, e Calanda, onde nascera Luis Buñuel, compõem o projeto de uma viagem futura.
Hoje, quando escrevo estas memórias, vem-me à mente a lembrança de que Valência seria, alguns anos desde a viagem à Espanha, cenário do filme A má educação, do cineasta Pedro Almodóvar.
E mais lamento, ainda, não ter ido a essa bela cidade da costa do Mediterrâneo.
  • *O título é uma referência ao livro "Picasso, o estrangeiro", de Annie Cohen-Solal (Editora Record, 2024), sobre o qual escreverei na próxima coluna.
 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A mais bela das mentiras

Curiosamente, foi meu pai quem despertou em mim o gosto pelo cinema. Digo 'curiosamente' por se tratar de um homem simples e de pouca escolaridade. Uma vez por semana, quando menos, papai nos levava ao Cine Alvorada (ou ao Cine São José), para assistir a filmes. Ele adorava western, filmes de ação, luta e tiroteios. Eu achava isso interessante, porque meu pai era o mais pacífico dos homens, e, no entanto, não perdia uma película que tivesse ação, briga, tiros, como aqueles que tematizavam a luta pela posse da terra entre exploradores e índios, a oeste do Mississipi. Seus olhos brilhavam diante da tela e, inconscientemente, ele chegava a se movimentar na cadeira como se participasse daqueles enfrentamentos entre bandido e mocinho. Ah, meu velho e inesquecível amigo!
Lembro que assistia com ele a todos os filmes de Tarzan, notadamente os de John Weissmuller, o nosso favorito. Mas víamos quase tudo que chegava aos cinemas da cidade. Amava Greta Garbo, Joan Crawford, Clark Gable, Spencer Tracy, Clint Eastwood, Giulliano Gemma, entre outros. O nosso ídolo, contudo, era John Wayne. Dele, acho que vimos tudo o que chegou até Iguatu: "Sangue de heróis", "No tempo das diligências", "O anjo e o bandido", "Rio vermelho", "Caminhos fatais", "Rio bravo"… Não éramos, por óbvio, esteticamente exigentes --- o subgênero western de produção italiana das décadas de 1960 e 1970, por exemplo, atraía-nos como a dois meninos. 
Hoje, com certa frequência, revejo filmes daquela época e me sinto menino outra vez. Dói-me pensar que meu pai não tenha alcançado o videocassete, o DVD, com seu making of, o "quadro a quadro", a facilidade de localização de cenas etc., e, principalmente, em cópias ou streaming, com a qualidade não raro superior ao original... E pensar que acumulei mais de três mil filmes em casa... 
Como fosse um pequeno comerciante, e trabalhasse em sua própria casa, recordo que todos os dias, a uma dada hora da tarde, um de nós, seus filhos, ia para a mercearia a fim de que papai pudesse assistir a um ou outro filme. Ele se divertia com isso, era a sua única distração. Quando nos deixou, com o golpe implacável de sua depressão, lembro que passei algum tempo sem ver os filmes da tevê. Causava-me arrepios passar diante do aparelho e ver os filmes vespertinos que meu pai tanto apreciava, os olhos verdes projetados na poeira vermelha de Monument Valley...
Algum tempo depois, Alvorada e o São José fechados, inaugura-se outro cinema na cidade: o Cine Coliseu. A essa altura, já mais adulto, tinha eu uns 15, 16 anos, o hábito de ver filmes crescera e se tornara, obviamente, mais exigente. Passei a estudar cinema, a selecionar o que via, num universo de opções extremamente pobre, claro, a se enriquecer com a leitura de artigos e reportagens (poucos) sobre a sétima arte. Um dia me tornaria professor universitário, a lecionar, entre muitas matérias, estética do cinema, a dividir com meus alunos e alunas o mais encantador dos enamoramentos...
Por essa época, aqui e além, contudo, chegava até Iguatu um ou outro filme pouco condizente com as expectativas dos cinéfilos da cidade. Recordo que assisti ali a alguns clássicos da história do cinema, parte deles, contudo, em versões reescritas, como, por exemplo, "O homem que ri". Não a primeira adaptação do livro de Victor Hugo, que veria muito tempo depois, sob a direção de Paul Leni. Era uma releitura, sonorizada, diferentemente do preto e branco americano, silencioso e belo. Ocorre-me recordar a história. 
O roteiro me desconcertou quando o vi a primeira vez. É um dos clássicos do expressionismo e conta a saga de um homem bom condenado a rir a vida inteira. Explico-me: Gwynplaine, o nome do protagonista, órfão, é pego por um bando de bandidos, que o desfiguram a golpes de faca. Daí o riso monstruoso, largo e patético.
Volto no tempo.
Gwynplaine salva uma menina e cresce junto a ela sob os cuidados de um produtor de vaudeville. Já grandes, trabalham juntos em espetáculos do pai adotivo, vindo a ficar apaixonados. Detalhe importante para a dramaticidade da obra é que a jovem é cega e, portanto, não pode ver a deformação do rosto de Gwynplaine. Uma bonita história de amor. Coisas lindas da literatura e do cinema, 
Como o filme de Line fosse uma raridade, tive o privilégio de vê-lo na Casa Amarela, obra do amigo Eusélio de Oliveira, que seria brutalmente assassinado poucos anos depois. A versão que vi, há uns 40 anos, é outra, não menos interessante.
Nessa época, vi, ainda, outros dos meus filmes prediletos. Lembro de "Gritos e sussurros" e de "Morangos silvestres", de Ingmar Bergman, que viria a ser o diretor da minha adoração; "Rastros de ódio", com John Wayne e, pasmem, "Jules et Jim", com a curiosa tradução de "Uma mulher para dois", de um certo François Truffaut, um dos maiores da história do cinema, e um dos meus realizadores prediletos não me custa dizer. Não surpreende que a película constituísse um fiasco de bilheteria, e o dono do Coliseu, Enéas Paulino, limitasse sua exibição ao dia da estreia. 
"Jules e Jim", ou "Uma mulher para dois", como queiram, narra a história de dois amigos, um francês e um austríaco, que se conhecem em Paris e ficam amigos por toda a vida. O filme, a que assistiria mais de uma vez algum tempo depois, e o teria sempre ao alcance da mão, foge à gramática americana, mais 'didática' para o espectador, com suas tomadas de abertura pondo em evidência a ambientação das cenas. Truffaut, com sua 'pressa' em narrar histórias, sua agilidade cinematográfica inconfundível, apresentando-me outras formas de fazer cinema. Truffaut, o nome a revelar o gênio.
A porta estava aberta para os grandes nomes do cinema. E vieram Rossellini e o neorrealismo, "O Medo", "Roma, Cidade Aberta", "Viagem na Itália" a me tirar o folego... Veio Michelangelo Antonioni, a sondar, como um Dostoiévski do cinema, os meandros mais sombrios de nossa alma; veio Kurosawa, vieram Kubrick e Altman; vieram Woody Allen, Pasolini, Tarantino; veio Glauber Rocha, vieram Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues, Walter Salles... 
O mundo, tal qual as nuvens no céu, se transformando --- e eu, como se pela força de um sortilégio, amando, acreditando na verdade da mais bela das mentiras. 




quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

A semana em cinco toques

No momento em que sento diante do computador para escrever a coluna de hoje, vejo, à distância, na tevê, a notícia da morte do ator Gene Hackman, estrela de "Operação França" (1971) e "Os Imperdoáveis" (1992), vencedor de duas estatuetas do Oscar, e um dos atores mais emblemáticos de Hollywood. Eugene Allen Hackman fez 95 anos no último dia 30, e foi encontrado morto ao lado da mulher, a pianista Betsy Arakawa, de 64 anos. Hackman atuou em mais de 80 filmes, além de trabalhos no teatro e na televisão. Dele, além das interpretações irretocáveis nos filmes aqui citados, guardo a imagem marcante na pele de Beatty, irmão do ladrão de bancos Clyde Barrow, no filme "Bonnie e Clayde: Uma Rajada de Balas" (1968), o clássico de Arthur Penn (1968). Mas em nenhuma de suas brilhantes atuações, quero crer, esteve tão bem, tão maravilhosamente bem quanto no papel de Jimmy Popeye Doyle, o atabalhoado detetive de "Operação França", sob a irrepreensível direção de William Friedkin. Até a escritura deste texto, são desconhecidas as circunstâncias da morte do casal. Lamentável.
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Entre livros, durante visita de costume à Livraria Leitura, do Rio Mar, deparo com o escritor e queridíssimo amigo Dimas Macedo. Damo-nos a conversar sobre a obra de ninguém menos, que Marguerite Duras, a que Dimas, leitor contumaz e profundamente exigente, dedica-se com a sensibilidade do poeta e a racionalidade do historiador. Fala-me de livro de poemas de sua autoria a sair até meados deste ano, sob a cuidadosa editoria de Clauder Arcanjo. Despedimo-nos com afetuoso abraço e a certeza feliz de que nos encontraremos durante o Carnaval. Com Dimas Macedo, à maneira de Horácio, aprendemos e nos divertimos, grande intelectual e artista também imenso que é.
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De Edmilson Caminha, com a inconfundível marca de sua singular elegância, vem-me a mensagem em que comenta coluna recente deste escriba a propósito do jornalista Joel Silveira. Escritor de múltiplas vertentes, Caminha discorre sobre vida e obra do jornalista e ficcionista alagoano com intimidade e fina capacidade de compreensão, deslindando suas instabilidades de humor e a contraditória personalidade de Joel Silveira --- como se sabe, detentor de irascível temperamento e extraordinário poder de sedução. De bandeja, manda-me, ainda, vazado no estilo que encanta a todo leitor, artigo primoroso sobre o autor de "A Milésima Segunda Noite da Avenida Paulista", livro em que Joel emprega, pioneiramente, recursos próprios do que se define como jornalismo literário.
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Escrita com a habilidade de um mestre, no plano da forma e do conteúdo, do Rio de Janeiro recebo correspondência virtual do editor, poeta, novelista e cronista de corte minimalista Clauder Arcanjo. Com a habitual maneira de se expressar através da escrita, que fazem dele um escritor de escol, Arcanjo comenta a realidade do país hoje, suas contradições sociais e políticas, mas invariavelmente tecendo suas reflexões com o escorreito da linguagem, a sabedoria filosófica de um mestre e a beleza marcante do estilo. Da vasta correspondência que vimos mantendo há muito, haverá de sair, a seu tempo, produzido a quatro mãos, o livro com que Clauder Arcanjo e eu temos trocado por e-mail, à maneira das velhas cartas, nossas ideias e percepções de mundo, nosso indomável amor pela literatura e pelas outras artes. Tudo, como manda o figurino do bom missivista, com a leveza do linguajar e a informalidade no plano da expressão. No prelo, brevemente.
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De mal a pior, em termos de popularidade, o governo Lula 3 há que enfrentar até 2026, a desfaçatez do pior jornalismo dos últimos tempos no Brasil, quer do ponto de vista ético quer do ponto de vista de sua formatação, bem na linha do que fazem os grandes jornais, Folha de São Paulo à frente, e os principais canais de TV. Para esses profissionais, que batem exaustivamente no presidente, pouco importa que o país alcance bom nível de crescimento, empregabilidade formal sem precedentes e implementação de programas sociais que se destinem a minorar o descalabro de nossas contradições e perversa desigualdade. Sem esquecer, por óbvio, a mais deplorável composição congressual, gente afeita a privilégios, roubalheira e negociatas inconfessáveis. Tudo sob a manto sujo do embuste, da manipulação de números e esquisitices outras. Em tempo, atente-se para a manchete do nosso mais importante jornalão, há pouco: "País cria 137,3 mil empregos com carteira assinada em janeiro". O país. Que pouca vergonha.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Morte no Paraíso

Semana que passou escrevi aqui sobre hipótese de Stefan Sweig ter sido assassinado. Foi o bastante para que alguns leitores levantassem questionamentos sobre o fato, muitos, inclusive, dizendo desconhecer que existissem tais dúvidas acerca do que "realmente" ocorrera ao escritor austríaco: morte por suicídio. Em face disso, este colunista sente-se na obrigação de voltar ao assunto, não sem antes, claro, como manda o bom jornalismo, deixar claro para todos quem foi Stefan Sweig. Mãos à obra.
Dramaturgo, biógrafo, romancista, memorialista e poeta, Stefan Sweig foi um austríaco de origem judaica cuja obra, como escritor, elevou-o à condição de um dos maiores nomes da literatura universal. No início dos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, Sweig foi perseguido pelos nazistas, exilando-se com a mulher, Lotte, em Petrópolis, Rio de Janeiro.
Escreveu no Brasil, além de incontáveis textos de relevância, o polêmico livro "Brasil, um país do futuro", cujo título, segundo o seu biógrafo Alberto Dines, "é um caso único de livro convertido em epíteto nacional".
A exemplo do não menos polêmico "Porque me ufano do meu país", de Affonso Celso, em que o autor esposa ideias nacionalistas de cunho ingenuamente utópico, o livro de Stefan Sweig aponta para um futuro promissor do Brasil, muito embora emprestando ao seu pensamento muito maior equilíbrio e visão analítica, aspectos naturalmente ligados à universalidade de sua literatura perpassada de espírito humanista. Não sem razão, a obra, produzida no contexto da ditadura de Getúlio Vargas, suscitou um longo debate sobre os motivos que teriam levado Stefan Sweig a escrevê-la: tratava-se de um livro encomendado pelo ditador de plantão? De um livro sustentado na singular capacidade inventiva do escritor, na linha da melhor literatura? Uma forma do imigrante, fugitivo dos horrores nazistas, agradecer ao país que o acolhera? São hipóteses que ainda mais contribuem para a polêmica em torno de sua morte, oficialmente reconhecida como suicídio a dois --- Lotte, poucos minutos depois de Sweig, teria ingerido uma mistura de água e barbitúrico. Estavam abraçados.
No seu brilhante "Morte no paraíso --- A tragédia de Stefan Sweig", Alberto Dines não dá espaço a qualquer dúvida: "Suicídio, não há outra explicação. [...] Seu último empenho está em não deixar dúvidas sobre o acontecido. Por isso montou o minucioso ritual para que o gesto não seja interpretado como acidente".
Assim, em mais de uma passagem do seu livro, Alberto Dines reproduz uma "declaração", escrita em alemão, mas com título em português, em que Stefan Sweig assume total e absoluta responsabilidade pelo ocorrido. Dines vai além: sabendo das questões levantadas em torno do que afirma ser suicídio, desfecha o precioso parágrafo com uma sutil assertiva: "Tanto esmero e cuidado não evitaram que a mensagem [a declaração de suicida] seja truncada".
O fato é que não se conhecem as razões por que Getúlio Vargas não permitiu que o enterro do casal se desse em cemitério judaico. O laudo médico, determinado pelo então presidente, é vago, impreciso, dando margem para que as mortes do escritor e sua mulher continuem, passados tantos anos, encobertas pelo manto cinza da incerteza. Diga-se em tempo: a imprensa brasileira, em significativa porção, em fins dos anos 1990, assim como na época em que ocorreu o fato, trabalhou com a hipótese de que o casal tenha sido assassinado por agentes da Gestapo. Não é irrelevante afirmar, contudo, que Getúlio Vargas era, então, fiel seguidor de Adolf Hitler. O caso de Olga Prestes, ressalte-se, é exemplo de que as dúvidas sobre a morte de um dos grandes escritores de todos os tempos, e sua mulher, têm razão de ser.
A propósito, o advogado e psicanalista Jacob Pinheiro Goldberg, nome prestigiado entre os estudiosos do assunto, afirma que Stefan Sweig poderá ter sido assassinado. "Que prejuízo haverá para a história cultural do Brasil se houver reabertura de inquérito para esclarecimento de dúvida sobre a morte de Sweig", indaga.
De minha parte, como sinalizei em coluna da semana passada, o livro de Deonisio Silva, "Stefan Sweig deve morrer", ainda que se trate de ficção, constitui uma significativa contribuição para o debate. O mesmo se dá em relação às mortes dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart --- histórias mal contadas, com farto material a indicar a possibilidade de que foram assassinados.
Nesse sentido, o belo filme "Ainda estou aqui", de Walter Salles, já visto por mais de 5 milhões de espectadores, só no Brasil, é material importante, importantíssimo mesmo, na medida em que mostra para o grande público o que realmente ocorreu a Rubens Paiva, torturado e morto pelo regime militar.
Cuidadosamente vestido e de gravata, Stefan Sweig foi encontrado morto em sua casa, em Petrópolis, ao lado de sua segunda mulher, Elisabeth Charllote Altmann (Lotte), levando a termo um pacto macabro de amor e angústia jamais esclarecido. Era 22 de fevereiro de 1942, ano em que Orson Welles rodava no Brasil o inacabado "It's All True".
Com amigos comuns em Hollywood, celebridades internacionais, escritor e cineasta não se cruzaram. Mesmo assim, aparecem juntos em ficção cinematográfica de Sylvio Back, sob o título "Lost Sweig".
Como sempre, e em tudo, realidade e ficção insistem em caminhar juntas. Cumpre-nos reconhecer, no entanto, o que faz a diferença entre uma e outra.  
 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Sempre Repórter, Lillian Ross

Faz algum tempo escrevi aqui sobre a reedição das entrevistas de Clarice Lispector pela editora Rocco. Ressaltei, na oportunidade, a metodologia adotada pela escritora: "Clarice mais conversa que entrevista, estabelecendo com o interlocutor um método interessante e envolvente de lidar com temas delicados (ou apenas delicados aos olhos de Clarice), revelando-se quase tanto quanto o entrevistado". Dei exemplos, indiquei veredas percorridas pela escritora no sentido de "arrancar" o que pode haver de mais curioso e verdadeiro das pessoas ouvidas, em sua maioria escritores ligados a Clarice por laços de afinidade pessoal ou artística. Uma delícia, o livro.
Eis que o tema, por feliz coincidência, vem sendo matéria fartamente abordada por grandes cronistas, a exemplo de Álvaro Costa e Silva e o cultuado Ruy Castro, ambos da Folha de S. Paulo, invariavelmente ancorados na jornalista (já falecida) Lillian Ross, citada por mim em coluna da semana passada.
Ross, dizia eu, foi um dos grandes nomes do jornalismo literário, ombreando-se a Tom Wolfe como precursora do gênero. Como o texto tenha despertado o interesse de um e outro leitor pelo jornalismo que extrapola as fronteiras do convencional, indo da mera informação para o jornalismo feito com a arte da literatura, estendo-me no assunto para trazer de volta a emblemática jornalista americana.
É que acaba de ser lançado no Brasil, em tradução de Jayme da Costa Pinto, o prestigiadíssimo "Reporting Always --- Writing from The New Yorker" (Sempre Repórter --- Textos da Revista New Yorker, Editora Carambaia, 2024).
Em edição primorosa, tipos gráficos graúdos (detalhe que interessa a este leitor), capa dura e esmerado tratamento editorial, "Sempre Repórter" tem introdução da própria Lillian Ross e acurado posfácio de Paulo Roberto Pires. Mas é Ross quem discorre mais diretamente sobre o modo como produzia suas matérias, imperdíveis, diga-se em tempo: "O que faz a escrita brotar de um autor é, em grande medida, um mistério. Em enigma semelhante, as inspirações de um escritor não se revelam de modo explícito naquilo que ele nos apresenta. Ali por trás, à espreita, ronda um espírito esquivo".
Como Clarice, Lillian Ross tinha com ela um grande trunfo: na contramão do que era recorrente nas redações de jornais, de onde saíam entrevistas e reportagens literalmente sustentadas nas palavras dos entrevistados, uma quase transcrição do que diziam à frente de um gravador, os textos da jornalista americana transitavam pelo que só os planos aproximados do cinema podiam fazer --- enquadravam o detalhe, o cinzeiro repleto de pontas de cigarro, a unha por fazer, os vacilos e titubeios diante das perguntas capciosas, coisas, enfim, que costumavam passar despercebidas na hora da entrevista e que tanto diziam do perfil psicológico de cada um. Com isso, mais que "apresentar" um discurso que nem sempre era suficiente para revelar o que se escondia por trás das palavras, suas entrevistas e reportagens guardavam um não-sei-quê de inconfessável que dorme no mais profundo de cada um de nós. Resultava disso, como o "Sempre Repórter" mostra de forma leve e solta, um texto absolutamente maravilhoso, sedutor, desses a que o leitor se entrega por inteiro numa experiência prazerosa e incansável.
Vejamos o que diz Lillian Ross em "Sempre Repórter": "Outra de minhas regras: não usar gravador. Percebi que tagarelice literal muitas vezes induz a erros e ofusca a verdade. Prefiro fazer anotações e confiar em meu próprio ouvido para diálogos que revelam personalidade e humor, e faço isso sempre que possível quando crio [grifo meu] minhas pequenas cenas".
É próprio do que se define como jornalismo literário, e que, na coluna mais recente, identificávamos como mais profundo, inventivo, capaz de equilibrar-se gostosamente no delicado fio que separa a ficção da realidade. Mas, compreenda-se, não se trata de mentir sobre o fato, mas de adorná-lo com o perfume da literatura, acrescentando-lhe camadas de fina acuidade jornalística e beleza de estilo. Maior exemplo disso, quero crer, não haverá que o texto "Frank Sinatra está resfriado", de Gay Talese, verdadeiro clássico do jornalismo literário americano e mundial.
Antes que me esqueça: Clarice, em suas entrevistas, fazia exatamente assim.
 
 
 
 
 

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Joel Silveira e o jornalismo literário

Quando escrevi aqui sobre livro de Gay Talese, a propósito de ter sido ele um dos grandes nomes do "novo jornalismo" ou "jornalismo literário", um leitor fez por WhatsApp um comentário a um só tempo lisonjeiro e bastante pertinente. Teceu considerações elogiosas ao texto da coluna, revelou-se entusiasta do gênero e lamentou não tivesse eu feito qualquer alusão a brasileiros que fizeram história produzindo reportagens rigorosamente representativas do que preferiu chamar de "new jornalism", numa contradição que nos rendeu boas gargalhadas. Volto ao tema hoje, minha maneira de corrigir a falha.
Bairrismo à parte, não se pode negar o que é consensual sobre a matéria: o chamado "jornalismo literário", como dizia preferir às outras denominações, teve como berço os Estados Unidos, por volta dos anos 60, alcançando maior prestígio ao longo da década de 1970 (o termo ganhou status oficial em 1973), quando um novo estilo de escrever reportagens ganhou as redações de jornais de todo o mundo, constituindo-se num tipo de movimento que ainda hoje é cultuado por grandes nomes do jornalismo mundial.
Tendo por objetivo romper com os padrões tradicionais da produção textual no âmbito da imprensa, nomeadamente nas redações do jornal impresso, quase sempre impostos pelos editores (imparcialidade/objetividade), o "new jornalism" surgiu como uma grande novidade, permitindo ao jornalista discorrer sobre o fato com maior criatividade, maior poder de sedução sobre o leitor. Em suma: tornando o texto noticioso ou a reportagem mais interessante, mais envolvente e mais elegante estilisticamente falando.
 Notabilizaram-se no gênero, à época, escritores admiráveis, a exemplo de Truman Capote ("A sangue frio"), Norman Mailer ("A canção do carrasco"), Lillian Ross ("Sempre repórter"), Hunter S. Thompson ("Hell's Angels"), Tom Wolfe ("Radical, chique e o novo jornalismo"), Janet Malcom ("O jornalista e o assassino") e o já referido Gay Talese ("O Reino e o poder"), objeto da coluna anterior.
Cheguemos ao Brasil, antes que o querido leitor me tome por faltoso reincidente. Pois bem, o chamado "jornalismo literário" foi amplamente cultivado no país por jornalistas extraordinários, gente da estatura de Samuel Wainer, Antonio Callado, Alberto Dines, Carlos Lacerda, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Armando Nogueira e, soberbo, no bom sentido da adjetivação, Joel Silveira, de quem li não faz muito tempo o delicioso "Na fogueira" (Editora Mauad, 1996), livro de memórias garimpado em sebo do Rio de Janeiro.
Nordestino de Sergipe, ou mais precisamente de Lagarto, onde nasceu em 23 de setembro de 1918, Joel Silveira é nome incontornável do jornalismo literário brasileiro, e algumas de suas memoráveis reportagens resultaram em livros mais que recomendados, com destaque para o inclassificável "A milésima segunda noite da Avenida Paulista" (Companhia das Letras, 2003), "A feijoada que derrubou o governo" (Companhia das Letras, 2004) e "Viagem com o presidente eleito" (Mauad, 2009).
Homem de esquerda (dizia-se socialista antes de tudo), além de craque do jornalismo literário propriamente dito, Joel Silveira foi também ficcionista, nunca, porém, tendo alcançado como contista o mesmo nível de excelência. Com o título de "Os melhores contos de Joel Silveira" (Global, 1999), pode-se encontrar nas livrarias virtuais exemplares em boas condições de uso. Recomendo.
Morto em agosto de 2007, Joel Silveira destacou-se ainda como um "frasista" de escol, trilhando na mesma linha estilística e com a mesma sagacidade ferina, por exemplo, os caminhos do insuperável Nelson Rodrigues.
Irreverente, incisivo, sarcástico, pertinaz, desconcertante, e tantos outros adjetivos de conotação dúbia que lhe soariam adequados*, Joel Silveira foi antes de tudo um genial repórter brasileiro, desses que fazem uma falta imensurável ao jornalismo tortuoso, inconfessável e medroso dos dias atuais.
*Ganhou o apelido de "Víbora" por Assis Chateaubriand, e, contratado pelo dono dos Diários Associados, cobriu a Segunda Guerra Mundial, de cujas reportagens nasceu o livro "O inverno da Guerra, 2005.
 
 
 
 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O ovo da serpente 2

 Assisto ao discurso do recém-empossado presidente americano, Donald Trump, e, ato contínuo, dirijo-me à estante para tomar em mãos exemplar de "Fama e anonimato" (Companhia Das Letras, 2021), o livro clássico de Gay Talese. Publicado nos anos 60, chegou ao Brasil por volta de 1973, mas só alguns anos depois, já na faculdade, o li pela primeira vez. Lembro que o fiz numa cópia amarfanhada, em xerox --- o original, de capa alaranjada, com o título de "Aos olhos da multidão", disputado a tapas por colegas universitários, notadamente os estudantes de jornalismo, mas não somente esses.
"Fama e anonimato" é obra-prima do chamado 'novo jornalismo', 'nova não-ficção' ou, como acho mais adequado dizer, 'jornalismo literário', cujas marcas estilísticas apontam para o texto jornalístico produzido com cuidados formais e perspectiva de abordagem informativa pelo viés da linguagem poética, tomando-se o termo segundo teoria do russo Roman Jackobson: o foco dela [da linguagem] está centrado na mensagem e em sua construção formal, gerando expressividade. Em suma, jornalismo feito com arte.
Na primeira das reportagens, produzida numa escrita que absorve o leitor de modo implacável, tanta é sua beleza, profundidade e "sabor", Talese explora a dimensão desconhecida da cidade de Nova York, o que define como invisível aos olhos dos americanos que vivem na mais importante cidade americana. São os trabalhadores anônimos, porteiros, guardas-noturnos, motoristas de ônibus, vendedores de rua, bilheteiros, ascensoristas e, para não me alongar, faxineiros de ambos os sexos, enfim, essa gente que faz Nova York existir, funcionar, manter-se aos olhos do mundo como uma das mais sedutoras das grandes cidades. 
É aí que entra o discurso de Donald Trump como gatilho de minha motivação de voltar a um dos mais fascinantes livros de caráter jornalístico a que tive acesso em toda a minha vida. "Fama e anonimato" é, antes de tudo, um belíssimo livro.
Confundidos com criminosos pelo presidente recém-empossado, os imigrantes ou filhos de imigrantes (e não estou me referindo aos descendentes de colonizadores ingleses), compõem a matéria de que nos fala Gay Talese no seu livro extraordinário, gente que, exceções à parte, serve aos americanos com uma dedicação quase santificada, protegendo a sociedade, limpando ruas e hospitais, preparando comida, transportando mercadorias, dirigindo ônibus ou salvando vidas, mesmo as de potenciais suicidas, que ameaçam se atirar do alto da ponte Vezarrano-Narows sobre as águas do Hudson, também ela construída por imigrantes, em sua maioria índios mexicanos.
É notável, por exemplo, o que diz sobre os motoristas: "Os passageiros o ignoram, e continuarão a ignorá-lo até o momento em que perturbe a paz deles --- ao dar uma freada brusca, ao deixar de responder a uma pergunta ou de parar num ponto quando eles tocam o sinal. Dia após dia os motoristas padecem dessa rotina interminável, sabendo o que esperar --- e quando".
Ou sobre as faxineiras: "As faxineiras, muitas delas ucranianas, tchecoslovacas ou polonesas, trabalham 35 horas por semana e ganham um salário semanal inicial de 54,95 dólares. Elas trabalham para ajudar a sustentar famílias numerosas, para completar sua pensão ou para ficar longe de casa à noite".
Imigrantes nos EUA equivalem à população de uma Argentina, algo em torno de 46 milhões de pessoas. A mulher de Donald Trump nasceu na Eslovênia, Elon Musk (cuja saudação nazista dá a medida de suas intenções ao compor o governo Trump), nasceu na África do Sul.18 milhões de crianças têm pai ou mãe estrangeiros, e 5 milhões são filhas de pais e mães nascidas fora dos Estados Unidos. Dos cinco filhos de Trump, quatro nasceram de mães estrangeiras, pois a primeira mulher do presidente, já falecida, nasceu na República Tcheca. Para não falar da mulher do vice-presidente, Vence, também estrangeira, do secretário de Estado, Marco Rubio, filho de pais nascidos em Cuba e casado com filha de colombianos.
Tradicionalmente reconhecido como um país acolhedor, para onde se destinaram perseguidos do nazismo, os Estados Unidos de Donald Trump 2 constituem uma ameaça à paz mundial, e sinalizam (o gesto de Elon Musk o evidencia) que novo ovo da serpente está para eclodir. Voltaremos ao assunto depois, não sem antes recomendar a obra-prima de Gay Talese, cuja capacidade de ressignificar-se me salta aos olhos desde o discurso de posse de Donald Trump.
 
 
 
 

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

ENTREVISTA - ACADEMIA CEARENSE DE CINEMA

 "O filme de Walter Salles é uma obra-prima"
Professor universitário de estética do filme e integrante da Academia Cearense de Cinema, Alder Teixeira fala sobre o filme de Walter Salles, "Ainda estou aqui", deslinda aspectos estéticos da obra e avança considerações em torno do que considera uma verdadeira obra-prima da cinematografia nacional.
 ACC – Tem sido gigantesca a repercussão em torno do filme "Ainda estou aqui", do cineasta Walter Salles. Com rigor de análise, por quê?
Alder – Antes de tudo, por se tratar de um grande filme, entendendo-se esta avaliação a partir daquilo que o filme é artisticamente falando, ou seja, pelos atributos de conteúdo (o filme, plasmado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, narra a luta de uma grande mulher contra os assassinos do seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva) e por suas qualidades estéticas propriamente ditas: o tratamento de linguagem que o diretor Walter Salles dispensou ao assunto, já tão bem explorado pelo escritor.
ACC – Sendo mais objetivo, o que é, no filme, esse "tratamento" a que se refere?
Alder – O uso dos recursos da linguagem cinematográfica: montagem, enquadramentos, movimentos de câmera, ângulos de filmagem, utilização da luz e do som, e a própria concepção do que, talvez contrariando os adeptos do cinema dito moderno, pode-se definir como 'mise en scène' no cinema: a forma como essa arte nos transporta para os acontecimentos que a tela nos oferece a partir da utilização dos recursos da linguagem cinematográfica. Isto porque Walter Salles recusa-se a ser modernoso, embora seja um cineasta da modernidade. Sua obra, desde sempre, revela as qualidades formais de um realizador de formação clássica, o que não quer dizer que se trate de um artista tradicional, que se submete aos preceitos da cinematografia americana dos anos 40, 50 ou 60, o chamado cinema clássico da Era de Ouro.
ACC – Sob este aspecto, o que pode destacar no filme?
Alder – O rigor com que dirige seus atores, explorando com fina sensibilidade seus atributos como intérpretes e suas características físicas. A essa altura é preciso destacar, por exemplo, como soube usar planos fechados da atriz Fernanda Torres, que, ao lado de ser uma grande atriz, tem uma beleza já por si muito expressiva, traços e linhas muito definidos plasticamente falando. O mesmo ocorre nos planos abertos, quando a personagem se desloca pelos espaços da casa. Nesse sentido, foi irretocável como a atriz dosou a emoção de Eunice Paiva, realçando sua dignidade e firmeza de caráter mesmo nas cenas mais dramáticas do filme. O mérito, claro, é da Fernanda Torres, mas não se pode ignorar o que o diretor soube extrair de sua atuação irrepreensível pela escolha dos planos, pela luz, pela densidade das falas etc. O roteiro é brilhante, não nos esqueçamos. Enfim, é um filme tecnicamente correto, quer na perspectiva do plano do conteúdo, quer na perspectiva do plano expressivo. Obra de arte irretocável.
ACC – A propósito, fale um pouco do roteiro a partir do livro "Ainda estou aqui".
Alder – É preciso partir do princípio de que literatura e cinema são artes distintas. Um roteiro não pode ser a mera transcrição de um conteúdo literário. Trata-se de uma planificação do conteúdo da imagem a partir dos elementos cinematográficos. O roteiro é a base do que será o filme, orientando o diretor, de início precariamente, a conceber a cena, a composição da imagem, o ritmo da narrativa, os tipos de planos, sem perder de vista o que é essencial no cinema: a montagem. O roteiro traz em si a história a ser contada, indo do diálogo à entrada e saída de cena dos atores, a estrutura narrativa, que pode, claro, ser alterada pelo diretor. Sem um bom roteiro não se fará um bom filme. Sendo assim, é natural que o filme subtraia ou acrescente, explore minúcias quase imperceptíveis do que está no texto original, realce partes do que está, no livro, dito com palavras. Em se tratando do filme em questão, é oportuno dizer que o roteiro não se limitou ao que está no livro de mesmo título. Para escrevê-lo Walter Salles aproveitou outro livro importante de Marcelo Rubens Paiva, o "Feliz Ano Velho", de 1982, bem como documentos da época e entrevistas feitas sobre o que de fato ocorreu à família de Eunice Paiva. É, portanto, uma obra plasmada no livro "Ainda estou aqui", que deu origem ao filme, não uma...
ACC – Adaptação...
Alder – Não, não me parece adequado o termo "adaptação" para se falar de "Ainda estou aqui", o filme. São obras distintas, muito embora embasadas no mesmo conteúdo, cada uma com suas especificidades narrativas, com suas estratégias formais, com potências estilísticas particulares. Quando pesquisei a obra de Ingmar Bergman, "Estratégias narrativas da cinematografia de Ingmar Bergman", cuja tese de doutorado saiu em livro, o fiz depois de constatar que a filmografia do cineasta sueco fora amplamente analisada do ponto de vista do conteúdo, quase como se se tratasse de um escritor, um filósofo, um psicanalista... e não um cineasta, um realizador de filmes. Poucos o tinham feito até então, pelo menos não na perspectiva com que a examinei, dando ênfase a sua concepção cinematográfica, a forma fílmica, o uso dos elementos e recursos tecnológicos do cinema, as estratégias narrativas propriamente ditas.
ACC – E o livro do Marcelo Rubens Paiva?
Alder – Um grande livro, ainda que escrito com simplicidade, com um estilo despojado, aqui, forjado com linguagem referencial, objetiva, quase jornalística; ali, mais suave, fluido, com nuances poéticas, sem jamais deslizar para o piegas, o lamuriento, ainda que profundamente sincero e verdadeiro em sua dor, sua indignação contra aqueles que torturaram e mataram friamente seu pai. Mas, tanto quanto o filme, o livro tem como figura central Eunice Paiva. É ela o esteio, o eixo dramático de um e outro. E nisso, ressalto, é que reside a fidedignidade do filme em relação ao livro, em que pesem as licenças a que me referi antes. É oportuno dizer que o livro tem uma estrutura narrativa que dialoga com a narrativa cinematográfica, jogando com temporalidades, entrecruzando cenas e situações sem observar linearidades do discurso do narrador.
ACC – O filme recebeu críticas por "pegar leve" na questão política, por apresentar o lado generoso de alguns policiais...
Alder – Discordo frontalmente. O que não há no filme é a apresentação material da tortura, os horrores de uma prática que a um só tempo nos revolta e indigna, causa nojo, desperta sentimentos ruins para com essa gente. É que Walter Salles terá sido antes de tudo um artista, um grande artista, deixando que o espectador "veja" as cenas de violência física com o coração, intelectualizando sua indignação diante dessas atrocidades cometidas pelos militares durante a ditadura --- e não com os olhos, como já se fez abusivamente em filmes que tratam do mesmo período. Sem ser apelativo, sem partidarizar sua denúncia, sem sujar de sangue o écran, Walter Salles terá feito o mais denso e mais revelador dos filmes brasileiros que mostram os horrores do regime militar. E não estou, com isso, dizendo que não se trata de grandes filmes, mas tão-somente evidenciando o olhar do diretor de "Ainda estou aqui", sua delicadeza estética ao lidar com um tema tão repugnante.
ACC – Quanto a mostrar certa ternura de alguns agentes policiais...
Alder – Isso está no livro, com todas as letras. Permita-me que reproduza textualmente o que diz Marcelo Rubens Paiva, e o que se pode ver no filme: "Olha, queria que a senhora soubesse que não concordo. Só estou cumprindo ordens. Eu não concordo com isso. Isso vai acabar. Um dia isso vai acabar. O que estão fazendo aqui não está certo". Trata-se, no caso, do mesmo soldado que, às escondidas, dera a Eunice Paiva uma barra de chocolate. São as contradições humanas muitas vezes impostas pelas circunstâncias. Não tornar o filme uma obra panfletária é uma das grandes qualidades do que se vê na tela. 
ACC - O que ficará disso em termos práticos?
Alder – O fato de que, para além de ser uma obra de arte de valor imenso, um objeto artístico de rara beleza, o filme se presta a levar aos jovens (e não só a eles!), os horrores cometidos contra as pessoas durante o regime militar, a ditadura. Num momento em que se tenta minimizar o que aconteceu no país, incorrendo-se na insanidade de pedir uma intervenção militar no Brasil, a prática da tortura contra pessoas tachadas de comunistas, o que já por si dá a ver a brutalidade de tal pensamento, o filme, assim como o livro, mas numa proporção significativamente maior, contribuirá para o surgimento de uma nova consciência política. Esta, a mensagem do filme, se mensagem há. Esta, a força da arte como instrumento de denúncia do lado torto da realidade no país, o que é de uma importância inavaliável num tempo em que se pronunciam ideias de extrema direita, em que se faz a apologia do movimento fascista redivivo, a maior de todas as ameaças a que estamos expostos. Para isso existe a arte, para a um só tempo embelezar a vida e transformar o que precisa ser transformado.
ACC – Que posição no cinema brasileiro está reservada para Walter Salles, hoje?
Alder – No mínimo uma posição de reconhecido destaque, ombreando-se a cineastas do peso de Karin Aïnouz, Kléber Mendonça Filho, Anna Muylaert, Fernando Meireles, nomes que me ocorrem dizer aqui. Mas não me parece precipitado dizer que Salles é o cineasta brasileiro mais completo em atividade hoje. E não de agora, mas desde os anos noventa, quando lançou o belíssimo "Terra Estrangeira" (1995), e "Central do Brasil" (1998), obra que lhe deu prestígio internacional.
ACC – Em termos ligeiros, o que se deve entender como um "cineasta completo"?
Alder – Pergunta complexa, mas vamos lá. Por cineasta completo compreendo o realizador que demonstra absoluto domínio do instrumental cinematográfico, que seja capaz de se fazer presente em todas as etapas da realização de um filme, da produção do roteiro à decupagem, do uso do equipamento, da direção de elenco, da composição do quadro e da montagem. E, claro, que sua presença seja fundamental para o resultado do trabalho de tanta gente que participa de uma filmagem: técnicos, operadores de câmera, figurinista, diretor ou diretora de arte, continuísta, fotógrafo, enfim, da equipe como um todo. Walter Moreira Salles é este exemplo de um grande cineasta. Considero-o o nosso Bergman, pela assinatura inconfundível de sua obra já extensa e de altíssima qualidade. Faz cinema autoral, na linha do que fizeram Godard e Truffaut à época da Nouvelle Vague francesa.
ACC – Destaque uma ou duas sequências do filme que considera mais bem feitas.
Alder – São muitas as cenas ou sequências do filme que me impressionaram. Destacarei duas: a sequência da prisão de Rubens Paiva é de uma densidade dramática, de um rigor estético, de uma beleza formal que me emocionaram profundamente. O ritmo da narrativa é preciso, a escolha dos planos e o uso da luz irretocáveis, a que se soma uma direção de atores notável. O aceno de Selton Melo antes de entrar no carro, e o olhar de Fernanda Torres à porta de casa, no gesto de despedida, é algo inesquecível. E faço questão de citar os atores e não as personagens para ressaltar a dimensão artística do trabalho. Primoroso. A outra sequência que gostaria de citar é aquela em que a família, postada nos degraus da porta de casa, posa para o fotógrafo da revista Manchete. A composição do quadro é minuciosa, com equilíbrio de massa, tom de cor e granulação da imagem adequados, o que só é possível, certamente, pelo uso da película em lugar da fotografia digital, coisa complicada de fazer nos dias de hoje. Sem esquecer a fala de Eunice Paiva recusando-se a demonstrar tristeza ao se deixar fotografar. Sublime.
ACC – Para finalizar, virá o nosso primeiro Oscar?
Alder – Qualidades para isso existem de sobra no filme de Walter Salles. A premiação, sabemos, nem sempre se dá pelo juízo artístico unicamente. Há fatores que são mesmo estranhos ao que faz de um filme um grande filme. Mas são amplas as possibilidades, de melhor filme internacional, por exemplo, além do prêmio da melhor atriz para Fernanda Torres, que fez um trabalho absolutamente perfeito na pele de Eunice Paiva, a protagonista. Se vier, será definitivo para o prestígio de nossa cinematografia em nível do grande cinema mundial. Se não, relevemos isso. O filme de Walter Moreira Salles é uma obra-prima. Insisto: "Ainda estou aqui", o filme, é uma obra-prima. Bravo.
Alder Teixeira é mestre em Letras e doutor em Artes pela UFMG, com linha de pesquisa em cinema. Publicou livros sobre literatura, artes visuais e cinema. É autor, entre outros, de "Ingmar Bergman, estratégias narrativas", "Drummond, componentes dramáticos" e "Quase romance".
 


sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

O que o filme não mostra

O estrondoso sucesso do filme "Ainda estou aqui", de Walter Moreira Salles, jogou luz sobre o drama familiar de Maria Eunice Facciola Paiva, elevando-a, com justa razão, à condição de uma verdadeira heroína. É de fato impactante acompanhar a trajetória da viúva do ex-deputado Rubens Paiva e de como essa mulher extraordinária lutou para criar os cinco filhos do casal --- Vera Silvia, Maria Eliana, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo ---, como se mostrou incansável na determinada busca pelo paradeiro de seu marido e posterior reconhecimento, pelo Estado, de ter sido ele, depois de cruelmente torturado, assassinado pelos militares em janeiro de 1971.
Ao optar por realizar um filme sobre Eunice Paiva, emblematicamente representada por Fernanda Torres, papel que lhe valeu o Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama, ainda que evidenciando os horrores ocorridos durante a ditadura militar no Brasil, com a sutileza e fina sensibilidade estética de que é possuidor, o cineasta compreensivelmente evitou mostrar cenas de tortura e, mesmo, as circunstâncias em que se deu a morte do ex-deputado, eleito pelo Partido Socialista em 1962 e cassado dois anos depois.
O que poderia ser irrelevante do ponto de vista cinematográfico, enseja, no entanto, um detalhe que ainda mais empresta ao filme qualidades dignas dos melhores elogios: não se trata de uma adaptação como tradicionalmente a conhecemos, isto é, o processo de transformar uma história narrada em livro para uma mídia audiovisual, especificamente, como é o caso, para o cinema --- mas de uma "leitura" pessoal, uma visada subjetiva do conteúdo de um livro.
Ao fazê-lo, o cineasta redimensionou o livro, criando a partir dele uma outra obra, nascida de sua interpretação e realizada de conformidade com elementos advindos do seu trabalho como artista, da sua inventividade, do seu tirocínio estético, extraindo dele o que lhe parece real, essencial, útil, sem perder de vista a ideia em que está plasmado o filme. Por isso, fez com o substrato da narrativa de Marcelo Rubens Paiva, autor do livro, uma verdadeira obra-prima cinematográfica, cuidando com maestria de cada plano, cada enquadramento, cada movimento de câmera, cada detalhe no uso da luz e do som. Perfeccionista, realizou uma obra de arte irretocável, revelando as atrocidades de um regime arbitrário sem que fosse preciso, panfletariamente, derramar sangue no écran. Coisa de refinado artista.
Mas o leitor haverá de perguntar: o que há no livro sobre o assassinato de Rubens Paiva que não se vê no filme? A título de exemplo, pois, vou ao texto de Marcelo Rubens Paiva, precisamente à parte dois do texto, no capítulo intitulado "É a peste, Augustin --- Perdão, tenho que morrer", em que o escritor descreve, à força de um estilo literário enxuto, preciso, referencial, a morte de seu pai: "Dizem que foi torturado ao som de 'Jesus Cristo', de Roberto Carlos, música que a minha irmã Eliana se lembra de ter escutado enquanto estava [presa] lá".
E segue, desfechando o capítulo com um parágrafo desconcertante: "Imaginar este sujeito boa-praça, um dos homens mais simpáticos e risonhos que muitos conheceram, aos quarenta e um anos, nu, apanhando até a morte... É a peste, é a peste, Augustin (alusão à música alemã que Rubens Paiva costumava cantar). Dizem que ele pedia água a todo momento. No final, banhado em sangue, repetia apenas o nome. Por horas. Rubens Paiva, Rubens Paiva, Ru-bens Pai-va, Ru... Pai. Até morrer".
A demonstrar sua habilidade como escritor, talento já conhecido desde a publicação de "Feliz Ano Velho", em 1982, livro de estreia, pela metade do referido capítulo, lançando mão de um artifício narrativo a um só tempo bastante expressivo e literariamente feliz, Marcelo Rubens Paiva muda o foco narrativo sem qualquer sinalização (travessão, aspas etc.), num exemplo clássico de discurso indireto livre* que empresta ao conteúdo narrado um peso dramático adequado e extremamente comovente: "Quem tem um filho faz de tudo para se preservar, para dar suporte e acompanhar o crescimento daquele que mais ama. O que eu fiz? Por quê? (...) Agora não dá para fugir da morte. Eu vou morrer, sinto que vou, espero que me perdoem. O que fiz prova minha vulnerabilidade, falhas do meu caráter, que pôs tudo a perder e causa muito sofrimento. Não tenho palavras Eunice, Verinha, Cuchimbas, Lambancinha, Cacareco, Babiu... Perdão. Não vou ver vocês crescerem, não estarei mais ao lado de vocês, não consigo mais proteger vocês, não vou mais brincar com vocês, escutar suas risadas...".
Com simplicidade, sem perder de vista o efeito dramático perseguido, Marcelo levanta a reflexão dolorida: um gesto de covardia, ir embora do país, como lhe aconselhavam fazer, teria preservado sua vida, como a de tantos outros? A que "falha de caráter" se refere no texto? Como abrir mão de um ideal, do sonho de viver num país mais justo, mais humano e mais livre? Sob esse aspecto, por sinal, é que narra como Rubens Paiva, durante uma escala de voo no Brasil, a pretexto de comprar cigarros, foge do aeroporto para reencontrar a família.
A propósito, não à toa é que Walter Salles ocupa o primeiro terço do filme a mostrar o convívio familiar, a descontração de um pai bonachão, o chefe de família exemplarmente dedicado à mulher e aos filhos, num ambiente de profunda felicidade da família classe-média alta de Rubens Paiva.
Essas cenas, ressalte-se, foram gravadas com Super-8**, conferindo ao quadro uma textura ao mesmo tempo poética e nostálgica, numa minúcia formal que revela fidedignidade ao livro e notável capacidade criativa, artista pleno que é o cineasta Walter Moreira Salles.
*Modalidade narrativa que mistura o discurso direto e o indireto, ensejando ao narrador expressar os sentimentos e pensamentos da personagem.
**Filmadora portátil lançada pela Kodak em 1965 e muito usada nos anos 1970.