terça-feira, 1 de julho de 2025

Sobre cidades*

Não amo, sem alguma restrição, Recife e Salvador. Um tipo de ingratidão, uma vez que fui sempre muito feliz nas vezes em que estive numa cidade e outra. E não foram poucas. Falta à primeira, a leveza de Fortaleza, à segunda, a elegância de São Paulo, ainda que mal compare. Mas é belo seu centro histórico; irresistível, sua comida. E que Brasil circula pelas ruas, pelos becos do Pelourinho...

João Pessoa e Natal, embora simpáticas e charmosamente provincianas, ainda não marcaram a minha vida sob qualquer aspecto. Uma viagem aqui, outra acolá, mas nenhuma que tenha me ocasionado aquele prazer de estar ali. Maceió, já não digo. Acho a capital alagoana um degrau acima em termos de regozijo, de festividade. As praias de Alagoas são maravilhosas, muito mais que as praias de Natal, que andam na moda por esses tempos em que escrevo minhas memórias.
Belo Horizonte é uma das minhas paixões. Se falta a praia, o elemento natural que pesa muito no meu senso de valoração turística, sobra à capital mineira o encanto da cidade inteligente. Inteligente, este é o adjetivo que se aplica bem a BH, pelo que se respira aqui de cultura. Gosto de Belo Horizonte desde muito antes de conhecê-la, acho que tocado pelos livros de Pedro Nava, o maior dos nossos memorialistas.
Estudei na PUC de Minas, onde fiz mais de uma especialização em literatura brasileira. Além disso, fui a Belo Horizonte inúmeras vezes, algumas delas de passagem para Ouro Preto e outras cidades históricas, época em que fazia estudos sobre o barroco de Minas Gerais. Fiz 'morada' num hotel da Via Contorno, que tinha este nome e fica localizado ali nas proximidades do Felício Roxo, que é um hospital muito conhecido da cidade.
Anos depois, na Escola de Belas Artes da UFMG, fiz o doutorado, mergulhando nas águas profundas do "planeta Bergman". E Minas, para todo o sempre, passou a fazer parte de minha vida em termos intelectuais e artísticos. Terra de Drummond, de Nava, de Affonso Romano de Sant'Anna, de Adélia Prado, de Cyro dos Anjos, de Silviano Santiago... para citar uns poucos.
O mineiro, em que pese o preconceito de ser um povo desconfiado, é extremamente afetivo e sabe receber como poucos no Brasil.
Ademais, a cidade é um importante centro de literatura e teatro. Considero o teatro de Belo Horizonte, o fazer teatral, quero dizer, o melhor do país sem contar o eixo Rio-São Paulo. O grupo Galpão é hoje uma referência obrigatória. Com uma linguagem própria, através da qual se vai de Stanislávski a Brecht, de Tchékhov a Shakespeare, o grupo é sensacional. Por último, vi do Galpão uma colagem sobre Moliére, excepcional, nada que se compare, contudo, ao impacto que me causou a releitura de "Romeu e Julieta", há alguns anos. Puro Shakespeare, em que pese o "disruptivo" da montagem.
Além disso, como se pensa cultura nessa cidade! Os barzinhos de BH são maravilhosos e aqui se pode discutir literatura com a mesma naturalidade com que se discute o clássico Cruzeiro x Atlético de logo mais, no Mineirão.
Dia desses, voltei a BH. A cidade guarda o mesmo encanto, mas suas montanhas se dão a ver desfiguradas, objeto da sanha capitalista. Agora é a Serra do Curral, marco geográfico e cultural da capital mineira, que se dobra ante as ameaças da mineração. Que importa se é tombada pelo IPHAN, se foi um dia referência para a fundação de Belo Horizonte?
"Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te meu Triste Horizonte e derradeiro amor", voltam-me aos tímpanos as palavras de Drummond.  
Tempos atrás, enquanto estudava a poética de Carlos Drummond de Andrade, decidi ir a Itabira, cidade em que nascera o poeta. Estava em BH havia alguns dias, pouco menos de um mês, quero crer. Fui.
Itabira do Mato Dentro, como se chamava antes, fica a uns cem quilômetros de Belo Horizonte. É conhecida, quem sabe se por influência do filho ilustre, como a "cidade da poesia". Há nos lugares, em muitos, placas com poemas que assinalam 'a presença' de Drummond ali. Fiquei um dia inteiro em Itabira e visitei lugares interessantes, como o Museu Carlos Drummond de Andrade e o centro cultural que leva seu nome. Entrevistei pessoas que conviveram com o poeta e uma senhora, de quem (imperdoável) esqueço o nome agora, a quem está confiado o legado do poeta na cidade. Foi interessante, mas nada que pudesse acrescentar de muito significativo ao que já sabia sobre o autor pesquisado.
Lembro, contudo, que um tanto emocionado, diante da casa em que nasceu Drummond, não me contive e, de cor, interpretei para a minha companheira, à época, o clássico "Confidência do Itabirano", o desconcertante poema do nosso poeta maior: "Alguns anos vivi em Itabira. / Principalmente nasci em Itabira. / Por isso, sou triste, orgulhoso: de ferro. / Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas. / E esse alheamento do que na vida é porosidade, / e comunicação. // A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, / vem de Itabira, de suas noites brancas, sem / mulheres e sem horizontes. // E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, / é doce herança itabirana. // De Itabira trouxe prendas diversas que / ora te ofereço. / Esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; / este São Benedito do velho santeiro Alfredo / Duval. / este couro de anta estendido no sofá da sala / de visitas; / este orgulho, esta cabeça baixa… // Tive ouro, tive gado, tive fazendas. / Hoje sou funcionário público. / Itabira é apenas uma fotografia na parede. / Mas como dói!
Só então observei, sensibilizado, que rolavam daqueles olhos grandes e lindos, duas lágrimas. Serenamente, tão serenamente como agonizava aquela tarde de janeiro entre montanhas.
*Fragmento do capítulo sobre cidades. Memórias de viagens.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Um dia com Shakespeare

Em Londres, havia dois dias, conhecemos no café da manhã um grupo de brasileiros muito animados. Eram três moças e dois rapazes, todos entre os vinte e vinte e cinco anos. Estavam de saída para Stratford-on-Avon numa camionete que haviam alugado, vim a saber, no dia anterior. Minha amiga e eu ficamos babando de inveja. Tínhamos pensado em fazer a mesma viagem de ônibus, mas ainda estávamos em dúvida, em face dos gastos que, àquela altura, superavam o que havíamos previsto gastar na capital inglesa.
E qual não seria a minha surpresa!
Lívia, uma das moças, a mais simpática delas, que, pela forma de vestir (e pelo que falava sobre a Europa com uma naturalidade espantosa) parecia-nos filhinha de papai, entre um bocado e outro da omelete, volta-se para nós e propõe: "Vamos conosco, o carro comporta!"
Ainda lhe fiz um charminho: "Imagina, estaríamos incomodando vocês…"
O que conversamos depois disso, ali, enquanto tomávamos o café da manhã, não sei. O fato é que, em poucos minutos, estávamos minha amiga e eu bem acomodados no carro a caminho da terra de William Shakespeare, o gênio da dramaturgia ocidental.
As estradas são perfeitas e a sinalização detalhada, o que torna a viagem segura e confortável. A dificuldade, estivesse eu ao volante, estaria no que, aqui, é a mão de cada veículo: a famosa mão inglesa, a que não consigo me acostumar. Não é, felizmente, o que se dá com Felipe, que, logo pude perceber, é namorado de Lívia, que se mostra bem à vontade como condutor da camioneta.
Mal chegamos à cidade, impressiona-nos a quantidade de referências ao autor de Hamlet. A vida parece girar em torno de sua figura a um tempo mística e quase palpável: a casa em que nasceu, a escola em que cursou as primeiras letras, as placas indicativas com alusão a ele, tudo, tudo é Shakespeare aqui. Restaurante com seu nome, bar, loja de souvenirs, chaveiros, bonequinhos de todos os tamanhos, cortadores de unha, canivetes, as lembrancinhas todas têm o nome ou a efígie do bardo inglês. Uma idolatria para a qual não se vê comparação onde quer que seja, mesmo em se tratando de William Shakespeare.
Não bastasse saber-se que em Stratford-on-Avon está a sede da Royal Shakespeare Company, o Royal Shakespeare Theatre, onde acontecem as mais renomadas montagens a partir dos textos desse filho ilustre, nascido na cidade em 1564, o lugar deslumbra-nos, como se voltássemos no tempo à procura de seres que nunca existiram, fantasmas feitos de poesia e sonho.
Como tivéssemos de retornar a Londres ao final do dia, ainda agora, quando escrevo estas lembranças de viagens, ocorre-me uma sensação de desamparo que reedita a frustração de não ter podido visitar com mais atenção tantos e tantos daqueles lugares impensáveis em que, na contramão do que afirmam alguns, esteve um dia o 'inventor do humano' de que nos falou o crítico Harold Bloom em livro clássico.
Embora as horas desse dia às margens do rio Avon passassem com uma rapidez espantosa, aproveitamos maravilhosamente bem o dia, quase não parando sequer para comer, o que fazemos num ou outro pub. Conhecemos ainda a New Place, onde supostamente terá morrido Shakespeare; a Holy Trinity Church, onde está sepultado o teatrólogo, entre outros pontos turísticos, num dia de que jamais irei esquecer.
Era por volta de onze da noite quando chegamos a Londres. Cansado, extremamente cansado, à entrada do hotel ainda arrisquei uns versos de Shakespeare, no que fui seguido por Lívia, num inglês castiço: "To be or not to be, that is the question".
Shakespeare contava 36 anos quando escreveu a peça. Desde então, passaram-se mais de quatrocentos anos, e, no entanto, poucas obras de arte terão permanecido tão vivas, tão perto de nós, operando milagres que só a literatura é capaz de operar. Haverá como compreender as razões por que isso acontece? Não saberia dizer. Talvez, muito talvez, porque a dignidade de Hamlet, sua incansável busca da verdade, suas reflexões sobre o sentido da vida e do estar-no-mundo, a beleza de suas falas, o sortilégio de seu silêncio, suas convicções e seus delírios, digam um pouquinho de cada um de nós.  

sexta-feira, 13 de junho de 2025

A dama de preto

Em "Personagem", poema antológico, Cecília Meireles descreve uma personagem silenciosa, sem forma definida, um ser ausente que existe unicamente no universo onírico do eu-lírico. Essa figura, "sem forma e sem nome", é, no entanto, objeto de um desejo indomável, embora exista apenas no "abismo do meu sonho".

Em letra de música de rara beleza, Eduardo Dusek e Isolda apresentam como objeto poético um ser nunca visto, e, no entanto, amado, sentido nas entranhas da alma, "lembranças de um tempo esquecido" que insiste em voltar: "Que saudade é esta de um amor que não tive?/Por que é que te sinto, se nunca te vi?/(...) Diz se fiz com os céus algum trato/Esclarece esse fato e me faz compreender/Esse beijo, esse abraço na imaginação/E descobre o que guardo pra ti no meu coração/(...) Mas deixa eu sonhar/Deixa eu te ver/Vem e me diz quem é você".

PARIS. Também conhecido como Beaubourg, o Centro Cultural Pompidou, ou simplesmente Centre Pompidou, é um dos lugares mais visitados da França. Zaira, Batista, C. e eu chegamos cedo, ávidos de explorar com a melhor atenção este espaço ocupado por alguns dos mais bem-sucedidos projetos culturais franceses de todos os tempos.
O prédio já impressiona pela excentricidade do seu projeto, com tubulações hidráulicas aparentes, o diálogo indisciplinado do ferro e do concreto, suas imensas escadas rolantes e os muitos elevadores panorâmicos. A biblioteca, que ocupa três pisos do edifício, possui um acervo gigantesco, os eventos ligados à arte são frequentes e quase sempre grandiosos, mas é o Musée National d'Art Moderne que mais impressiona. Pela primeira vez deparo com obras de Picasso, Matisse e do abstracionista americano Jackson Pollock, alguns dos artistas da modernidade que admiro mais.
Enquanto contemplo atentamente Tristeza do Rei, de Matisse, supostamente a sua última obra, aparece ao meu lado, vinda do improvável, uma dama de preto, elegante e detentora de uma beleza ligeiramente exótica. Faz considerações inteligentes sobre a técnica do pintor modernista desde que foi diagnosticada a doença irreversível que o levaria à cadeira de rodas. Olhando-me vez e outra, fala com desenvoltura sobre os recortes feitos com o auxílio de uma tesoura a partir de cartolinas previamente coloridas a guache, absolutamente diferentes de tudo o que fizeram outros grandes nomes da arte moderna, como Picasso e Kandinsky. Finalmente comenta a Tristeza do Rei com um domínio de análise em tudo convincente, original e profundo.
Olha-me ainda uma vez, despede-se com o seu francês impecável, embora deixe claros sinais de que não nascera aqui, que apenas retorna a este centro pelo amor às artes, com que parece traçar seus rumos, tecer seus projetos, edificar a vida. Atravessa o salão com passadas firmes e serenas. Como se fora uma garça negra, sequer olha para os lados, vai, vai altiva e bela, até que desaparece por uma porta de saída.
Percebo que minha companheira acompanhara a rápida conversa com a dama de preto, que olhara, quem sabe de soslaio, querendo e não querendo dar a ver o seu desconforto. Dirijo-me a ela, que tão-somente responde ao que pergunto, indiferente, fria, ligeiramente ruborizada, como ficam os enciumados nessas horas.
Quando deixamos o Beaubourg, descendo pelas escadas rolantes, ainda carrego na memória todos os gestos, todas as palavras, a expressão do olhar, o sorriso indecifrável com que me dirigira a palavra, na eternidade daquele instante, a dama de preto.
Esteta, crítica de arte, também ela artista? Fico a imaginar o que pode o inusitado, o imprevisível da vida. O que justifica que alguém que jamais verei novamente, de quem sequer sei o nome ou de onde veio, sequer se existe de fato, penetre tão fundo a alma, deixe no peito algo que não é saudade, mas que em tempo algum será esquecimento?
Vinte, vinte e poucos anos depois, voltando àquele lugar, ainda me perseguia na lembrança essa mulher que talvez nunca tenha existido, mas que consigo ver, rever, ouvir, sentir, quase tocar, com sua voz doce, com suas mãos expressivas, com seu olhar enigmático, com as mesmas passadas firmes e elegantes, até desaparecer outra vez…
Ao chegar à praça em frente ao Centre Pompidou, onde se veem artistas em plena execução de suas obras, caminho em direção ao Atelier Brancusi, bela reconstituição da oficina do artista plástico romeno Constantin Brancusi. Desta vez, estou só. Vem-me uma nostalgia das pessoas com quem estive aqui alguns anos antes. Lembro de C., de Zaira, do jovem e talentoso Batista. E como se por um passe de mágica, obra do talvez ou do quem sabe, ainda vejo à distância a dama de preto.
É quase noite, tomo o rumo de uma estação de metrô e cruzo os braços numa tentativa de me proteger do frio, que agora parece me cortar o corpo --- e afagar a alma, inebriada pelo perfume de uma simples mulher vestida de preto.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

A música como que por milagre

Quase sempre o extraordinário começa no ordinário, assim um estudioso de fama definiu o despertar para a música. Em inícios dos anos 60 chega a Iguatu o bispo Dom José Mauro Ramalho de Alarcon e Santiago. Eu tinha uns seis, sete anos, e lembro que a cidade se engalanou para recebê-lo. Uma festa.
Homem de refinada extração intelectual, amante da música erudita, Dom Mauro, mal chegara, adotou uma prática que exerceria sobre mim grande influência no que diz respeito ao senso estético: mandou instalar um sistema de som em volta da Catedral e, duas ou três horas antes da missa das cinco, alto-falantes em forma de cornetas espalhavam no entorno da praça as maiores composições de Beethoven, Chopin, Tchaikovsky, Bach, Haydn, Strauss e tantos outros.
Estou certo que, daí, nasceu o meu gosto pela música clássica, como apreciador, como diletante, claro, uma vez que não tenho qualquer formação musical. Neste instante, fecho os olhos e chego a escutar, por exemplo, As quatro estações, de Vivaldi. Gostava mais da Primavera, embora, à época, não soubesse de que concerto se tratava e, sequer, quem o compusera. Mas o solo dos violinos me encantava, como que me transportava dali para a natureza em festa, o canto dos passarinhos acariciando-me os tímpanos e a alma. Pura intuição, uma captação impressionista daquele som tão envolvente e sedutor, cobrindo de ternura as nossas tardes de domingo.
Anos depois, adquiriria quase tudo o que chegava às lojas dos principais clássicos, os românticos à frente. Passei a ouvir com certa freqüência Mozart, Schubert, Listz, Dvorak, Sibelius, Haendel, Wagner, Bizet e muitos e muitos outros. Tudo, insisto, por conta das tardes domingueiras de Iguatu. E pela sensibilidade artística de Dom Mauro.
Mas é Ludwig van Beethoven, o meu compositor favorito. Apaixona-me a força e o brilho de suas composições, sonatas, concertos, sinfonias – e a profundidade de sentimento que emana de sua arte incomparável. Emocionam-me, desconcertam-me mesmo, os contrastes abruptos e a intensidade emocional da quinta ou a alegria contagiante da nona, sua última sinfonia. A arte, enfim, desse artista extraordinário, criador de obras que desafiaram as fronteiras geográficas e romperam as marcações do tempo.
Dele, em medida de grandeza que faz jus ao gênio alemão, Jan Swafford, premiado compositor e musicólogo, escreveu a monumental biografia "Beethoven: Angústia e Triunfo", que recomendo com entusiasmo aos que amam a música.
Ocorre-me recordar agora: Certo dia, no Rio de Janeiro, vou com minha mulher, à época, e Saulo, meu filho, assistir ao filme Minha Amada Imortal, de Bernard Rose, com uma excepcional interpretação de Gary Oldman no papel de Beethoven. A obra narra uma história a um tempo simples e curiosa: Viena, 1827. Beethoven morre e um amigo, Anton Felix Schindler, decide realizar o último desejo do compositor, que é deixar para a mulher sua herança. No testamento, contudo, não diz o nome da mulher, a sua "Amada Imortal." A empreitada é desafiadora e revela a face desconhecida do gênio.
Lembro que, como o cinema estivesse lotado, sentamo-nos no chão, acomodando-nos com alguma dificuldade. Saulo, pequenino, tinha por volta dos três ou quatro anos, adormece no colo da mãe. A beleza do filme, a família ali reunida no chão acarpetado de uma sala de cinema no Rio, e, sobretudo, a música prodigiosa de Beethoven traziam-me uma emoção imprevista, uma vontade de chorar, não de tristeza, mas de alegria, de felicidade e de gratidão a Deus pelo milagre da vida. Apertei suavemente a mão de minha mulher, e, ao som de Sonata ao Luar, que considero uma das mais tocantes composições de toda a história da música clássica, fiquei extremamente emocionado, segurando a custo as lágrimas que me encharcavam os olhos naquele instante.
É, de fato, uma cena lindíssima do filme de Rose. Relembro com detalhes seu desenrolar: Beethoven, já quase completamente surdo, escreve e executa ao piano Sonata ao Luar, acompanhado à distância, sem que o saiba, por Anna Marie Edordy, vivida pela atriz Isabella Rossellini, a sua amada. A fim de sentir a música, já quase inteiramente surdo, Beethoven encosta o ouvido à madeira do piano, sente suas vibrações. Uma cena desconcertante, extremamente poética, primorosa, cinematograficamente perfeita.
Assim, a música esteve sempre presente na minha vida, de todos os gêneros, de uma forma em nada preconceituosa. Gosto, gostei sempre, da Música Popular Brasileira, por exemplo, assim como da música de outros países, de outras matrizes culturais, e da música erudita, objeto de minhas recordações de agora.
Tenho o hábito de acordar cedo e, aos primeiros raios do sol, ouvir música, como que para começar o dia de maneira harmônica e melodiosa.
A música, assim como Deus, exercendo sobre mim o poder jamais compreendido de operar milagres.
Dom Mauro faria por esses dias 100 anos. Foi com ele, em termos musicais, que tudo começou para mim.


quarta-feira, 28 de maio de 2025

O primeiro leitor, ensaio de memória

"Que enorme contradição é escrever algo memorialístico, tendo uma proposta existencial que valoriza o silêncio e a reclusão", Luiz Schwarcz.
No campo teórico torna-se difícil estabelecer diferenças rigorosas entre a autobiografia e o que se convencionou chamar de memórias. Mesmo o diário pessoal e as confissões, à maneira de Agostinho e Nelson Rodrigues, para ir de um extremo a outro, têm suscitado desencontros classificatórios.
O certo é que o gênero, cujas características suscitam uma boa dose de subjetivação, equilibrando-se entre as recordações do sujeito e o registro historiográfico propriamente dito, tem ocupado significativo espaço nos catálogos das mais prestigiadas editoras, constituindo uma porção nunca desprezível em meio às publicações e eventos da atualidade associados ao livro.
Costuma-se afirmar que a autobiografia se presta mais adequadamente ao relato objetivo e referencial de uma existência, não dando margem a que o autor perca de vista a realidade, o meio e o momento histórico narrados.
Já as memórias, ainda que guardem pertinência com os fatos relatados, enseja uma certa liberdade do autor na reestruturação desses fatos, transitando com relativo "à-vontade" sobre acontecimentos e lembranças o mais das vezes encobertos pela fumaça do tempo vivido.
As memórias trazem em si, porque natural, uma quase inevitável tendência para o que se convencionou classificar de texto literário, aquele em que os recursos formais da narrativa pesam quase tanto quanto o próprio conteúdo.
Numa e noutra, no entanto, é a existência do autor que se coloca no centro dos acontecimentos, não como uma atitude narcísica, mas como esteio para os fatos pregressos considerados dignos de se transmitir ao leitor.
Exemplo notável de memórias, tal qual as consideramos acima, é o belíssimo "O primeiro leitor, ensaio de memória" (Companhia das Letras, 2025), livro de Luiz Schwarcz que acaba de chegar às livrarias e já se consagrou como um clássico do memorialismo brasileiro contemporâneo.
O título, como o leitor mais atento pode constatar, e o próprio Schwarcz deixa claro na Introdução, dialoga "incidentalmente" com "O último leitor", do escritor argentino Ricardo Piglia. Segundo Schwarcz, provocado por um amigo a revisitar o texto do escritor argentino (e seu amigo pessoal), veio-lhe à mente a comovente história de Che Guevara "lendo numa árvore, criando um intervalo na perseguição que sofria na Bolívia".
Editor de sucesso, incontáveis vezes premiado no Brasil e em eventos de prestígio internacional, como a Feira de Livros de Frankfurt, a que dedica curiosas passagens do livro, Luiz Schwarcz transita do "ensaio de memória", como decidiu rotular a obra, para o autobiográfico tradicional, com a mesma habilidade no tratamento de linguagem e  na construção do estilo, procedendo a escolhas de estratégias narrativas não raro surpreendentes.
Se é elegante no plano da expressão, todavia, é no plano do conteúdo que o livro seduz o leitor. As histórias envolvendo amigos, escritores e editores, são invariavelmente sedutoras, mesmo aquelas em que as situações vividas não foram as mais confortáveis. O rompimento da amizade com Rubem Fonseca, por exemplo, é narrado com elogiável transparência, sem jamais incorrer em gestos de mínima deselegância. Pelo contrário, Schwarcz revela-se exemplarmente honesto em relação a tudo o que existe de mais relevante em sua trajetória, desde o início de sua carreira, sob as bênçãos de Caio Graco Prado, a quem se diz em dívida impagável pelos bons ensinamentos e desinteressada amizade, até se tornar a figura central do mercado livreiro no Brasil.
Nesse sentido, aliás, é que "O primeiro leitor, ensaio de memória" representa uma contribuição importante para a história da produção, confecção e comercialização do livro no país. Ao lado de ser delicioso como matéria de leitura.
A pretexto de contar sua vida como editor, portanto, o que faz exemplarmente bem, Luiz Schwarcz presta uma bela homenagem a pessoas com as quais convive ou conviveu, dos mais simples funcionários da Companhia das Letras, a quem se dirige com humildade por muitas vezes não ter dispensado a devida atenção e reconhecimento, à gente graúda do mundo intelectual, nomes como José Paulo Paes, Paulo Francis, Susan Sontag, José Saramago, Jô Soares e Jorge Zahar. Vai além, deita reflexões sobre literatura e leitura, sobre a dolorosa experiência de rejeitar livros de autores conhecidos e, não raro, amigos. Revela como se dá o processo de criação, seleção e publicação de livros. E a paixão nascida da leitura de um conto de Lima Barreto durante uma aula, ainda menino.  
Essas e outras razões por que "O primeiro leitor, ensaio de memória" é livro incontornável em matéria de memorialismo pessoal e livresco.
Para ler e reler, diga-se em tempo.
 
 
  
 
  

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Sobre livros e leitores

"Aqui, na altura dos olhos, sondando as profundezas da alma humana, deparo com Dostoiévski --- e outros russos, por óbvio: Gorki, Púchkin, Turguêniev, Gógol, Tchekov, Maiakovski; um pouco abaixo, titubeando entre o ser e o não ser, repousa Shakespeare; ali, um tanto amarrotado, vê-nos, sarcástico e impostor, Machado de Assis; acolá, entre pessimista e desmistificador, está Franz Kafka, contorcendo-se em metamorfoses. Na solidez do seu silêncio, velho detentor da razão, repara-nos, de soslaio, Immanuel Kant, indiferente às luzes que emanam de Voltaire, Montesquieu, Rousseau --- tão próximos dele, quase ao lado. E aquele barbado alemão, assertivo, que renasce das cinzas em sua genialidade?" (Alder Teixeira, em Conversa de Leitor: De códices e livros, de livrarias e livreiros, de Paulo Elpídio de Menezes Neto, 2023).
Vira e mexe, indagam-me, curiosos de como me fiz leitor: "Como você adquiriu o hábito de ler?" Num país em que são desanimadores os números que quantificam aqueles que leem com frequência, realidade que vem se agravando com a massificação das novas tecnologias, falar do hábito da leitura é quase uma missão para os que ainda amam os livros e creem, utópicos e confiantes, que se pode "vencer o inimigo invencível".
Autor de obra importante sobre a matéria, "A Geração Ansiosa", best-seller incontrastável, o estudioso americano Jonathan Haidt expõe com desencanto que o problema não é só das crianças e adolescentes. Também os adultos, ressalta, sofrem o impacto das novas tecnologias, e se embrutecem: "É bem possível que toda a humanidade esteja ficando mais estúpida desde 2015, que é o momento exato em que nossas máquinas passaram a ficar mais inteligentes, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, edição dessa quarta-feira 21. "É preciso agir agora", disse, entre realista e sonhador.
Volto ao início de nossa conversa. E revelo, em parte, como me descobri um leitor compulsivo, amigo dos livros, dos filmes, das artes.
Tenho comigo as palavras do professor Marcos Agra, quando estudava o pré-universitário em Campina Grande: – "Leia tudo. Dos clássicos aos cordelistas, mas escolha bem as suas leituras."
Àquela altura, para um filho de uma cidade pouco afeita à literatura, já era considerável o que havia lido. Gostava dos regionalistas de 30, sobremaneira Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Verissimo. Deste último, com a idade de 16, 17 anos, traçara os cinco volumes da trilogia O Tempo e o Vento, além do 'pequeno príncipe' brasileiro Olhai os Lírios do Campo e o excepcional Incidente em Antares, que considero o seu melhor romance. Um pouco de Alencar e Machado de Assis, é verdade. Este viria a ser a minha cachaça algum tempo depois.
Além deles, já conhecia um pouco da literatura portuguesa, Eça de Queirós à frente, de quem leria O Primo Basílio, O Crime do Padre Amaro, A Ilustre Casa de Ramires e Os Maias.
Entre os poetas, com frequência, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Vinicius de Morais. Era capaz de dizer de cor muitos dos seus poemas, o que despertaria em mim o interesse pelo teatro, que faria a partir da época de Campina Grande.
Em 1975, seria premiado como o ator revelação do ano, pela interpretação de um dos papeis centrais da peça O Palácio das Ilusões de Uma Negra, escrita a quatro mãos por Adrianne Kennedy e John Lennon, sobre a qual, não faz tempo, discorri neste mesmo espaço.
Mas foi o professor Agra quem me apresentou autores mais profundos, emprestando-me os primeiros Kafka, Wilde, Proust e um ou outro russo. Daí nasceria, também, o meu entusiasmo pela literatura francesa, sobretudo, com a descoberta de Flaubert, Zola, Balzac, Stendhal e os malditos Baudelaire, Rimbaud e Paul Verlaine.
Depois viriam Dostoiévski, Tólstoi, Górki e Tchékhov. Deste, em especial os textos teatrais me impressionavam. Ao ler as peças As Três Irmãs, A Gaivota e Tio Vânia, adquiri o hábito de ler os textos para teatro como produções literárias, uma vez que só muito raramente teria a oportunidade de vê-las montadas no palco. Veio o tempo, e me permitiu correr mundos e perigos, devorando os clássicos, da tragédia grega aos contemporâneos: Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, incontornáveis. E Shakespeare, Pirandello, Brecht... 
Mais tarde descobriria Nelson Rodrigues, o grande gênio do teatro brasileiro e um dos nossos melhores cronistas. Ainda hoje, sempre que posso, releio Nelson, mais que isso, estudo Nelson Rodrigues, muito antes de seu teatro e suas crônicas caírem no gosto do grande público, há coisa de uns 30 ou 40 anos.
Tenho medo, leitor, que soe arrogante declinar tantos nomes de autores e obras nestas minhas memórias. Mas, ainda que correndo o risco de ser mal-entendido, vou em frente. Quero que esta coluna, bem na linha do que tem feito, suscite algum interesse pela grande literatura. É meu ofício de professor fazer despertar a curiosidade pelos bons livros, contaminar aqueles que não foram contaminados ainda com o micróbio desta doença maravilhosa que é a paixão pela arte. Se a vida, por algum golpe de sorte, que não sei bem explicar ou entender, fez-me assim, vejo nisso um tipo de milagre e quero partilhar com você as suas benesses. As boas coisas devem ser compartilhadas. Permitam-me fazê-lo, que é boa a intenção.
P.S. Enquanto escrevo a coluna, vem de Paulo Elpídio de Menezes Neto o anúncio de um "mimo", que os bibliófilos gostamos de presentear: "Oeuvres", de George Steiner, em bela edição em francês da Quarto Gallimard. 

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Mãe do medo e da covardia*

"Será que poderia haver um campo mais amplo do que... um tratado sobre a ignorância?", Francesco Petrarca (1304-1374)
O autor é conhecido por suas incursões no campo do conhecimento, tendo publicado livros incontornáveis sobre o assunto, a exemplo do clássico "O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag".
Mas é seu livro mais recente que vem, particularmente, em boa hora, como a apontar caminhos para a compreensão de um tempo marcado por tantas contradições e fundamentalismos que se contrapõem à racionalidade como a entendemos em termos objetivos.
Refiro-me a "Ignorância, uma história global", Editora Vestígio, 2024, do historiador britânico Peter Burke, cuja leitura é mais que recomendável num momento em que se assiste à produção da ignorância como uma ameaça à democracia e à preservação do Estado Democrático de Direito e aos pressupostos do que se convencionou chamar de Iluminismo, ou seja, a ideia setecentista de que o conhecimento é a condição "sine qua non" para o progresso material, espiritual e, frise-se, moral.
Como a epígrafe que o autor escolheu sugere, curiosamente extraída de uma fala famosa do político brasileiro Leonel Brizola, durante um debate, "A educação não é cara. Cara mesmo é a ignorância", o livro constitui um criterioso levantamento da história da ignorância e  de como a ausência de conhecimento pode explicar o mal-estar da realidade contemporânea mundo afora, num cenário de ressurgimento de movimentos de extrema direita em diferentes países, bem na perspectiva do que ocorre no Brasil hoje.
Casado com uma brasileira, a também historiadora Maria Lúcia Pallares, professora de Cambridge, com quem escreveu um livro sobre Gilberto Freyre, Peter Burke é bom conhecedor do país, que visita com certa frequência, razão por que alude ao passado recente da política nacional e da figura do ex-presidente Jair Bolsonaro como exemplo do que existe de pior em termos de ignorância, aquela que leva (palavras minhas) tanta gente a defender o "terraplanismo", a bater continência para pneus e professar a volta do regime militar como caminho para o que considera a definitiva redenção do Brasil.
É nesse sentido, pois, que, no capítulo 11, intitulado "A ignorância na política", Burke reporta-se ao ex-presidente como verdadeiro exemplo de ignorância presidencial, bem como o seu guru norte-americano, Donald Trump, sofrendo "de ignorância em sua forma mais aguda, a de nem mesmo saber que nada sabe".
Como prova da absoluta ausência de conhecimento do "mito" da extrema direita brasileira, cita a crise do novo coronavírus de 2020, destacando a recusa de ambos, Jari Bolsonaro e Donald Trump, em compreender a seriedade do problema, criticar os epidemiologistas e defender o uso de medicamentos de eficácia duvidosa, como a hidroxicloroquina.
A abrangência do levantamento e o alcance da análise, no entanto, são muito maiores. Burke discorre sobre as diferentes formas de ignorância, de como elas se manifestaram no transcorrer da história, como cada época emite juízos imprecisos sobre seu passado: os renascentistas consideravam a Idade Média como uma era das trevas, o chamado Século das Luzes procurou vencer a superstição e a religiosidade, impondo a razão e o cientificismo como alternativas únicas para os problemas da sociedade. Vai além e chega ao mundo hodierno, enredando-se ele na realidade hiperconectada e um tanto perdido em face de suas consequências ainda imprevisíveis.
Em palavras ligeiras, portanto, "Ignorância, uma história global", de Peter Burke, é leitura de que não se deve prescindir se se tem qualquer pretensão de identificar por que, como, onde nascem as monstruosas ameaças da atualidade no campo da religião, da ciência, da política e dos negócios.
Com bela e lúcida apresentação de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, o livro tem no Brasil uma edição extremamente bem cuidada, tradução rigorosa de Rodrigo Seabra e, mais importante, um significado histórico que o credencia a figurar entre as grandes produções intelectuais de 2025. Confiram.
*O título da coluna dialoga com um verso de Chico Buarque de Hollanda.
 
 
 
 

terça-feira, 6 de maio de 2025

Alcatraz, fuga impossível

Em mais um de seus inqualificáveis desatinos, o presidente Donald Trump anunciou, no domingo 4, a intenção de ampliar e reabrir Alcatraz, o presídio famoso incrustado numa ilha da baía de São Francisco, na Califórnia.
A notícia, que poderia nada interessar a quem, como este escriba, não tem com os Estados Unidos qualquer relação --- e nutre pelo país assumida antipatia, diga-se em tempo --- desperta no amante do cinema, contudo, um tipo de sentimento que transita da indiferença ao comovido desconforto. Digo por quê.
Trata-se de uma das mais curiosas locações cinematográficas, cenário de alguns filmes clássicos sobre o sistema prisional americano, bem na linha de "Papillon" (1973), "Um sonho de liberdade" (1994) e, por óbvio, "Alcatraz, fuga impossível" (1979), com emblemática direção de Don Siegel e atuação soberba de Clint Eastwood.
Baseado numa história real, a tentativa de fuga de Frank Morris e dos irmãos Clarence e John Anglin, do então considerado presídio de segurança máxima do Estados Unidos, o filme marcou época em produções do gênero, não sem razão considerado um dos melhores de 1979.
Plasmado no livro conhecido de J. Campbell Bruce, o roteiro foi confiado a Richard Tuggle, que o desenvolveu à perfeição naquilo que é a essência da narrativa livresca: a capacidade de prender o leitor, de torná-lo completamente entregue à atmosfera dramática da história, fazendo-o mergulhar no conflito existencial de um homem determinado a superar a todo e qualquer custo o cerceamento de sua liberdade doentia, ela também alvo de desumanos mecanismos de punição legal, bem na linha do que o filósofo Micheal Foucault examina exemplarmente bem no incontornável "Vigiar e Punir".
Sob este aspecto, por sinal, é que se pode fazer a única restrição ao roteiro do filme: a indiferença diante das razões que antecederam o fio condutor da história, leve-se em conta que se trata de uma cinebiografia, gênero em que o documental é elemento indispensável na tessitura da narrativa fílmica.
Ao optar por contar a história de Frank Morris pelo viés psicológico, portanto, o que faz com notável capacidade de análise e visível domínio da fundamentação teórica acerca dos desajustes psiquiátricos da personagem (ou personagens!), Don Siegel, enquanto realizador, submete-se rigorosamente ao que o roteiro estabelece --- e não responde às perguntas do espectador ao final do filme: Quem foi Frank Morris? O que fez? A que se prende a sua incansável e quase irracional busca da liberdade? No livro de J. Campbell Bruce essas curiosidades são clarificadas para o leitor, porque indispensáveis para o completo entendimento da história.
Fosse uma mera obra de ficção, "Alcatraz, fuga impossível" poderia ser considerado, no gênero, um filme quase perfeito do ponto de vista cinematográfico. A tensão dramática advinda das estratégias narrativas escolhidas por Don Siegel é algo que sobrepuja clássicos sobre o sistema prisional americano*: os recursos de som e luz, a angulação da câmera e seus movimentos, a exploração do silêncio como elemento dramático, o enquadre muitas vezes claustrofóbico, a duração dos planos etc., tudo da narrativa fílmica é trabalhado por Don Siegel com esmero e rigor. Há momentos no filme, como nos planos mais abertos, em que o próprio presídio parece adquirir o status de personagem, ganhar vida e delimitar o curso da história com a impassibilidade de um membro de tribunal.
Uma das mais concorridas atrações turísticas de São Francisco, Alcatraz guarda ainda seus mistérios, sua realidade oculta, seu desumano fascínio. Visitei-o há alguns anos, adentrei seus corredores, salas, celas. Gravei vídeos, fotografei à exaustão sua tristeza, toquei, emocionado, suas paredes ainda úmidas e sujas --- o ferro frio de suas grades amarelas. Adentrei masmorras, entreguei-me em ouvidos para a música dos ventos, vindos da baía, em seus espaços vazios. Mas, acima de tudo, milagre do cinema, revi, gravadas na tela das retinas, as imagens inesquecíveis do belo filme de Don Siegel.
Trump delira. Alcatraz pertence, hoje, ao mundo da arte. E haverá de ter para sempre abertas suas grades, amarelas --- e dolorosamente tristes.
*"A rocha", (1996), de Michael Bay, com Sean Connery e Nicolas Cage, e "O homem de Alcatraz" (1962), de John Frankenheimer, com Burt Lancaster, são dois dos vários filmes ambientados em Alcatraz.
 

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Capital Mundial do Livro


Como no verso de uma de suas mais aclamadas canções, o Rio de Janeiro continua lindo. Vimos à cidade, entre outras coisas, para assistir ao show "Tempo Rei", último da carreira de Gilberto Gil em palco. Enquanto esperamos o início do espetáculo, entre um e outro gole de vinho "safra-ruim", comprado num quiosque próximo de onde estamos, fico a reparar no cenário parcialmente iluminado.
Há, nos momentos que antecedem o início de um show, de uma peça de teatro ou mesmo de um filme, antes que se apaguem as luzes e se abram as cortinas, algo indefinível, uma magia sem nome, como uma sensação de estranhamento, um misto de curiosidade e cúmplice emoção. Noutras palavras: há na arte algum sortilégio, uma força que emana do improvável e toca fundo nossos corações.
É o que sinto, enquanto trocamos impressões sobre as instalações da casa de shows, no coração da Barra, e, na contramão do que é recorrente em grandes eventos do gênero, o nível de organização, que nos impressiona. Tudo certinho, bem cuidado, desde a recepção, a passos da entrada, por moças e rapazes vestidos a caráter com roupas alusivas ao show, à acomodação propriamente dita --- o palco gigantesco a nossa frente.
No alto, uma espiral metálica que lembra o viravoltear de uma serpentina. Só começado o show, Gil conduzindo-se como se fora um menino, da vastidão de seus mais de oitenta anos, voz e violão arretados, pudemos perceber que serve o inusitado adereço para projetar sobre a multidão a fina poesia do artista baiano, oscilando o público entre o silêncio deslumbrado e a incontida movimentação de uma dança que se confunde com um ritual sagrado.
Na última turnê de uma carreira exemplarmente vitoriosa, Gilberto Gil parece cantar como nunca, como se o tempo, ao invés de lhe estragar a voz, desse a ela um brilho novo, uma afinação que se tornou irretocável, um jeito de escandir palavras e articular falsetes que dizem, no apagar das luzes de uma carreira brilhante, o que só aos grandes artistas, à maneira de Dostoiévski, é dado dizer: "A beleza salvará o mundo".
***
De agora até abril do próximo ano, o Rio de Janeiro é a Capital Mundial do Livro. De Estrasburgo, França, a Cidade Maravilhosa recebeu neste mês a "tocha literária", e a empunhará como símbolo da luta dos poderes constituídos em favor da leitura, da literatura, do livro.
Do palco do Teatro Municipal, ancorando-se nas potências da Inteligência Artificial, ouvem-se as vozes de Machado de Assis, Olavo Bilac e Rui Barbosa, como se renascendo das páginas de livros gigantes que decoram o cenário do mais belo dos teatros brasileiros na solenidade de abertura da efemeridade.
O negativismo das previsões sobre a sobrevivência do livro físico, golpeado pelo livro eletrônico e outras mídias digitais, é felizmente contrariado: pesquisas apontam que o mercado do livro eletrônico atinge hoje, no Brasil e na Europa, algo em torno dos 6% ou 7% dos livros vendidos. Ao redor dos 94% do mercado, pasme o leitor, são de livros convencionais, esses que folheamos em contato direto com o papel, de que acariciamos a textura e respiramos o perfume inconfundível de que se enchem os nossos pulmões antes da boa leitura.
A contar positivamente na busca de incentivos ao hábito de ler, entre outras ações que se traduzem na reabertura de livrarias e melhoramento das bibliotecas existentes, salta aos olhos a belíssima iniciativa governamental de proibir o uso de celulares nas escolas. Há poucos meses da adoção da medida, já se constatam avanços no rendimento escolar (em matemática, línguas e interpretação de textos) e aumento na frequência às bibliotecas dos colégios de ensino médio, além de terem caído os eventos associados à prática do bullying e cyberbullying.
A demandar iniciativas, afirmam livreiros e especialistas, ainda constitui um desafio o preço dos livros no Brasil. Não se trata de tabelamento, mas do preço fixado pelos editores, hoje brutalmente elevados.
Capital Mundial do Livro, o Rio de Janeiro é, por longo tempo, muito mais que samba, bundas e carnavais. Regozijemo-nos.
 
 
 
 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Simplesmente eu, Clarice Lispector

            "A arte é o vazio que a gente entendeu", C.L.

RIO --- Em companhia do escritor Clauder Arcanjo e de sua gentilíssima Luzia, Liana e eu assistimos, no Teatro I Love Prio, nesta cidade, ao espetáculo "Simplesmente eu, Clarice Lispector". Plasmado em textos, entrevistas, cartas e depoimentos da autora de "Perto do Coração Selvagem" (1943), a montagem tem direção, adaptação e interpretação (irretocável) de Beth Goulart, constituindo um belo apanhado da obra de Clarice --- uma espécie de ode ao amor, à busca da essência do ser humano e do sentido da existência num mundo marcado por tremendas contradições e impensáveis desafios.
Num espaço cênico minimalista, onde se veem apenas um divã, uma cadeira e uma humilde escrivaninha, sobre a qual sobressai uma máquina de escrever portátil, Goulart conduz o espectador pelo fascinante universo de Clarice Lispector, explorando vida e obra da escritora com rigor estético e notável força dramática. Os méritos da montagem, no entanto, vão além da atuação propriamente dita da atriz, como disse, irrepreensível, mas porque resulta não menos feliz enquanto representação do mundo interior de uma mulher cujo perfil psicológico ganha corpo e voz numa escrita a um só tempo íntima e universal.
Ao público mais familiarizado com a ficção de Clarice Lispector, já no começo da peça, saltam aos olhos fragmentos extremamente bem selecionados de livros representativos da escritora, desde o romance de estreia, "Perto do Coração Selvagem" (Joana), a outros títulos de sua fase mais madura, com destaque para "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres" (Lóri) e os contos "Amor" (Ana) e "Perdoando Deus" (A mulher sem nome), este, provavelmente, o ponto mais elevado em termos dramáticos nas quase duas horas de espetáculo.
Por outro lado, como a dar a exata dimensão do domínio técnico da atriz, sobressai a correção com que Beth Goulart internaliza os conflitos pessoais e as diferentes facetas de Clarice Lispector, transitando com igual segurança da ironia sutil ao deselegante de sua conhecida irascibilidade.
Há momentos, sob este aspecto, em que é a voz de Clarice Lispector que parece ecoar pelos espaços do teatro, como se Goulart tão-somente a dublasse em playback, recurso de sonorização fartamente usado em trabalhos do gênero. Não é o que se vê neste belo e por demais convincente "Simplesmente eu, Clarice Lispector". É que a atriz se dedicou com desmedida paixão e rebuscado senso profissional a viver a personagem em toda a sua complexidade: ao lado da técnica vocal esmerada, o corpo responde coerentemente ao que diz a voz, quer quando gesticula, quer quando escande sílabas ou mastiga palavras com a mesma imperfeição prosódica e dicção inconfundível de Clarice Lispector.
Além da interpretação "absoluta" de Beth Goulart, deve-se colocar em evidência outras qualidades do espetáculo: a música original, de Alfredo Sertã, assumidamente inspirada em repertório conhecido de grandes compositores, Erick Satie e Astor Piazzolla, por exemplo, anda em sintonia com as ciclotimias emocionais da personagem e da atmosfera dramática do texto. A luz, de Maneco Quinderé, é outro elemento cênico a merecer destaque, obedecendo com sensibilidade e fina percepção pragmática ao ritmo narrativo da peça, acrescentando beleza e plasticidade à encenação.
Findo o espetáculo, já no hall do teatro, Clauder Arcanjo, especialista na obra dessa que é uma das mais importantes escritoras brasileiras, e eu, simples amante, assim como as duas mulheres, ombreamo-nos com igual entusiasmo e os mesmos rasgados elogios a Beth Goulart, e, por extensão, é óbvio, ao sublime "Simplesmente eu, Clarice Lispector".
 
 
  

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Vida e beleza em meio aos mortos

Uma manhã de sol, em Paris, sou acordado bem cedo por um amigo brasileiro que chega à cidade pela primeira vez. Era espírita devotado, queria, antes de qualquer coisa, visitar o Cemitério Père Lachaise. Não me ocorreu que essa fosse uma prioridade no programa de alguém que chega a Paris numa manhã de sol.
Explicou-se. Ali estão enterrados grandes vultos da humanidade, entre eles, Allan Kardec, o pai do espiritismo. E, para me convencer de que valeria a pena irmos ao Père Lachaise, desfia um rosário de nomes famosos que descansam ali. Sabendo-me amante da literatura, menciona Honoré de Balzac, Oscar Wilde, Paul Éluard, Marcel Proust, entre outros. Vai à música: Maria Callas, Édith Piaf, Rossini, Frédéric Chopin. Cita pensadores: Pierre Bourdieu, Auguste Comte, Michelet. Atores e cineastas: Sarah Bernhardt, Marcel Camus, Yves Saint-Laurent. E, como sabe que aprecio a pintura, dá-me o golpe fatal: Amedeo Modigliane, Eugène Délacroix, Jeanne Hébuterne…
Levanto-me, traço um café au lait avec petit-beurre, e saímos em direção ao metrô.
O Cemitério Pére Lachaise fica nos arredores do gigantesco centro de Paris, vigésima circunscrição administrativa da capital francesa. É o principal cemitério da cidade e o mais famoso do mundo. Fica no alto de uma colina, de onde se vê Paris. É bastante arborizado e, diferentemente do que se dá na maioria dos cemitérios, o lugar exerce sobre o visitante um certo sortilégio. É mágico. É fascinante estar aqui.
O nome constitui uma homenagem ao confessor de Luís XIV, Père de La Chaise, e seu terreno foi adquirido por Napoleão, em inícios do século XIX. O projeto dessa necrópole foi confiado ao arquiteto Alexandre Théodore Brongniart, em 1803.
É expressivo o número de pessoas que visitam todos os dias este campo santo. Sem que tivéssemos combinado, para que se tenha uma ideia, vamos cruzar com muitas pessoas conhecidas, brasileiros que, como nós, estavam aqueles dias em Paris e com as quais havíamos estado antes, em algum lugar. É curioso como um recanto destinado aos mortos, guarde tanta vida, tanta animação. Aqui, as pessoas riem, brincam, comem sanduíches e bebem refrigerantes. Uma festa. E muita fotografia, claro, que, para todos os efeitos, não é coisa permitida.
Os túmulos lembram monumentos. Repousam sob imensos blocos de pedra, como disse, celebridades. Consta que, pela incomensurável demanda da burguesia parisiense o Pére Lachaise teve de passar por muitas reformas e ampliações. A localização do cemitério, um lugar de difícil acesso, ensejou uma grande insatisfação entre os franceses, até que, para cá, viessem trasladados restos mortais de pessoas importantes da sociedade parisiense. Hoje, é motivo de orgulho para os franceses, e constitui uma das mais procuradas atrações turísticas da cidade.
Logo à entrada, numa pequena via ladeada por pilastras e grossas correntes, deparamos com um mapa do cemitério, em que se veem outras informações relevantes para o visitante. As ruas são pavimentadas, renques de árvores ladeando o caminho.
O primeiro túmulo que visito é o da escritora Colette, em cuja lápide se lê a inscrição sucinta: Ici repose Colette (1873-1954). Em seguida, o de Louis Visconti (1791-1853), arquiteto, um mausoléu imponente, encimado pela figura do artista em posição de descanso. A escultura é, sem si, uma obra de arte em estilo neoclássico do mais elevado nível.
E vou, agora sem a companhia do amigo espírita, que desabalara à procura do jazigo de Allan Kardec, percorrendo as alamedas pavimentadas em cujas laterais estão as sepulturas. Paro aqui, dou uma espiadela ali, demoro numa e noutra, leio as inscrições, os epitáfios, os elogios fúnebres gravados das mais variadas maneiras, sempre atento, contudo, sem jamais perder de vista o significado de estar na morada de muitos dos maiores vultos da história das artes, da filosofia e de tantos outros campos do conhecimento.
Louis-Jacques David (1748-1825) está logo ali. Diante do túmulo do pintor neoclássico, ocorre-me lembrar das suas obras vigorosas, vibrantes, a vocação para registrar os atos heróicos do povo. Vem-me aos olhos, num registro da memória, O Juramento dos Horácios, com que o artista celebra a arte, a glória e o patriotismo da Roma antiga. Vi-o, há poucos dias, no museu do Louvre. É um dos quadros mais belos da história da pintura e faz parte do conjunto de obras de que mais gosto, que mais admiro.
Adiante, lado a lado, dois monstros sagrados da literatura: La Fontaine (1621-1625) e Molière (1622-1673), próximo, a poucos metros, deparo com o mausoléu do pintor Jean-Baptiste Camille Corot (1796-1875). À esquerda, mais simples e não menos belo, o túmulo de outro grande nome das artes plásticas, Dominique Ingres (1780-1867).
E vou, sem perder o entusiasmo, visitando a morada de grandes nomes, paro aqui, passo a vista acolá, anoto uma coisa e outra, fotografo… O diário já cheio de rabiscos.
Agora, a dançarina Isadora Duncan (1877-1927), minutos depois, la famille Gasson-Piaf, onde repousa a genial Édith (1915-1963). Atrevidamente, solfejo La vie en rose, ao que me segue, num francês elogiável, o meu amigo espírita, que voltara finalmente à minha companhia.
E assim, concluímos a visita ao Pére Lachaise, duas ou três horas depois. Não sem antes irmos, ainda, aos túmulos de Oscar Wilde (1854-1900), Marcel Proust (1871-1922), autor que me fascinara com o seu monumental Em Busca do Tempo Perdido, George Bizet (1838-1875), Honoré de Balzac (1799-1850) etc.
Sobre a lousa de mármore dos túmulos, é comum se verem bilhetes, declarações de amor aos que ali repousam. No de Modgliane, para ficar num exemplo, sob pequenas pedras que lhes servem de peso, são incontáveis os papeis com referência à vida desregrada do pintor, um verdadeiro ícone da arte maldita.
Caía a tarde, quando deixamos o Père Lachaise, esta necrópole cheia de encanto, de mistérios, de poesia, que nos toca e emociona  –  e de que nunca vou me esquecer.
Compartilhe isso:

quarta-feira, 26 de março de 2025

Meus tempos de teatro

Em 1974, voltando de Cuiabá, onde exercera profissionalmente o jornalismo, aos 18 anos, decido morar em Campina Grande. A cidade é um centro de referência no Nordeste em termos culturais. Na literatura, na música, no teatro, é considerável o que se fez e se faz ali.
Eu iniciava o último ano do segundo grau, como se chamava o ensino médio naquela época. Matriculei-me no Epuc (Estudos Pré-Universitários Campinenses), onde, sob a direção da respeitada diretora teatral Lourdes Capozzolli, o grupo Os Dionisíacos iniciava as discussões do texto O Palácio das ilusões de uma negra, peça de Adrienne Kennedy e do beatle John Lennon. A história gira em torno dos dramas psicológicos da jovem Sarah, uma menina atormentada pelo preconceito e pela inexistência de um referencial negro na sociedade em que vive. Drama psicológico, tecido a partir da arguta percepção da autora norte-americana, um texto cru, perturbador e extremamente poético.
Convidaram-me para fazer o Cristo Negro, além de Patrice Lumumba, um dos personagens centrais da peça. O convite, embora me parecesse um reconhecimento da minha atuação noutro espetáculo de que participara ao chegar à Campina Grande, causava-me estranheza --- hoje, um misto de vergonha e indignação. Numa peça que tinha como tema o problema do racismo e suas terríveis implicações na vida dos negros, a exemplo dos conflitos psiquiátricos vividos pela garota Sarah, imaginem um branco pintar o corpo de preto para representar Cristo e um líder negro da importância de Patrice Lumumba. O acinte, para surpresa minha, passou despercebido da crítica e, principalmente, dos atores negros paraibanos. Hoje seria fatalmente acusado de "blackface", e objeto de severa condenação. Hipótese aceitável para que tenham tirado de Fernanda Torres a estatueta de melhor atriz em Ainda estou aqui.
À época, contudo, não me deixei guiar pelo senso do politicamente correto e aceitei o desafio. Compus o personagem com rigor, dedicando-me a estudar o perfil psicológico de Lumumba, a sua atuação como líder anticolonial do então Congo Belga, atual República do Congo, sua impostação de voz, seu gestual etc.
Ao final de três ou quatro meses de ensaio, fizemos a estréia no Teatro Municipal, para um grande público, dos maiores registrados para uma montagem local. O espetáculo foi objeto de uma crítica impiedosa, mas, para a minha alegria, a imprensa foi unânime em aplaudir a minha atuação, quer como Cristo, quer como Patrice Lumumba. Recém-chegado e desconhecido, elaborei de modo convincente o papel e fiz, de fato, uma boa interpretação, o que me valeria a escolha de "ator revelação do ano."
No ano seguinte, voltei para o Ceará e passei a atuar no teatro de Fortaleza ao lado de Eurico Bivar, Cleide Quixadá, Pontes, Maurício Estevão, Fernando Piancó, José Tarcísio e outros nomes de destaque nas artes cênicas do estado.
Faria, inicialmente, A cadeira do dragão, de Bivar, interpretando um dos personagens centrais da peça. A minha atuação teve uma boa repercussão no meio teatral e a seu respeito saíram uma e outra nota através da imprensa. Eu usava uma barba à Stanislávski, o teatrólogo russo cujo método havia me conquistado por inteiro à época, o que me valeria uma referência jocosa do diretor Guaracy Rodrigues: – "Chegou à Fortaleza o Stanislávski tupiniquim!"
Guará, como era conhecido, em que pese a brincadeira maliciosa, antes que terminássemos a temporada com A cadeira do dragão, no Teatro da Emcetur, formalizaria o convite para que eu fizesse A noite seca, de Geraldo Markan. Perguntei-lhe se o "Stanislávski tupiniquim estava à altura do papel", ao que ele, com o sorriso bonachão, respondeu: – "Você é o melhor ator da nova safra!". Não era.
Fiz um padre reacionário de nome Fernando. Havia outro padre, progressista, que Fernando Piancó interpretaria à perfeição. Acho que o talento de Piancó despontaria a partir daí, pois, naquela época, timidamente pedia que o ajudasse na elaboração da sua personagem. Grande amigo e grande ator, Fernando Piancó.
A peça seria censurada. Na data da estreia, que não aconteceria, todo o elenco e o diretor Guaracy Rodrigues fizemos uma vigília de protesto diante do Teatro José de Alencar. Vestíamos preto e portávamos nas mãos alguns cartazes com textos alusivos ao ato de interdição da peça. Havia um público imenso e, alternadamente, alguém gritava uma palavra de ordem. A polícia ali, atenta, ameaçadora.
Comunicado por alguém na abertura de um show no Centro de Convenções de Fortaleza, Caetano Veloso, bem no estilo impactante de dizer as coisas, interrompe a primeira música do espetáculo e declara: – "Quero me solidarizar com os atores da peça A cadeira do dragão, que foram impossibilitados de se apresentar hoje por conta de um ato condenável da Polícia Federal."
Eram anos de chumbo no Brasil.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Humano, demasiado humano*

A vida entre livros leva-nos a compreender pensamentos "antípodas", e a admirá-los, na contradição de desencontrados saberes. Mais que isso, numa espécie de personalização múltipla, de desdobramentos anímicos, a enxergar as coisas como que por espelho de mil faces --- e mil encantos. Pessoa, o poeta português, deu-nos aula de sensibilidade estética ao multiplicar-se em muitos seres, trabalhados à perfeição no fenômeno inigualável da heteronomia. Aqui, como Alberto Caeiro, valorizamos as sensações e nos tornamos pagãos; ali, a exemplo de Ricardo Reis, incorremos em classicismos e formalidades eruditas; mais adiante, no espaço indefinível de um 'acolá', somos tomados de angústia, perplexos diante de um mundo que nos seduz e escraviza.    
Por volta de 1972, contava eu uns 16 anos, descobri Nietzsche. Obra do talvez ou do quem sabe, e caiu-me às mãos o Humano, demasiado humano. Como vivesse uma fase profundamente mística, participando de grupos de jovens religiosos, lembro que ler o filósofo alemão foi algo a um tempo desafiador e desconcertante. Afinal, tratava-se do pensador que escrevera O anticristo, e que professara a morte de Deus.
Mas, lembro, não conseguia me desvencilhar daqueles aforismos carregados de lucidez e sabedoria. Era uma experiência maravilhosa, incomunicável, profundamente sedutora conhecer um intelectual que se assumia humano, demasiado humano. Com um defeito, apenas, contrapor-se ao Cristianismo, que, àquela altura dos meus dias, era para mim um referencial. Não falo da referencialidade meramente religiosa, igrejeira. Não, víamos (e estudávamos o Cristianismo) mais como uma filosofia, uma doutrina baseada na alegria de viver, partilhar, dividir tanto quanto possível o milagre do amor. Talvez estivesse aí a razão de ser algo deslumbrante o fato de ler Nietzsche, de conhecer a luz ofuscante de sua filosofia e a motivação de saber mais e mais de sua vida, marcada por tantos conflitos e tantos dramas.
Hoje, quando escrevo estas linhas, e a leitura da obra do autor de Assim falou Zaratustra é coisa mais amadurecida do ponto de vista intelectual, causa-me um tipo indefinível de prazer saber que Nietzsche não é tão anticristão assim. Deixemos de lado a ousada discussão.-
O meu gosto pela filosofia nasceu, contudo, desse primeiro contato com o pensamento nietzscheano, e com a sua poesia, claro, pela qual revelava a sua inquietante busca de Deus: "Quero conhecer-Te, Desconhecido,/Tu, que te agarras ao fundo de minha alma/que atravessas minha vida estranho/e intocável como a tempestade./Quero conhecer-Te, ainda que para servir-Te."
Por força de Nietzsche, curioso, é que voltei no tempo, e fui a Sócrates, Platão, Aristóteles, percorri os caminhos que percorreram os Cínicos, os Céticos, os Epicuristas, os Estóicos… Atrevido, na sede insaciável de conhecer, cheguei a Hegel, Kant, Schopenhauer, Marx…
Retornei a Nietzsche, de quem leria O nascimento da tragédia, Além do bem e do mal, A gaia ciência, Ecce homo etc. Assim, fortalecido na minha fé, na crença de que nem tudo resume-se ao que está aqui, nessa passagem repleta de "eternos retornos", por ignorância ou seja lá o que for, tenho vivido a vida, com Nietzsche e com Deus, num mundo, muitas vezes, sem Deus e sem sentido.
*Título do primeiro livro de Friedrich Nietzsche logo que rompeu com Richard Wagner e Schopenhauer. Escrito em aforismos, a obra aborda variados temas, abrangendo questões de religião, metafísica, política, arte e literatura. Publicado em 1878, pretende-se "um livro para espíritos livres". 

sexta-feira, 14 de março de 2025

Se o desejo acaba

Durante happy hour, conversamos em grande roda sobre infidelidade. Embora delicado, é tema de pauta, num tempo em que "ficar" é a palavra que define uma relação sem compromisso. De ambas as partes, por óbvio.
Penso que a infidelidade acontece quando um relacionamento, por sólido que pareça, vai se tornando frio, e o outro não desperta mais que amizade, companheirismo, esses pequenos-grandes valores que, sendo a essência do que deveria ser chamado amor, não são bastantes para preencher o tesão pela vida.
Quando isso ocorre, e tantas vezes ocorre, a porta está aberta para a aventura. É isso infidelidade? Não sei se a palavra se aplica adequadamente, hoje em dia, para definir essa difícil experiência de abrir-se ao desconhecido, o que, cedo ou tarde, se morreu o desejo, pode fatalmente acontecer. Não se trata (por Deus!), de fazer aqui a apologia de um erro, nem o elogio da traição. Pelo contrário.
O ideal, pois que a paixão nasce do idealismo antes de ser amor, seria que o correr do tempo fizesse crescer a atração que se nutre por aquele ou aquela com quem se decidiu viver. Mas nem sempre é assim que as coisas acontecem. Chega um tempo em que desaparece o encanto, a química, a mágica que um dia "nos fez desmoronar em presença do outro". E a vida vai se tornando uma rotina pesada ao lado de alguém a quem se escolheu para dividir a mesma casa, a mesma mesa, a mesma cama. Haverá um tempo em que a pessoa que foi objeto de nossa admiração, dos mais impossíveis sonhos, é apenas a pessoa de quem se passou a conhecer os defeitos, as imperfeições, os vazios interiores, as manias ditas insuportáveis...
Lya Luft, a bela cronista do amor, diz em um de seus textos memoráveis:
"Se um dia, depois de muitos anos de casamento, há tempos transformado em amizade, o outro nos pedir a liberdade, numa prova de lealdade que sempre exaltamos, qual vai ser a nossa reação?". Se nos propuser: "Somos amigos, bem amigos, mas é hora de vivermos separados!", como vamos entender isso?
Estou convencido de que ninguém aceitará sem sofrimento tal realidade, quando o desejo, no outro, acaba. Na hora em que se sente preterido, o mundo parece desabar sobre a cabeça, e se sente vontade de morrer. E, no entanto, quantas outras dores seriam evitadas se se soubesse lidar com a desilusão!
Infidelidade, nessas circunstâncias, é palavra que não se aplica. Está no dicionário: "Qualidade de infiel", que, por sua vez, é como se define "quem não cumpriu aquilo que se obrigou ou se obriga".
O amor não é obrigação. O amor é dádiva. O amor é a união da amizade com o desejo. Se se desgastou, como nos lembra a cronista, "por que não nos permitirmos a quebra do contrato" e partimos para a condição de amigos? Mas quase nunca isso é possível para quem perdeu o posto de objeto adorado. Haverá sempre a resistência, a tentativa em vão de sustentar o que está no chão, em pequenos pedaços.
Por isso a aventura pode vir, devagar ou às pressas, sorrateira ou desavergonhada --- e, do inesperado, a nova paixão. Se o desejo acaba.
Durante a conversa a que me referi no alto, ocorreu-me citar Jabor: "O amor depende do nosso desejo, é uma construção que criamos. Sexo não depende do nosso desejo: nosso desejo é que é tomado por ele".
Entre um chope e outro, já caía a tarde, as convicções aflorando, levemente tocadas pelo efeito do álcool, mudamos de assunto.
E nossos olhares se voltam, como que por milagre, para um jovem casal que se beija calorosamente na mesa ao lado.