quinta-feira, 29 de outubro de 2009

A vida é coisa delicada

Acho, se não me prega a memória uma peça, que foi Montaigne quem disse: - "A vida é coisa delicada e fácil de se perturbar." Dúvida à parte, sobre estar nos ensaios do pensador, é uma máxima que me ocorre desde a conversa que tive ontem com uma amiga. O tema do happy hour era de um barroquismo chato para a hora das conversas amenas, das anedotas que nos fazem querer levá-las adiante, de tão boas, do atualizar da agenda. Mas, esta fuga de propósitos é comum quando, à mesa, sentam-se amantes das reflexões. Gente que escreve, que gosta de cinema, de poesia e que vive a dimensão lúdica e prazerosa dessas experiências.

É claro que falávamos das mudanças bruscas por que, aqui e além, todos temos de passar. Penso que essa é sempre uma circunstância difícil porque temos uma tendência irrefreável para idealizar os momentos e as pessoas com quem nos envolvemos. Quando tocam de forma tão acariciadora em lugarzinhos tenros da alma, nós os queremos para sempre. No amor é assim. Quando estamos apaixonados e dividimos com alguém o milagre da felicidade, da alegria do estar juntos, esquecemo-nos de que o amor-menino vai crescer, envelhecer e morrer um dia. Não raro, de golpe, sem aviso prévio, como começou. Quase sempre, entre soluços e, como disse Gullar em crônica antológica sobre o tema, "querendo e não querendo que acabe."

E, no entanto, doeria tão menos se soubéssemos viver um dia de cada vez, sem projetos sonhadores, sem expectativas invariavelmente otimistas nas relações... Não necessariamente deixando de crer, romanticamente, na possibilidade enganosa do 'até-que-a-morte-nos-separe', mas nos empenhando em não permitir que o dia, assim, no singular, passe inutilmente. Explorando, com a máxima intensidade de que somos capazes, o que existe de incomunicável naquele instante, quando os corações enamorados veem a beleza nas coisas mais banais. O por do sol onde quer que estejam os corpos unidos, as mãos cruzadas. Falo do filme na sessão da tarde, do chope no barzinho simples em que resolvemos saciar a sede, das gargalhadas quando a chuvinha fina nos surpreendeu e tornou transparente a camiseta dela. Falo do beijo inesperado, da transa rapidinha nos lugares mais inusitados. Falo da furada no trabalho para que pudéssemos estar juntos, do chocolate mordido a dois etc. Num sortilégio do inconsciente, acho que reproduzo sem intenção algo parecido com o que li certa vez num texto de Paulo Mendes Campos, Quando o amor acaba.

Mas não. Por uma questão cultural ou algo que o valha, como a compreensível utopia dos apaixonados, nunca nos lembramos de que o amor-menino, de que falei há pouco, vai crescer, envelhecer, perder o encanto, morrer. Como todas as coisas da vida 'delicada e fácil de se perturbar'. Nunca nos lembramos de que o sonho vai se tornar rotina, a necessidade do supermercado, os meninos no colégio, as incompatibilidades que estavam silenciadas, sufocadas na subjetividade de cada um. Nunca nos lembramos de que a realidade ensombreada pela paixão ressurgirá um dia, de repente, não mais que de repente, como imortalizou o poeta, ou lentamente, traiçoeira como o ladrão da madrugada.

E aí, o que poderia ser apenas uma leve saudade ou uma recordação alegre, corta rente na carne, anunciando a difícil travessia. Por isso, por um tempo sem tamanho, é tão doída a volta às coisas comuns da vida real, por momentos esquecida. O trabalho, o burburinho irritante da rua, o ir-e-vir do cotidiano, a máquina de lavar, as compras por fazer, a porção única no microondas, a monotonia de cada manhã, de cada entardecer. E tudo poderia ser tão mais fácil, se antevíssemos que tudo terá um fim, que o para sempre quase nunca é para sempre.

Lembrando Medeiros, no amor, "já que não podemos evitar o final repentino, que ao menos evitemos a morte em suaves prestações."

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A bela lição de Antonia

No Brasil o filme foi exibido com o título A excêntrica família de Antonia, mas no original é apenas Antonia, uma verdadeira obra-prima do cinema. Não o vi à época no circuito comercial, mas só agora, em DVD, presente de um aluno. Havia anos não ficava impressionado com uma obra a um tempo tão despojada e tão profunda. Foi vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1995, para não falar de incontáveis outros prêmios mundo afora. Produção holandesa, é assinado e dirigido por Marleen Gorris, cuja concepção cinematográfica fez-me lembrar os filmes de Eric Rohmer, guardadas as características extremamente originais de um e outro.

Situa-se historicamente no final da Segunda Guerra Mundial, e está ambientado numa pequena cidade do interior da Holanda. Uma mulher, que exemplifica à perfeição aquilo que só se encontra nas grandes mulheres, em inícios do que se convencionou atualmente chamar de terceira idade, decide voltar à província em que nascera para começar uma vida nova, ladeada por Danielle, a filha adolescente. É o começo de uma história comovente e sedutora de cinco gerações, da família excêntrica de Antonia e, por extensão, de uma comunidade marcada por injunções aqui grotescas, extremamente poéticas acolá.

O filme traz a lição que raramente as pessoas conseguem aprender, eu para ficar num exemplo 'clássico': a Beleza, assim, em maiúsculas, como no campo da Estética, lembrando de Platão, Plotino, Kant e outros teóricos que se completam ou se excluem, está nas coisas mais simples e na força das emoções menos elaboradas. Uma verdadeira declaração de amor aos prazeres 'banais', aos olhos de uma sociedade como a nossa, que tem uma incontida vocação para buscar a felicidade no artifício e na 'forçação de barra', longe da paciência e do sossego que são a energia que movem, Antonia à frente, as personagens desse filme encantador.

Se me recorda o diretor de Conto de inverno, a quem me referi acima, nada pelo roteiro, despojado e assustadoramente simples, o filme holandês desconserta e reedita Eric Rohmer pela competente construção dos tipos humanos que movem a ação da obra. Assim como no elegante romântico da nouvelle vague francesa, em Antonia deparamos com personagens densos e profundos, cujas trajetórias vão constituindo ritmadamente ensinamentos de que a vida se constrói a cada dia, sem os projetos visionários com que pensamos o futuro e delineamos os nossos sonhos. Num tempo em que estamos condicionados a antever o amanhã, que quase sempre se frustra, seres imperfeitos que somos, a narratologia de Antonia é como um despertar. De que vale planejar no escuro do abismo de nossas vidas, se o belo do agora vai sendo esquecido em função dos tantos planos. As paixões de Antonia são tecidas com os fios da simplicidade, ainda que a memória guarde registros inapagáveis de um passado que, sabiamente, o tempo recolocou em seu devido lugar.

É consenso entre os amantes da grande arte, que, a cada contemplação do Belo artístico, a leitura de um livro ou a assistência de um filme, como no caso, a vida se transforma em nós, dá maior densidade aos nossos valores (quando positivos) e remodela-os, quando defeituosos. Para não me estender na avaliação estética da obra, sinto-me inclinado a afirmar que A excêntrica família de Antonia ainda salienta-se pela percepção de que a grandeza de uma obra reside mais na verticalidade com que analisa o comportamento humano, o que não significa negar a importância do enredo. No que, também, com a poesia de um amanhecer, Marleen Gorris fez a tessitura desse filme exemplar.

- " No próximo Natal estaremos juntos!", - " A viagem de outubro a Paris vai ser inesquecível!", - "Em janeiro voltaremos a esta praia, com as crianças!", - "Compraremos um apartamento maior no ano que vem!", essas e outras afirmações do gênero, se nos fascinam enquanto construção de sonhos, não-raro nascem condenadas ao fracasso e à frustração. Antonia ensina-nos que devemos viver intensamente o presente, agradecendo ardentemente o milagre de cada amanhecer, retirando a beleza das coisas mais simples do hoje. Como na máxima popular, 'o futuro a Deus pertence'. E nem sempre é o melhor que nos aguarda. Sem pessimismo, mas embriagado dessa generosa lição de Antonia. A felicidade pode vir, nós é que dificultamos a sua chegada.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O fogo passageiro da paixão

Em Cinema Paradiso há uma cena memorável. O projecionista Alfredo, cego e alquebrado, narra para o jovem Totó uma singela estória de amor: um soldado se apaixonara pela filha de um rei, declarara-lhe o seu amor. Mas a princesa pede um tempo para decidir se o aceitaria ou não. Cem dias, é o prazo que estabelece. Em caso afirmativo, a qualquer momento, apareceria no balcão do palácio. E o soldado fica ali, exposto às mais severas intempéries, tempestade ou calor escaldante, o frio que lhe atravessa o corpo, à fome e à sede. Espera heroicamente, contando os dias que passam. Chegado o nonagésimo nono dia sem que a jovem aparecesse, o soldado abandona o posto e parte. Prefere levar consigo a esperança de que a mulher amada pudesse surgir no centésimo dia. Antes a dúvida que a desilusão. Que bela cena sobre a utopia da paixão.

Poesia à parte, na vida real é assim. Ele espera o telefonema que não acontece. Ela abre vezes sem conta a sua caixa de e-mail, mas o bilhete não está lá. Ele olha a cada minuto para o display do celular, mas não há qualquer mensagem. Ela marcou o encontro no barzinho, mas ele não vem. E os dias vão passando sem a novidade tão esperada. Como na estória do soldado no belo filme de Tornattore, chega o nonagésimo nono dia na vida de todo ou toda amante, e ele ou ela vive o desespero da difícil decisão. Esperar o centésimo dia, enfrentar a realidade e a dor do sentimento não correspondido ou sair em retirada? Carregar a dúvida do improvável, ou começar a sufocante travessia do esquecimento, a necessidade insuportável de apagar da cabeça o que insiste em ficar no coração?

Para Nietzsche, a esperança é o pior dos sentimentos, pois só prolonga o tempo do sofrimento e da dor. Em parte fecho com ele, em parte não. No amor, passado o martírio de uma desilusão, a esperança pode ter uma outra face, mais otimista e mais certeira. E invariavelmente, cedo ou tarde, tem. A felicidade vem, silenciosa e sorrateira. Fugaz.

Um dia, como disse em crônica intitulada O Ciclo vicioso da paixão, você, leitor ou leitora, depara com a boa nova. A atração se dá como em milagre. O jeito charmoso com que ela atravessa a rua. A elegância com que ele se veste. A forma como ela atende o telefone, como recompõe o cabelo ou renova o batom. A textura da pele, a penugem dourada do bumbum dela, quando, displicente na areia da praia, passa o protetor. Os olhos que você nunca viu iguais, quando, a pedido, abaixou os óculos de sol. A voz ligeiramente rouca com que ela se dirigiu ao garçom. A sensibilidade dele, o jeito como ela movimenta as mãos. E, sem avisar ou pedir licença, o coração vai batucar, os olhos brilhar. O fogo passageiro da paixão.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Sobre entrevista acerca do relacionamento amoroso

O que seria apenas a divulgação de trechos de uma entrevista despretensiosa, neste espaço, acabou suscitando opiniões declaradas de alguns leitores, leitoras, para ser mais preciso. Como essas opiniões foram-me enviadas por e-mail, numa evidência de que suas autoras supostamente não queriam torná-las públicas, num gesto de elegância ou pretensão de preservar sua intimidade, reservo-me o direito de comentá-las sem identificar sua autoria.

A primeira quer saber: - "Você bateu a cabeça ou mudou de opinião sobre a infidelidade?" Não, querida leitora, não bati a cabeça nem mudei de opinião sobre o que quer que seja, muito embora lembre aqui do chavão de que "só não muda de opinião quem não as tem." Sobre o tema faço a mesma leitura de sempre e, não é muito observar, tão-somente reproduzo na entrevista o que tornara público havia tempos na coluna que escrevo semanalmente para o jornal A Praça. A crônica intitula-se Quando o desejo acaba. Uma referência aos relacionamentos que, mesmo falidos, são mantidos por um tipo qualquer de dependência, financeira ou pela conveniência de criar 'juntos' os filhos, quando existem. Se considero a palavra infidelidade, nesses casos, dura ou pesada demais, longe estou de fazer a sua apologia, como entende a leitora.

A segunda indaga sobre o que penso dos "relacionamentos abertos", uma tendência típica da modernidade que não pode ser apreciada na perspectiva do modelo de relacionamento que me pareceu ser o objeto da entrevista no contexto de sua 'encomenda', um trabalho de faculdade que tinha por intenção pesquisar sobre como homens e mulheres da cidade pensam a vida a dois na atualidade. Não se trata, pois, da forma como se deve encarar a vida sexual de cada um, que, como a expressão deixa a ver, é uma questão de cada um.

Uma outra tem uma curiosidade mais rebuscada, digamos, e pergunta por que cito tanto naquilo que escrevo o cineasta Ingmar Bergman, notadamente o filme Cenas de um casamento. Em princípio, leitora, pelo fato de que a tessitura da obra aplicava-se à perfeição ao contexto da entrevista, uma vez que a película explora em profundidade o drama que vivem os casais quando o relacionamento faz a dolorosa curvatura da falência. Se não viu o filme, recomendo, pois se trata de um exemplo irrepreensível de reflexão sobre o amor. Mas, embora esse me pareça o filme mais consistente do cineasta sueco, se for o caso, não deixe de ver Gritos e sussurros, de inícios da década de setenta. Como é recorrente em Bergman, por sinal, é estrelado por Erland Josephson e Liv Ullmann, os mesmos de Cenas de um casamento.

O fato é que, não sendo nenhum bom conhecedor de cinema, nutro uma admiração incontida pelo conjunto da obra de Bergman. São filmes dolorosos, que trazem um já reconhecido componente autobiográfico do cineasta, um homem visceralmente marcado por um sofrimento pessoal assumido e jamais superado. Impossível, contudo, não fazer alusão a pelo menos duas outras grandes realizações deste artista genial. Gosto muito, particularmente, de Persona, cujo título no Brasil, se não me falha a memória, é Quando duas mulheres pecam, e de um filme mais recente, Infiel, de inícios desta década, com a direção competente de Ullmann a partir de um roteiro de Bergman. Uma obra, enfim, que me impressiona demais, pela densidade dramática e pela compreensão tão vertical da complexidade da alma humana, sobretudo no que respeita aos relacionamentos.

Às três, indistintamente, agradeço o privilégio que é tê-las como leitoras.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Entrevista

Final de tarde, sou cercado por um grupo de alunas de Psicologia que me pedem uma entrevista para um trabalho da faculdade. Como não raro isso ocorre, penso tratar-se de uma entrevista sobre literatura, um Machado de Assis, um Drummond, um Ibsen etc. Que nada, querem que eu fale sobre relacionamentos hoje. - "Há um engano, o professor deve ser outro!", digo-lhes. - "Não, é com o senhor mesmo. Não é o prof. Álder Teixeira?". Uma das integrantes da equipe se diz frequentadora do meu blog e sugeriu o meu nome para falar sobre o tema. Aceito o desafio e as convido a virem ao meu edifício, onde as recebo no hall de entrada para a entrevista que segue. Presentearam-me com uma 'cópia' do texto final.

Alunas - Como você vê os relacionamentos hoje?
Álder - Vejo-os, hoje, mais desafiadores. As mulheres estão mais independentes, mais conscientes de que num relacionamento ninguém é dono da situação. Ocuparam o seu espaço, foram além disso e os homens, via de regra, não estão sabendo lidar equilibradamente com isso. Desse descompasso, quero crer, nascem os primeiros conflitos, que, mal resolvidos, terminam por gerar as grandes crises, o que quase sempre leva aos rompimentos. Mas não há só o lado negativo, felizmente. Essas conquistas da mulher, se bem compreendidas pelos homens, são decisivas para o fortalecimento de relações mais sólidas, também. Quando isso ocorre, o casal vive melhor e mais intensamente o relacionamento e ele tende a ser mais feliz e duradouro.
Alunas - Não acha que os relacionamentos, com esse formato, tendem a desaparecer?
Álder - Não sou tão pessimista quanto a isso. Talvez seja admissível considerar-se que o casamento tende a desaparecer, com esse 'formato' a que você se refere, e que não sei bem o que significa (risos). Os relacionamentos, não. Eles fazem parte da vida de homens e mulheres e continuam sendo um objetivo quase indispensável para a felicidade plena. Discordo daqueles que afirmam que as pessoas podem ser completamente felizes vivendo solitariamente.
Alunas - Não é melhor ser feliz sozinho que infeliz ao lado de alguém?
Álder - Esse me parece ser outro caso. Não falo que se devam manter os relacionamentos infelizes pelo simples medo da solidão. A solidão às vezes é necessária e saudável. Mas o relacionamento não deixa de ser uma meta. Não é 'o relacionamento' que leva à infelicidade, mas a forma como o casal conduz a sua realidade, sabendo lidar com os momentos difíceis, com as idiossincrasias, as diferenças, nunca esquecendo que o relacionamento não significa a morte das individualidades nele envolvidas.
Alunas - Posso fazer uma pergunta mais pessoal? Ou serei indelicada?
Álder - Sinta-se à vontade, mesmo que me diga respeito, como concluo.
Alunas - Você casou duas vezes, soube através de uma colega... viu no blog, não sei. Por que seus relacionamentos não deram certo?
Álder - Não pensei que esse assunto pudesse ajudar em alguma coisa para o trabalho de vocês. Mas vou responder, sim. Os meus casamentos deram muito certo. Guardo (e minhas ex-companheiras, por certo) as melhores recordações. Sou muito seletivo no que diz respeito a relacionamentos, razão por que não os tive em grande número. Mas, esteja certa, foram grandes relacionamentos. Costumo dizer que tive poucas paixões, mas todas muito intensas, sinceras, realizadoras. Um relacionamento nunca é feliz pelo simples fato de ter sido infinito. Lembro-me de Vinicius: "Que seja eterno enquanto dure!" (risos).
Alunas - Acredita no amor, quando hoje em dia as pessoas 'ficam' aqui e acolá. Mudam de parceiros, parceiras...
Álder - Isso é próprio de uma fase da vida, talvez da fase que algumas de vocês estão vivendo. Mas, com o passar do tempo, com o amadurecimento, os sentimentos vão sendo melhor trabalhados, as emoções deixam de ser a busca do improvável em favor do encontro das almas. Perdoem-me se lhes falo com essa linguagem tão antiquada, mas é assim que compreendo o bom relacionamento. Ele ainda existe e você haverá de descobri-lo em algum momento de sua vida, ainda jovem e entusiasmada com a beleza das coisas, com o milagre da vida! Por isso, acredito no amor e não vejo mudanças de comportamento que possam minimamente feri-lo. Sem amor, não há vida, portanto, não haverá relacionamentos, porque o individualismo terá imperado entre os homens. É como se fosse possível o surgimento de um mundo de solitários e infelizes.
Alunas - Mas os relacionamentos, hoje, terminam muito cedo...
Álder - É verdade. Isto faz parte de um mundo intolerante. Nos relacionamentos, a meu ver, tem faltado tolerância. Não há final de relacionamento que se dê por decisão rigorosamente equilibrada das duas partes, o que não haveria de ferir este bem precioso que chamo de tolerância. Há sempre uma iniciativa unilateral, porque alguém deixou de tolerar alguma coisa do outro. Por isso não há separação sem sofrimento; por isso quase sempre a amizade depois dos rompimentos torna-se difícil, pelo menos enquanto durar o sentimento que um dia levou ao encontro, à expectativa tão frequentemente frustrada de que "nascemos um para o outro." Ou porque de fato não existia amor, mas uma atração que, na falta de outra expressão, poderíamos chamar de paixão. Nas mulheres isso é mais comum: apaixonam-se perdidamente, mas esse sentimento não tem profundidade, prende-se há alguns fatores, como a carência, por exemplo.
Alunas - Discordo. Acho que o homem é muito mais volúvel...
Álder - Não disponho de elementos concretos, estatísticos, resultantes de uma pesquisa ou algo que o valha. Falo pelo meu senso de observação, pela minha percepção de como os relacionamentos começam e terminam hoje. Esta a razão por que considero o sentimento de amor mais intenso, mais enraizado no homem. Talvez por isso a mulher tenha uma capacidade de superação maior, quando o relacionamento termina. O homem tende a 'ruminar' por mais tempo. Numa sociedade, numa cultura em que não se aceita bem que o homem sofra por amor, porque isso não condiz com os valores machistas com que normalmente foi educado, a coisa torna-se ainda mais complicada. Ele interioriza a dor, esconde o machucado e o problema supostamente vai se prolongar por um tempo muito maior.
Alunas - Há segredos para o sucesso do relacionamento?
Álder - Se houvesse e eu os conhecesse não lhe daria, mas venderia caro (risos). Mas acho que existem atitudes, alguns substantivos que de certo modo equivalem ao que você chama de segredo. Aliás, escrevi uma crônica em que cito a fala de uma personagem de "Cenas de um casamento", de Bergman, um cineasta que adoro. A personagem é perguntada, também numa entrevista, sobre o sucesso do seu casamento, ao que ela responde mais ou menos assim: se há compreensão, cumplicidade, respeito, planos sensatos, admiração, o amor não é necessário.
Alunas - O sexo pesa nisso?
Álder - Evidente. O sexo é a coroação de todos esse elementos que unem o casal, que torna sua vida uma experiência agradável, prazerosa. O sexo é a revelação mais íntima da individualidade, por isso é sempre vazio quando a entrega não se dá por força dos sentimentos que envolvem as pessoas, isso a que chamamos de relacionamento.
Alunas - Professor, queremos agradecer pela entrevista.
Álder - Mas outros homens, outras pessoas serão também ouvidas no trabalho, não?
Alunas - Sim. Queremos tirar conclusões sobre como as pessoas veem o relacionamento hoje. A propósito, uma última pergunta. Como você vê a infidelidade.
Álder - Ih, amiga. Agora você tocou numa questão delicadíssima na perspectiva do relacionamento. Não compactuo com a ideia de que a infidelidade possa ser algo positivo para o restabelecimento de qualquer relação. Estou sendo sincero, embora nunca crônica pareça dizer o contrário. Lá, no texto, refiro-me aos relacionamentos que, embora falidos em sua essência, quando o desejo acaba, são mantidos por algum tipo de dependência. Nesses casos, afirmo, cedo ou tarde a infidelidade acontecerá. E considero a palavra demasiado forte, pesada para definir o que é apenas a busca de um prazer, de uma realização, que já não é possível em casa.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O morcego

"Meia-noite. Ao meu quarto me recolho./Meu Deus! E este morcego. E, agora, vede:/Na bruta ardência orgânica da sede./Morde-me a goela ígneo e escaldante molho./"Vou mandar levantar outra parede..."/- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho./E olho o teto. E vejo-o igualmente a um olho/Circularmente sobre a nossa rede!/Pego de um pau. Esforços faço. Chego/A tocá-lo. Minha alma se concentra./Que ventre produziu tão feio parto?!/A consciência humana é este morcego!/Por mais que a gente faça, à noite, ele entra/Imperceptivelmente em nosso quarto!

Não sou amante da obra de Augusto dos Anjos, muito embora, intelectualmente, reconheça a inquestionável qualidade de sua poesia. Não me agrada o negativismo com que vê a realidade humana, sua descrença na bondade originária dos homens. Vai na contramão do que nos professou com tanta sabedoria o iluminista Rousseau, no belo entendimento de que o homem nasce bom e a sociedade o perverte. Os tempos modernos, contudo, com a sua competitividade desenfreada, a sua inversão de valores, favorece a validação do pessimismo augustiano, o que ainda não é bastante para me fazer descrer das pessoas, em todos os sentidos, inclusive no campo das amizades e dos relacionamentos amorosos.

Aqui e além, no entanto, vamos dando demonstração de nossa vocação para tirar algum proveito de certas circunstâncias de nossa vida. Não raro, transferimos para o outro a responsabilidade de nossas ações, procuramos dar sentido às nossas decisões, projetamos nossas fragilidades e lançamos mão de pretextos para justificar o que, em essência, é injustificável. É aí, por certo, que me ocorre pensar eventualmente no que o poeta paraibano chama de "o morcego", numa feliz metáfora para definir a consciência humana. Se somos capazes de revelar nossos segredos para o melhor amigo ou amiga, num canto de sala ou num toalete de barzinho, nessas experiências de cumplicidade que vão tornando inconfessáveis certas passagens de nossa caminhada, na solidão do recolhimento há sempre o travesseiro a esperar o despontar de nossa consciência. E por mais que façamos, ela entra em nosso quarto, como o morcego amedrontador do poema de Augusto dos Anjos.

domingo, 4 de outubro de 2009

Jamais vou esquecer

Meu filho e eu somos antes de tudo grandes amigos. Apenas uma vez, repreendi-o com mais veemência. Caminhávamos na praia, linda manhã de sol, quando alguém pôs na pauta das conversas amenas o tema da violência. Meu filho, que é uma unanimidade entre os que o conhecem, pela ternura que é mesmo a maior marca do rapaz inteligente e cativante que é, faz uma afirmação em nada condizente com a generosidade do seu coração singular, e de tudo o que tenho ouvido desde ele quase menino: - "Bandido morto é um bandido a menos." Havia sido assaltado a mãos armadas, ameaçaram-no de matar, quase o fizeram, quando, no nervosismo das circunstâncias, encontrara dificuldades para tirar o cinto de segurança: - "Vai morrer, está demorando muito!", dissera-lhe um dos assaltantes, o revólver no ouvido. O desfecho, felizmente, não foi este. Levaram-lhe o carro, todos os pertences, chamaram-no de 'vagabundo'. Meu filho tem 21 anos e vai para o terceiro ano do curso de medicina. Destaca-se entre os colegas, pelas notas e pelo desempenho geral como acadêmico de um curso prestigiado, para cujo ingresso tivera de 'vencer' tantos concorrentes. Mas, nas circunstâncias aqui referidas, era apenas "um vagabundo". Repreendi-o, como disse: - "Filho, que está dizendo? E Deus, por que não está no seu coração neste instante?" Fui áspero com o meu filho, pela primeira vez.

Há poucos dias, mal começava a manhã, saía para o trabalho e presenciei uma cena que ainda repercute em mim. A poucos metros de onde me encontrava, por ambas as portas da frente, um carro de luxo era abordado por dois assaltantes. Não tive tempo, sequer, para acompanhar os detalhes de como as coisas se davam naquele instante. Apenas ouvi estampidos, dois, três, não sei dizer com precisão. Mas os tiros, na contramão do que pressupõe o leitor, vinham de dentro para fora do carro. O segurança do proprietário daquele carro elegante, atirara com uma precisão dos clássicos dos policiais americanos. E vi, a poucos passos de onde me achava, que um dos assaltantes correra com a rapidez de um velocista olímpico. Com a agilidade de um atleta de corrida com obstáculos, saltava tudo o que encontrava pela frente. Em segundos, desapareceu, tal qual um mágico de circo.

Só então pude ver, em estertores que levaram não mais que cinco, dez segundos, que um dos rapazes, quase adolescente, fechava em sangue e gemidos o livro da sua história. Na quase meninice dos seus dezenove anos, afirmariam os jornais na manhã seguinte ser esta a sua idade, morria com o abandono de um solitário, com a insignificância de um ser absolutamente desprezível para uma sociedade indiferente e fria, que não percebe o abismo de diferenças que separa a vida da morte. Lembrei do assalto de que fora vítima meu filho, lembrei do drama que vivera naquele instante, lembrei da dor incomunicável que teria de carregar se tivesse demorado um pouco mais para liberar o cinto de segurança do seu carro. Pensei, em segundos que me pareciam a eternidade, a aflição por que tivéramos de passar havia poucos dias.

Mas, já a caminho do trabalho, não conseguia deixar de pensar no que tivera de presenciar naquela manhã de sol, tão bonita como todas as manhãs desses meses de sol em Fortaleza. Havia em mim, num tipo de obsessão que me doía por dentro, perguntas que não se permitiam calar. Ali, na gratuidade de um instante, morrera um jovem de dezenove anos. Qual a realidade de sua existência em casa, se casa tivesse? Que educação recebera dos pais, se os tinha? Como fora a sua infância, com que brinquedos pudera brincar? Em que escola estudara, se houvera para ele uma escola? Meu filho, vai iniciar o terceiro ano de faculdade, estou certo de que será um grande médico. Mora bem, possui seu automóvel, veste roupas de griffe, namora uma moça linda, que também estuda para ser médica em pouco tempo. E aquele quase menino que morrera a poucos passos de mim? Por que o fado reservara-lhe o protagonismo de uma cena tão dramática, tão trágica, tão triste, de que jamais vou esquecer?





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