'Noventa por cento das letras do cancioneiro romântico cantam o amor malsucedido.' Afirmei isto em uma crônica recente e o fato ensejou muitas contestações. Alguns leitores, de forma elegante mas precipitada, atribuíram a afirmação à uma tendência natural de se perceber em maior escala o enfoque poético que projeta a subjetividade de cada um, no caso, de cada ouvinte numa determinada circunstância de sua vida amorosa. Como fosse, ainda, uma mera suposição minha, que se ressentia de um levantamento mais criterioso, dei o dito por não dito e não voltei ao assunto.
Agora, por uma dessas coincidências que nos gratificam, deparo com o belíssimo trabalho do pesquisador Rodrigo Faour, recém-publicado em livro com o curioso título História sexual da MPB – a evolução do amor e do sexo na canção brasileira, cujo resultado vem confirmar o que era uma mera suposição: na década de 60, por exemplo, "90 por certo das letras de nossa música ao falar de amor versavam sobre relações malresolvidas, interditadas, tristes, melancólicas e vingativas."
O primeiro capítulo do livro de Faour é dedicado a examinar exatamente isso, ou seja, a cultura do amor difícil ou, por alguma razão, impossível e não realizado. Nele vamos encontrar depoimentos de renomados especialistas no assunto, como a sexóloga Regina Navarro Lins. Segundo ela, essa é uma cultura nascida há muitos séculos, que teria suas origens nas velhas histórias do amor cortês, a exemplo dos romances de Tristão e Isolda, Abelardo e Heloísa, no século XII, passando por Romeu e Julieta e tantas outras obras que tratam do 'amor romântico', quase sempre "regido pela impossibilidade, pois quanto mais difícil ou impossível de dar certo, mais apaixonada a pessoa fica." Ou seja, o amor não correspondido ou de alguma forma frustrado.
A estudiosa faz a propósito um comentário bastante curioso: - "É como se ela [a pessoa] precisasse mais da ausência que da presença do outro para se satisfazer." Para Navarro, "As pessoas amam estar amando, apaixonam-se pelo ato de estarem apaixonadas."
Para os amantes da música romântica, notívagos e boêmios à frente, o livro traz em quantidade fragmentos de algumas das mais célebres composições do gênero, como A deusa da minha rua (Meus olhos são poças d'água/sonhando com seu olhar.../ela é tão rica e eu tão pobre/eu sou plebeu e ela é nobre/não vale a pena sonhar), de Jorge Faraj e Newton Teixeira; Ontem ao luar (Dos olhos meus correr senti/uma nívea lágrima/e assim te respondi!/Fiquei a sorrir/por ter o prazer/de ver a lágrima nos olhos a sofrer), de Pedro de Alcântara e Catullo da Paixão Cearense, e Chão de estrelas (Minha vida era um palco iluminado/eu vivia vestido de dourado/palhaço das perdidas ilusões [...]/e hoje quando do sol a claridade/forra meu barracão, sinto saudade/da mulher pomba-rola que voou), para citar algumas das mais conhecidas.
Saudades e desencontros, sofrimento e dor, sonhos desfeitos e desilusão povoam, assim, o cancioneiro popular brasileiro, revelando a fundo a nossa identidade sentimental um tanto piegas, o que não desmerece, diga-se em tempo, a alta qualidade da poesia brasileira musicada. História sexual da MPB... é um desses livros que sempre quisemos ler, e sobre o qual, por exigüidade de espaço, falamos tão pouco aqui. Recomendo.
Meu caro Álder, sua coluna presta um grande serviço à cultura. Como amante da MPB, fiquei curioso para ler este livro. Onde encontrá-lo, pois já procurei e não o encontrei à venda?
ResponderExcluirAgradeço o comentário e devo observar que comprei o livro da Sicialiano da Santos Dummont.
ResponderExcluirAbraço!
Álder