Quando nos lembramos de filmes de que gostamos, lembramo-nos de cenas e não de filmes inteiros. A afirmação de Syd Fields, no seu belo livro sobre roteiros, é absolutamente correta. Com efeito, podemos esquecer da história em seus detalhes, do nome dos atores que interpretam os papeis principais e até do título do filme, mas guardamos para sempre as cenas que nos marcaram quando as vimos. Como todo bom cinéfilo, tenho vivas na memória algumas cenas que considero emblemáticas do cinema. A despedida de Rick e Ilsa em Casablanca, é uma delas:
Rick
"Nós sabemos que, no fundo, você deve ficar com Victor... Se aquele avião decolar sem você, você vai se arrepender -- talvez não hoje nem amanhã, mas logo, e para o resto da sua vida".
Ilsa
"Mas... e nós dois?"
Rick
"Nós sempre teremos Paris".
É um dos momentos mágicos do cinema, desses de que nos lembramos sempre que, por alguma razão, somos levados a pensar em despedidas românticas. E em ações nobres. Tão simples, tão sem efeitos dramáticos e, no entanto, tão arrebatador! Por quê? Syd Field, que também a coloca entre as suas cenas preferidas, explica de forma absolutamente convincente: - "No início de Casablanca, Rick é um homem que vive do passado, remoendo a dor causada pela relação mal-sucedida com Ilsa. Quando ela reaparece em sua vida, Rick lamenta: 'De todas as espeluncas de todas as cidades do mundo, ela tinha que vir parar bem na minha' -- e então sabemos que é chegada a hora de ele confrontar e finalmente resolver seu passado".
É isso. A cena encerra com uma força simbólica extraordinária um grande filme. Sob muitos aspectos, talvez o mais belo de todos os tempos. Um grande homem se revela por suas ações, não por suas palavras. No caso de Rick, tão excepcionalmente interpretado por Bogart, é o que fica evidenciado. Ilsa (Ingrid Bergman), lindíssima, é a mulher com quem se relacionara havia algum tempo, em Paris, e que o levara a sofrer uma dolorosa decepção, abandonando-o no ápice de sua paixão por ela. O mundo, sabemos, dá suas voltas, na ficção e na vida real. Quis o destino que os dois se reencontrassem em Casablanca, vivessem um flashback capaz de fazer explodir no coração de Ilsa a paixão de antes, mas, agora, Rick tem outros objetivos, maiores, mais elevados para a sua dignidade pessoal. Na mesma fala, citada acima, ele diz: - "Não tenho muito talento para ser nobre, mas é bem fácil perceber que os problemas de três pessoas comuns não representam nem um punhado de feijões neste mundo doido..."
Ilsa, que traíra o marido com Rick e Rick com o marido, na indecisão de sua alma leviana, agora quer de volta o amante de antes, nos idos de Paris, mas Rick, num gesto que nos dá o tamanho do seu caráter, renuncia o seu amor pela causa dos Aliados e decide ficar em Casablanca para combater os nazistas. A cena, pois, cobre-se de poesia e força simbólica, eleva-se às alturas da grande arte, razão por que fica na nossa memória para sempre, como um dos momentos extraordinários do cinema.
Sauuuudações, Mestre!
ResponderExcluirQue belíssima crônica! As emoções vão à flor da pele, né? Bom, Casablanca é um desses filmes que, juntamente com XY livros, eu pretendo saborear numa pequena e proviciana cidade, onde o silêncio, a calmaria, seja elemento agregador de emoções. Aqui, nem pensar. Parabéns, Álder!
Abraços!