quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Espetáculo farsesco

No teatro, define-se como "recurso dramático" (do francês ressort dramatique) o mecanismo que, sem se dar a ver, mas da maneira mais eficiente possível, comanda a ação, organiza-a de modo a constituir a chave das motivações e da intriga. Patrice Pavis, um dos teóricos mais conhecidos e respeitados do mundo, assinala que "esses recursos estão centrados nas motivações das personagens, na disposição da fábula, no suspense da ação e no conjunto dos procedimentos cênicos que contribuem para criar uma atmosfera teatral e dramática capaz de cativar o espectador".

Boileau, autor de Arte Poética, um dos tratados teóricos que maior influência exerceram sobre os profissionais do teatro no Ocidente, diz que "o segredo é agradar e tocar: inventar recursos que possam me prender". Noutras palavras, o alvo é envolver o espectador nas malhas da trama, para o que lança mão de efeitos e motivações fáceis através de forças conscientes do comportamento do ator no intuito de tornar 'crível' suas falas, quase sempre decoradas e previamente medidas com a finalidade de convencer.

Nesses termos, o que se viu ontem durante a explanação do coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, em rede nacional, exemplifica à perfeição o que são "recursos dramáticos", no caso, explorando a intriga, cujo objetivo indisfarçável de condenar o ex-presidente Lula e tirá-lo de forma humilhante do cenário político de 2018. Errou na dosagem, no entanto, foi além do que é recomendável e, por não conter excessos, que põem por terra um dos requisitos indispensáveis da boa dramaturgia, a verossimilhança, tornou o espetáculo chulo, rasteiro, rude, típico de um teatro de quinta categoria.

Numa perspectiva clássica, "verossimilhança" é o que, na representação, nas ações das personagens, "parece verdadeiro" para o público, no plano das ações e nos meios a que o ator recorre na maneira de representá-las em cena. Não foi o que se viu. Dallagnol, como mau ator, carregou nas tintas, não soube dosar suas falas e, com isso, tornou evidentes os recursos dramáticos. Desconstruiu o espetáculo, transformando-o num dramalhão sem força dramática e sem poder de convencimento. A verossimilhança, embora seja um conceito dos homens de teatro, diz respeito ao público, à recepção do espectador, pelo que se faz indispensável para produzir o efeito e a ilusão de verdade.

Não estamos falando de verdade histórica. No teatro, o que importa é o caráter verossímil, ou seja, o que parece verdade, plausível, aquilo que é possível ou provável por não contrariar a verdade. Para Aristóteles, que escreveu muito antes de Cristo outra Arte Poética de que não se pode prescindir, "historiador e poeta se distinguem, o primeiro por relatar acontecimentos que ocorreram, o outro os acontecimentos que poderiam ocorrer. Por isso, diz ele, a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história; pois a poesia conta mais o geral e a história o particular".

Mas é preciso, indispensável mesmo, que, para ser bom, o espetáculo tenha uma certa tensão entre o que cativa, por ser fantástico, maravilhoso, e o que é aceito pela opinião e pela crença do público. Sem isso, insisto, não há competência dramática, o ator não persuade, é incapaz de fazer com que o espectador acredite no seu discurso ou aceite o que diz por meio de suas razões e argumentos bem fundamentados.

Ao fiasco do ator Dallagnol, diga-se em tempo, soma-se a sua incompetência como autor da peça. O bom texto não se permite o grosseiro, o demasiadamente apaixonado, o tom artificioso, a dicção odiosa. Foi repetitivo, abusou nas referências nominais ao antagonista; foi explícito demais em suas intenções, enfático em suas acusações esvaziadas de provas. Em síntese, arvorou a personagem, pela fala impregnada de paixão, como um deus, um demiurgo, o artesão divino de que nos falou Platão. Em teatro, chama-se isso hamartia, a falha trágica do herói. O que se pretendeu um espetáculo épico, em oposição ao teatro clássico aristotélico, resultou farsesco. Como nos lembram os estudiosos do teatro, no entanto, a farsa sempre é definida como forma primitiva e grosseira, que não se pode elevar sequer ao nível da comédia. Quanto a esta grosseria, diz Pavis, o teórico aqui citado, nem  sempre se sabe muito bem se ela diz respeito aos procedimentos demasiado visíveis e infantis do cômico ou à temática escatológica.

As locuções adjetivas desferidas contra a figura do ex-presidente Lula refletem a ira dos inconformados. Nenhuma prova, mas a afirmação leviana de que "no centro deste núcleo está o senhor Lula"; nenhuma prova, mas a dedução subjetiva de que"Sem o poder de decisão de Lula esse esquema seria impossível"; nenhuma prova, mas a conclusão condenatória de que "Lula era o comandante máximo do esquema criminoso descoberto pela operação". Não sabe o leviano que, há mais de 20 anos, portanto bem antes de Lula chegar ao poder, o esquema criminoso da Petrobrás já fizera outra vítima, Paulo Francis, a quem a História do país um dia haverá de fazer justiça. Mas sobre isso escreverei depois.

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Excelente percepção e um texto, como sempre, muito competente. De fato, o que ontem se viu foi meramente teatral, não jurídico. Infelizmente!

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