quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Paixão

Acordou cedo. Ainda à cama, olhou o corpo seminu da mulher, sono profundo. Tateou o travesseiro, tenso, abraçando-o como a uma pessoa amada... como se tentando entabular conversa. Banho rápido, e o café da manhã, de costume tão farto, limitou-se a um suco de laranja e uma xícara pequena de café.

--  Meu Deus!

No carro, a caminho do trabalho, o pensamento de volta, um tipo de obsessão, a mulher dos últimos encontros, o jeito descontraído, a boca carnuda proferindo a sentença: "Te quero!", e o perfume forte a persegui-lo, como se o mundo, de repente, exalasse um só aroma. No sinal, um rápido olhar para a pasta repleta de papeis, esquecida sobre o banco do carro desde a noite anterior. A lembrança de que não conseguia avançar no serviço, organizar a vida profissional, antes impecável. Afrouxa a gravata, sente calor, apesar do ar-condicionado ligado e do dia nublado de inverno.

--  Te quero!

A voz rouca a persegui-lo, persuasiva, hipnótica, a produzir nele o desejo do reencontro, que se renova a cada instante, acende-o, deixa-o em brasa. Experiência diferente, no entanto, de tantas outras, quando o encontro erótico era um momento luminoso, subtraído da vida comum, do qual, ego acariciado, parecia, sempre, nascer um novo homem  --  Machismo!, dizia-lhe uma amiga confidente  --, bem disposto, a retomar as coisas de rotina.

No trabalho, depara com a secretária apreensiva com o volume das pendências, os contratos por assinar e a agenda de reuniões a acumular-se, as viagens canceladas, sem uma justificativa plausível  --  "O quê se passa com o doutor Henrique?"

O celular toca.

--  Amor, o que houve, saiu sem me acordar, nem o café...

--  Não, nada. Está tudo bem.

Sexto sentido, a mulher indaga:

--  Vem almoçar em casa? As crianças...

--  Não, não, hoje não dá, a gente janta juntos.

Desliga o celular, coração cindido e o pensamento obsessivo, o cheiro forte do perfume, a voz rouca, insistente  --  "Te quero!"

Aturdida, a secretária anuncia-lhe a chegada de um empresário importante.

--  Henrique, por que não assinou o contrato? Estamos perdendo dinheiro...

Pede um novo prazo para examinar o texto... amanhã, talvez.

O homem retira-se aborrecido. E o dia, para Henrique, passa como um sonho em que se alternam boas e más sensações. Sente que, dessa vez, não se trata de mais uma aventura, intermezzo luminoso, instante de eternidade na vida de um homem.

Agora já não é o instante de erotismo que guarda na memória, mas o objeto de uma novidade que lhe parece sublime, o corpo torneado, os lábios carnudos e a voz rouca que não desiste em seus propósitos de conseguir o que pretende  --  "Te quero!"

E, ao lado de uma profusão de imagens e delírios e prazeres e fascínios, a certeza angustiante de que está pondo em jogo uma vida feliz, a família, anos de dedicação de uma mulher não menos bela e sedutora.

No trânsito, a caminho de casa, o aperto no peito, a vontade de tomar outro rumo, de antecipar o reencontro acertado por telefone para sábado, aquelas mãos que o punham louco, o talhe perfeito, o bronzeado das curvas e a boca, insistente, como uma gravação centenas de vezes repetida:

--  Te quero!

Entra em casa, a mulher, solícita, vem ao seu encontro, enlaça-lhe o pescoço, beija-o e, sexto sentido, percebe com carinho a sua expressão amargurada.

--  Algum problema, Amor?

--  Não, não. Tudo bem!

 

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