segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Spoiler

Depois de Tim Maia (2013), Mauro Lima volta ao circuito com outra cinebiografia. E que filme! Com uma direção cada vez mais aprimorada, em que sobressai um rigor estético notável para um cineasta ainda em início de carreira (em que pese ser este o seu sexto filme), João, o Maestro é digno de figurar entre os quatro ou cinco melhores filmes brasileiros dos últimos anos.

Apoiado no livro de Ricardo Carvalho, A Volta por Cima de João Carlos Martins e Outras Histórias, o filme de Mauro Lima conta a trajetória de um dos maiores pianistas de sua geração, infelizmente pouco conhecido do grande público em seu país, mas internacionalmente respeitado como um dos principais intérpretes do compositor clássico Johan Sebastian Bach (1685-1750).

Mas, se são recorrentes as sequências em que vemos o músico em atuação, no que aliás sobressaem algumas grandes qualidades estéticas do filme, a belíssima fotografia e um trabalho de câmera que excede em rigor técnico e sensibilidade poética, por exemplo, é a presença do homem por trás do mito que constitui o eixo dramático da história. 

Marcada por tragédias recorrentes, a vida de João Carlos Martins, por si só, é algo que extrapola os limites da normalidade e serve para assinalar a densidade do enredo, bem construído e coerente.

As estratégias narrativas do diretor, não raro criticadas por um certa vocação maneirista, o que de resto parece mesmo vir se tornando uma de suas características mais marcantes, realçam a forma como estão articulados os acontecimentos, mesmo que Mauro Lima jogue com espaços e temporalidades diferentes ao longo do filme. São numerosos, sob esse aspecto, os flashbacks, mas nada que torne incompreensível o desenrolar da história, ainda que sejam diferentes os atores que interpretam o biografado e, natural, os traços fisionômicos dos mesmos e o timing da interpretação.

João, o Maestro tem sequências memoráveis, dessas que o espectador guarda consigo e não se cansa de comentá-las depois. Numa delas, em 1958, quando o protagonista conta 18 anos de idade e algo em torno dos 10 de piano, o quadro mostra o interior do Teatro Municipal de São Paulo, berço dos maiores eventos de música clássica no país. Vemos João Carlos Martins ser ovacionado depois de executar prelúdios e fugas de O Cravo Bem Temperado, uma das obras-primas de Bach.

Exausto, o jovem virtuoso debruça-se sobre o piano, levanta-se e abandona o palco em busca do pai, que o aguarda na coxia. A câmera fecha no abraço de pai e filho, enquanto ouvem-se os gritos de "bis" da plateia: --- "Pai, não vou voltar. Estou com uma dor aqui, ó... Eu me recuso a subir o palco se não puder tocar com perfeição. E não vou voltar para o bis".

Como o filme deixa claro, esse episódio era apenas um dos muitos que o então pianista teria de enfrentar com a saúde. Aos 6 anos tinha convulsões terríveis. Ainda na primeira infância, foi submetido a uma cirurgia para extrair um tumor, do que resultaria uma fístula que o atormentaria por dois anos. O tratamento era doloroso, à base de injeções no pescoço que o quase menino suportaria com a dignidade de um verdadeiro homem.

É exemplarmente bem conduzida do ponto de vista formal, noutro momento interessante do filme, a sequência em que o artista brasileiro vê, pela janela do apartamento em que mora em Nova York, algo impensável: jogadores da Portuguesa de Desportos (time do coração de João) treinam num campo improvisado do Central Park. O pianista desce e é convidado a participar do racha. De sapatos e roupa comum, aceita. Numa disputa de bola com um zagueiro adversário, João Carlos cai e, em close, vemos a seriedade da contusão: uma pedra pontiaguda dilacerara o nervo ulnar, comprometendo para sempre os movimentos da mão de um dos gênios do teclado clássico. 

Tudo é mostrado, no entanto, sem o apelo piegas não raro presente em outras cinebiografias. Isso, por suposto, justifica que Mauro Lima tenha optado por suprimir ou apenas "olhar" à distância acontecimentos que, no livro de Ricardo Carvalho, aparecem como episódios centrais da vida de João Carlos Martins. 

É o caso da cena em que o futuro maestro é amparado por uma coleguinha, Marina, depois de humilhado por meninos do colégio ao sujar a camisa com secreções oriundas da fístula em seu pescoço.

Momento inesquecível, diz, no livro, João Carlos Martins.

Meses depois, voltando do colégio, o artista depara com uma cena assustadora. Homens retiravam do interior da casa de Marina os caixões com os corpos de toda a família, o dela inclusive. "A mãe da menina, diz Ricardo Carvalho, num surto psicótico, ligou o gás do banheiro e lá se trancou com os filhos".

Mauro Lima opta por dar ênfase a passagens intrigantes da trajetória do maestro. É notável, ainda, a sequência em que mostra João Carlos Martins ser escolhido para participar de um dos mais importantes eventos ligados à música clássica, o Festival de Casals, em Porto Rico. O governo brasileiro nega-se a cobrir os custos da viagem, mas o embaixador da Argentina nos Estados Unidos, depois de ler na imprensa sobre o fato, patrocina a ida de João Carlos Martins ao festival. Ele é selecionado como vencedor para se apresentar em Washington, mas, no momento da apresentação, vê-se ao fundo, em primeiro plano, a bandeira da Argentina.

João, o Maestro, na esteira de outros filmes feitos por último no Brasil, confirma o que disse sobre o cinema nacional, em entrevista recente ao jornal O Globo, Ruy Guerra: "O cinema brasileiro, hoje, é melhor que o americano". Polêmica à parte, o Brasil tem realizado mesmo grandes filmes. Que bom.

 

     

 

 

 

 

 

 

 

  

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Paixão escancarada

Chega às livrarias notável biografia do cineasta, poeta e ator Ruy Guerra, de autoria de Vavy Pacheco Borges. Tomo nas mãos o livro, editado pela BoiTempo, e, duas ou três páginas depois, não consigo largá-lo. Havia muito não se publicava um livro tão delicioso, permitam-me o adjetivo talvez inadequado para se avaliar uma produção intelectual, pelo menos observando-se os parâmetros acadêmicos usuais.

Delicioso, insisto, pois é a palavra que melhor diz do imenso prazer que sente o leitor ao ler aquela que me parece ser a primeira biografia de um dos mais importantes artistas "brasileiros" dos últimos tempos. As aspas, claro, devem-se ao fato de que Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira é natural de Moçambique, onde nasceu a 22 de agosto de 1931.

Aos 29 anos chega ao Brasil, vindo de Paris, onde cursara o Idhec, Institut de Hautes Études Cinématographiques, centro de referência em termos de formação cinematográfica da França. Como, curiosamente, é recorrente na história artística e intelectual brasileira, chegou e ficou apaixonado pelo país, vendendo a passagem de volta a fim de se estabelecer para sempre aqui, para felicidade dos brasileiros que, já muito cedo, puderam descobrir que chegava ao país um artista genial.

E, como Vavy Pacheco faz questão de frisar, já nas primeiras páginas dessa belíssima biografia, mais que um grande cineasta, reconhecido internacionalmente pouco tempo depois, chegava ao Brasil "alguém com uma vida cheia de glamour".

A esse respeito, muito embora irrelevante quando se está à frente de um talento de relevo, é conhecido o fato de ter sido sempre cortejado pelo universo feminino, e casado com nomes famosos dos meios artísticos brasileiros, como Leila Diniz, Nara Leão e Cláudia Ohana. Com a primeira teve Janaína Guerra, que, após a morte inesperada da mãe, num desastre aéreo em 1972, Nova Délhi, onde fora premiada como atriz e voltava para o Brasil, passou a viver sob os cuidados de Chico Buarque de Holanda e Marieta Severo. Janaína, sabe-se, tornar-se-ia atriz de reconhecido talento.

O importante, no entanto, é que a biografia de Ruy Guerra percorre a trajetória do homem, mas, acima de tudo, volta-se com proficiência para o grande artista que é. É quando se pode acompanhar o processo de criação poética, dramatúrgica e, sobretudo, cinematográfica de um verdadeiro expert.

Sobre isso, por sinal, deparamos em Ruy Guerra, Paixão Escancarada (título do livro) com relatos de rara agudeza sobre o fazer artístico em diferentes linguagens. É quase perfeito o segmento do livro que Vavy Pacheco denomina Livro 2. Nele estão os capítulos que mais me agradaram na obra, quando Vavy Pacheco se debruça sobre o estilo do biografado em tudo que se relaciona com a criação através da palavra e da imagem. Em Linguagem Fílmica, por exemplo, a biógrafa faz um breve mas eficientíssimo apanhado do que é fazer cinema.

A propósito, quem tiver sido capaz de ver com a devida atenção o cinema de Ruy Guerra (refiro-me aos cinéfilos, propriamente ditos) haverá de perceber facilmente que estamos falando de um cineasta absolutamente extraordinário, um esteta inventivo e muitíssimo feliz em tudo que diz respeito ao que se deve identificar como o 'estilo cinematográfico'.

É que, em cinema, na perspectiva do que tenho procurado fazer quando escrevo sobre a matéria, mesmo para o desconforto de muitos, a câmera é a caneta com que se escreve a narração, o pincel com que se compõe a imagem. E poucos como Ruy Guerra, e não me refiro apenas aos cineastas brasileiros, têm tamanho domínio do principal instrumento da arte cinematográfica. Enquadramentos, travellings, panorâmicas, composição do quadro, equilíbrio de massas, tudo tudo é objeto de escolhas rigorosas em se tratando do diretor de Os Fuzis (1964), obra-prima do cinema nacional.

Não à toa, pois, são recorrentes no livro os depoimentos de diretores de fotografia que enaltecem a sensibilidade "milimétrica" de Ruy Guerra na construção da imagem. Sobre Quase Memória (2015), seu último longa-metragem, diz Renan de Andrade: "A marca forte de Ruy está lá (as marcações de luz particulares e os estéticos enquadramentos de câmera dizem muito sobre isso) e seu filme se legitima muito em cima disso (a fotografia é difícil mas assertiva)".

Ocorre-me lembrar a cena da praia em Os Cafajestes (1962), aula de fotografia fílmica. Sem esquecer, por óbvio, seus planos sequência desconcertantes, a profundidade de campo e o ponto de fuga que nos fazem recordar Jean Renoir, o cineasta francês, em seus melhores momentos.

Por essas breves considerações, e outras muitas razões que as limitações de espaço impedem-nos de explorar, Ruy Guerra, Paixão Escancarada chega ao mercado, para os aficionados do cinema, como um grande acontecimento. Há muito se fazia necessário um registro atento e sensível do que representa esse octogenário 'quase-brasileiro' para o cinema e a arte do Brasil e do mundo. Recomendo.

 

 

 

 

 


 

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

PALESTRA DA LIVRARIA CULTURA

 

                      COMENTÁRIO SOBRE IT'S ALL TRUE
                                                Por Álder Teixeira*                         

Admitamos, de saída, que It's All True não é um documentário como tantos outros, cujas marcas essenciais, grosso modo, caminham na direção da clássica definição de Jacques-Aumont: "[...] uma montagem cinematográfica de imagens visuais e sonoras apresentadas como reais e não fictícias".

Este aspecto, simploriamente arrolado pelo renomado estudioso francês, é que dá ao filme de Richard Wilson, Myron Meisel e Bill Krohn, de 1993, uma força de sentido que vai muito além das fronteiras fixadas para o que se convencionou chamar de "documentário", pelo menos se se levarem em consideração algumas de suas propriedades de conteúdo e forma, como pretendemos, concisamente, analisar no presente comentário.

Como ocorre, por exemplo, ao não menos importante trabalho de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado Para Morrer, concluído em 1981, It's All True é um filme que joga com duas temporalidades, segundo a classificação de Gilles Deleuze em Cinema II: Imagem-Tempo, 1985, livro com que o pensador francês, a partir dos conceitos filosóficos de Bergson a propósito do movimento, do tempo e da imagem, propõe uma reeducação do olhar.

Vejamos. Cabra Marcado Para Morrer, de Eduardo Coutinho, foi rodado, inicialmente, em 1964 e tinha como fio condutor o assassinato, ocorrido dois anos antes, de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas do estado da Paraíba. Participaram das primeiras tomadas companheiros do líder assassinado e sua esposa, Elizabeth Teixeira.

No filme, a exemplo do que se pode ver no material original gravado no sertão paraibano, João Pedro é interpretado por um camponês, numa perspectiva fílmica em que ficção e realidade se entrecruzam. As gravações, no entanto, deflagrado o golpe de abril de 1964, seriam interrompidas e muitas das pessoas envolvidas em sua realização passariam a viver na clandestinidade, Elizabeth Teixeira inclusive.

Em 1981, com a abertura política e a retomada da democracia no país, Eduardo Coutinho retorna à Paraíba e concebe um "novo" filme a partir do que ficara de memória das filmagens de dezessete anos antes. O leitmotiv do filme, contudo, teria por tema as questões políticas do primeiro momento, 1964, resultando o material rodado à época, no filme de 1981, no que se convencionou chamar de "filme dentro do filme", estratégia narrativa comumente classificada como "metacinema", ou, segundo os pressupostos da semiótica, "intertextualidade" fílmica.

Em face das limitações de espaço e motivações do presente comentário, todavia, e considerando a complexidade da tese defendida por Deleuze, contentemo-nos, por inevitável, com a sua sinóptica e incontornável afirmação de que "o cinema é o espaço por excelência para a análise das complexas relações entre passado e presente, memória e acontecimento".

Voltemos ao filme de Richard Wilson, a partir de agora referido como seu realizador (além de Wilson o filme é assinado por Myron Meisel e Bill Khron):

Lançado em 1993, It's All True, foi produzido a partir do material rodado por Orson Welles em 1942, dentro de um projeto que tinha por objetivo fortalecer a política de boa vizinhança dos Estados Unidos com países de capitalismo periférico, a exemplo do Brasil, sob o comando do estúdio RKO.

O filme original teria dois andamentos temáticos: o primeiro, a adaptação de um conto de Robert Flaherty em torno da amizade entre um menino e um touro, a ser gravado no México; o segundo, sobre o Carnaval do Rio de Janeiro.

O terceiro, a ficcionalização da viagem de jangada, de Fortaleza ao Rio de Janeiro, de três pescadores cearenses imbuídos de reivindicar junto ao presidente Getúlio Vargas, pessoalmente, melhores condições de trabalho e incentivo legal à profissão, supostamente fora concebido como um filme à parte, Jangadeiros, fruto das impressões que a aventura histórica teria causado a Orson Welles.

O filme, contudo, iria tomar um rumo diferente do que pretendiam seus patrocinadores, Nelson Rockefeller e o governo americano à frente, passando a contradizer as motivações iniciais, ou seja, vender imagens positivas do Brasil na perspectiva de suas relações com os Estados Unidos. Depoimentos de Pery Ribeiro e Grande Otelo, no filme de Richard Wilson, apontam nessa direção, o que, em tese, esclarece a complicada decisão da RKO de interromper o projeto e impedir a continuidade das gravações. As limitações de espaço e tempo, infelizmente, exigem que façamos aqui supressões importantes acerca da polêmica em torno de It's All True e das razões que impediram sua conclusão.

O fato é que o material gravado, cujo destino ficaria por muitos anos desconhecido, foi encontrado por funcionários da Paramount (produtora a que fora vendida a RKO) e entregues ao pesquisador de cinema Bill Khron, em inícios dos anos oitenta.

É desses negativos, em grande parte irrecuperáveis, que Wilson faria o filme lançado em 1993, exibido pela primeira vez no Festival de Cannes.

Mas, por que partimos da afirmação de que It's All True não é um documentário, digamos, convencional, uma vez que apresenta em sua estrutura narrativa elementos tradicionais do gênero, a exemplo do uso da voz over, das entrevistas, do som direto, da alternância imagens documentais/depoimentos de pessoas em seus papeis "reais" e, sobretudo, uma montagem que rompe com a continuidade típica do filme de ficção em favor da representação de situações relacionadas entre si no tempo e no espaço ditos reais?

O procedimento fílmico aqui utilizado situa-se no estatuto do que André Gide, valendo-se de um conceito da heráldica, define como "mise en abyme", ou seja, a estratégia narrativa que consiste num processo de reflexividade, de duplicação especular.

Aqui, no entanto, essa propriedade não se dá apenas no nível do enunciado, isto é, da inserção de uma narrativa dentro de outra narrativa a fim de representar, como documento, fragmentos do que é, originariamente, o objeto de exame do filme.

Não. Em It's All True deparamos com um verdadeiro "movimento para o abismo", pois se trata de um filme feito a partir da tentativa de realização de um filme dentro do qual a representação da realidade se faz com elementos não do documentário, tal qual o pensamos tradicionalmente, mas com a ficcionalização de fatos que, artisticamente, foram submetidos a uma concepção autoral assinada, no caso, pelo cineasta Orson Welles, no ano de 1942, em lugares e momentos diferentes ente si: México, Rio de Janeiro e Fortaleza.

Não se trata, tão-somente, de uma narrativa (ou fragmentos de uma narrativa) explorada no nível do enunciado, em que se vê (ela, a primeira narrativa) sucintamente representada a uma dada altura do seu curso, como é comum em filmes do gênero.

O procedimento, em It's All True, ganha, assim, maior complexidade simbólica e a instância enunciadora configura-se no texto fílmico em plena ação enunciatória: em mais de uma oportunidade, vemos o diretor inglês dirigindo a representação ficcional de um fato real, a viagem dos pescadores cearenses entre Fortaleza e o Rio de Janeiro, embora a sua representação se dê com os próprios indivíduos no fato real agora representado.

Para concluir, Richard Wilson, nessa tentativa de reconstituição de uma experiência cinematográfica já conhecida, a experiência de filmagem levada a efeito de modo inconcluso por Orson Welles, em 1942,  no contexto de ocorrências extrafílmicas ainda não esclarecidas (e que provavelmente jamais serão de todo esclarecidas) ainda que voltando-se para a figura do cineasta inglês, não descreve ou documenta essa experiência, as práticas cinematográficas ou estéticas vivenciadas pelo diretor, de forma rigorosamente documental.

Incorre, ouso afirmar, num tipo de registro tipificado por Timothy Corrigan, em estudo notável, como filme-ensaio. Melhor: num filme-ensaio "refrativo", que, segundo o estudioso americano, "decompõe e dispersa a arte ou o objeto que envolve, fragmenta-o ou deflete-o de maneiras que deixam a obra original dispersa e à deriva em um mundo exterior".

It's All True, a exemplo do que afirma o autor citado a propósito do que define como filme-ensaio refrativo (e são suas as palavras com que encerro essa comunicação), pede que "pensemos não tanto sobre a estética do cinema   ---   o gênio por trás dele, as estratégias artísticas ou suas comunicações emocionais e imaginativas. Em vez disso [...], tende, de variadas maneiras, a chamar a atenção para onde o filme fracassa ou, mais precisamente, para onde e como o cinematográfico pode nos forçar para além de suas fronteiras, forçar-nos a pensar sobre um mundo e sobre nós mesmos, que necessária e crucialmente existem fora do cinema".

O eixo temático do filme, pois, é menos estético (ainda que seja notável também sob este aspecto)* e mais um  'objeto estético' fenomenológico de percepção política sobre o fazer cinematográfico.

*Nota: Não perder de vista que todo documentário é, em alguma medida, ficcional, assim como toda ficção também incorpora muito do documental. Essa discussão, que há muito constitui objeto de exame nem sempre confortável entre teóricos do mundo inteiro, ainda desperta interesse quando o assunto é a Arte. O cinema, em particular, por ser uma linguagem dentro da qual muitas outras linguagens estão presentes, amplia o leque de possibilidades discursivas. André Bazin, para citar um estudioso incontornável da matéria, foi mal compreendido quando defendeu "um certo realismo ontológico e automático do cinema". A sua didática declaração sobre o neorrealismo italiano parece-me esclarecedora nesse sentido: "[...] devemos desconfiar da oposição entre o refinamento estético e não sei que crueza, que eficácia imediata de um realismo que se contentaria em mostrar a realidade. Não será, a meu ver, o menor mérito do cinema italiano ter lembrado uma vez mais que não havia 'realismo' em arte que não fosse em princípio profundamente 'estético'?" Fazer cinema, pois, é lançar mão de uma retórica, é fazer escolhas e manipular instrumentos, construir discursos, levar a efeito um tipo de interferência. 

        *Professor de História da Arte, Iniciação à Estética e Estética do Cinema. É Mestre em Literatura e Doutor em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG.                                     

 


sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Brevíssimo olhar sobre o cinema nórdico

Fã confesso do cinema da Escandinávia, fui ver Estórias de Estocolmo, que abriu ontem, com chave de ouro, a Mostra do Cinema Nórdico de Fortaleza. Um belo filme, sobre o qual, por provocação do amigo Régis Frota, produzirei coluna oportunamente. 

Os termos escandinavo e nórdico, sabe-se, servem indistintamente para definir um grupo de países ricos e muito próximos não apenas do ponto de vista geográfico (norte da Europa), mas, sobretudo, por uma assumida identidade cultural: Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia, aos quais se somam os territórios autônomos da Groelândia e das ilhas Faroé. 

Didatismo à parte, esses países, Dinamarca e Suécia à frente, produzem desde há muito uma cinematografia de elevadíssima qualidade, a que, por certo, não raro se devem grandes paixões pela sétima arte, bem como ocorreu a este escriba, bergmaniano de quatro costados. 

Quem haverá de esquecer, diga-se de passagem, o talento e a beleza de atrizes como Greta Garbo, Ingrid Bergman, Anita Ekberg, Bibi Andersson ou Liv Ullmann, para ficar em uns poucos nomes memoráveis do cinema nórdico? 

A este respeito, por sinal, é curiosa a tendência natural de se considerar a Suécia, por exemplo, um país tentadoramente libertino em termos sexuais, o que, até onde sei, entre nós, tem suas raízes no curioso envolvimento do jogador Garrincha com belíssimas louras, ali nascidas, quando da estada da seleção brasileira em Estocolmo durante a Copa do Mundo de 1958. O fato é minuciosamente narrado por Ruy Castro no delicioso A Estrela Solitária

O mito, no entanto, tem origem no conservadorismo norte-americano e está, de fato, relacionado com o cinema. Vejamos. 

No auge de sua carreira, mas aborrecida com o modelo cinematográfico então dominante nos Estados Unidos, onde havia desferido seus mais altos voos como atriz, a sueca Ingrid Bergman escreve ao cineasta italiano Roberto Rossellini expondo sua admiração pelo diretor e pela cinematografia do país à época, segunda metade dos anos 40. Meses depois, Bergman recebe o convite do diretor de Viagem à Itália para protagonizar Stromboli, o primeiro de uma série de grandes filmes que fariam juntos. 

Do filme à paixão de um pelo outro foi um sopro, do que resultaria o divórcio da atriz nórdica com Petter Lindströn e de Roberto Rossellini com Anna Magnani. 

Do amor, além de filmes soberbos, nasceria a belíssima Isabella Rossellini. Sobre o caso há, por sinal, um filme curioso, A Guerra dos Vulcões, de Francesco Patierno, se não me engano, de 2011. 

Segundo Paulo Guimarães, notável estudioso dos países escandinavos, é preconceituoso o que se diz sobre a mulher sueca no que tange a sua sexualidade. A banalização da nudez e do sexo, diz ele, mais se deve a uma natural expressão de liberdade individual que ao erotismo propriamente dito. 

Independentemente disso, porém, o envolvimento de Roberto Rossellini e Ingrid Bergman entraria para a história como o maior escândalo do jet-set, nomeadamente em Hollywood, que passaria a execrar a atriz sueca pelo sem-fim dos tempos. 

Mas é a qualidade do cinema nórdico o que interessa. Destaque para nomes obrigatórios, ocorrendo citar de cor, Vilgot Sjoman, Alf Sjoberg, Arn Mattson, Bo Widerberg, Bergman (o maior deles), Lars Von Trier, Thomas Vintenberg e tantos outros. Cinema denso, de sondagem psicológica, de mergulho na alma humana, mas não menos extraordinário pela beleza estética e pelo pleno domínio do instrumental cinematográfico por parte de grandes diretores de ontem e de hoje. 

É esse jeito de fazer cinema   ---   e que faz a Escandinávia gozar de um prestígio diferenciado   ---, que se poderá apreciar quatro vezes ao dia durante a Mostra do Cinema Nórdico. Se a atenção, desta feita, está voltada para o cinema contemporâneo, tanto melhor. Razão por que não se deve perder tal oportunidade. Recomendo.    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Ao Deus desconhecido

Enquanto leio Nietzsche, Uma Biografia, o belíssimo livro de R. J. Hollingdale, sentado a uma poltrona da Livraria Cultura, ouço de um amigo a provocação: "Deus está morto!". Cita a famosa assertiva do filósofo alemão, retirada de cor do livro A Gaia Ciência. Como bom polemista, que costuma 'dar um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair dela', bem ao gosto da máxima popular, convido-o a sentar-se, e vou, pelas bordas, desconstruindo sua provocação.

O preconceito decorre, estou certo, do fato de Nietzsche ter, ele mesmo, declarado-se ateu. Está na sua autobiografia, Ecce Homo, que mal e mal justifica o equívoco de tanta gente acerca do filósofo alemão. É que, com frequência, fazem de sua obra   ---   extraordinária!   ---, uma leitura de superfície, sem percorrer com a atenção devida os labirintos, as armadilhas, as falsas pistas e, sobretudo, a poesia imensa de que o autor de Assim Falou Zaratustra inundou sua escrita.

Citação (as faço tanto!) é coisa muito séria para ser reproduzida ao sabor da vontade e das conveniências. A literatura, como a filosofia, é feita de metáforas, de jogo de palavras, de polissemias, enfim, de afirmações perpassadas de ironia, figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender. Temos uma inclinação para fazer do pensamento alheio uma interpretação rasa, não é raro com a intenção de tirar, disso, algum proveito.

É verdade que Nietzsche, literalmente, usou essas palavras. Mas o fez, fundamentalmente, para falar de um tempo em que perdemos a noção cósmica da existência e nos permitimos a negação dos valores absolutos, de que resultará, por inevitável, a descrença de todos os valores, o que podemos definir como niilismo.

Qualquer leitor mais atento, pois, haverá de compreender que Nietzsche vê no niilismo um sinal da decadência que toma conta do mundo moderno. Por isso, ele nos fala da necessidade imperiosa de reformulação dos valores humanos, que nem mesmo o cristianismo foi capaz de elevar `a perfeição. Alegoricamente, então, a morte de Deus abriria caminho para novas possibilidades humanas. O seu ataque não se dirige a um Deus impossível, como grosso modo se quer provar, mas `as instituições que O dizem representar.

A História, nesse sentido, é feita de equívocos, de julgamentos precipitados, de conclusões descabidas. Espinosa, o pensador sobre o qual Alcântara Nogueira (meu conterrâneo de Iguatu) escreveu coisas maravilhosas, também ele, foi acusado de não crer na existência de Deus. E sua obra, no entanto, foi toda ela dedicada a Deus.

Um estudioso importante, de cujo nome não sou capaz de lembrar aqui, sentado `a frente do computador, enquanto escrevo este artigo, já admitiu de modo convincente que também Sócrates foi acusado de ateu e, pasmem, Cristo, razão por que imortalizado a partir da cruz.

É preciso desconhecer o que existe de essencial no pensamento de Nietzsche para julgá-lo com simplificações. Assim Falou Zaratustra que o possa dizer, na contramão das muitas leituras que se fazem dessa verdadeira obra-prima da filosofia mundial. Poucos livros terão sido escritos com tanta força espiritual, tanta crença na possibilidade de vivermos a bondade essencial, que, um dia, haverá de nos aproximar do verdadeiro Deus.

Por fim, como o fiz em presença do amigo de que lhes falei acima, permitam-me terminar com a poesia do próprio Nietzsche, segundo a tradução conhecida de Leonardo Boff.

"Antes de prosseguir em meu caminho/e lançar o meu olhar para frente uma vez mais,/elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo./A Ti, das profundezas do meu coração,/tenho dedicado altares festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar./Sobre esses altares estão  gravadas em fogo estas palavras:/"Ao Deus desconhecido"./Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos./Seu, sou seu, não obstante os laços que me puxam para o abismo./Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-Lo./Eu quero Te conhecer desconhecido./Tu, que me penetras a alma e, tal qual turbilhão, invades a minha vida./Tu, o incompreensível, mas meu semelhante,/quero Te conhecer, quero servir só a Ti".

Ele fala do conflito interior de cada um de nós. Ter fé, só, não é bastante. É preciso exercitá-la.

Percebe-se, pois, que Nietzsche foi mal compreendido, e o Deus que diz estar morto é outro. Aquele, por trás de cuja existência escondemos nossa omissão diante da miséria humana. Matamos este Deus todos os dias, nos sinais de trânsito, indiferentes aos que sentem fome ou necessitam de assistência para sair do inferno em que se encontram; matamos este Deus quando exploramos as pessoas que nos servem, quando aviltamos suas vidas com salários indignos; matamos este Deus quando nos articulamos para suprimir direitos conquistados a duras penas por aqueles que trabalham; quando nos deixamos dominar pela intolerância e pelo ódio aos que pensam diferentemente de nós; quando julgamos o outro pela cor da pele, pelas escolhas que fazem no campo da sexualidade e da política; matamos este Deus quando nos sentimos superiores e enxergamos as pessoas pela posição social que ocupam, num país marcado por tantas contradições. Este Deus está morto, porque o matamos todos os dias.

 

 

 

    

 

 

 


 

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Toques de cinema

OS AMANTES

Os amantes do cinema "acordamos" um tanto viúvos nessa segunda-feira 31. Morreu em Paris, aos 89 anos, Jeanne Moreau, a musa da Nouvelle-Vague, movimento estético que fez a cabeça de minha geração. Não era linda, por exemplo, nos parâmetros estabelecidos para Nastasja Kinsk de A Tentação Proibida (1970), de Alberto Latuada, ou Ava Gardner de A Deusa do Amor (1945), de Elia Kazan. Longe disso. Mas ninguém, na sétima arte, soube como ela dominar a subjetividade masculina, enchendo de uma emoção terna e doce os corações cinéfilos do mundo inteiro.

Morre consagrada, na perspectiva do que afirmou o presidente Emmanuel Macron, para quem Moreau era a França em forma de mulher.

Deixa viva, para nós, seus súditos em termos cinematográficos, a sensualidade provocante de Os Amantes (1958), de Louis Malle e a irreverência inconfundível da quase adolescente de Jules e Jim (1962), de François Truffaut.

Para não falar de suas atuações irrepreensíveis em A Noite (1961), de Michelangelo Antonioni e Diário de Uma Camareira (1960), de Luis Buñuel. Quem sabe o veludo da voz quando cantou Le Tourbillon de La Vie, em cena memorável de Uma Mulher para Dois Homens, como perversamente o clássico de Truffaut tornar-se-ia conhecido no Brasil.

CINEMA CHILENO

Numa iniciativa iluminada, a Caixa Cultural Fortaleza vem apresentando, desde 1 do corrente, a Mostra de Cinema Chileno, dentro de uma programação de fôlego do 27o Cine Ceará  --  Festival Ibero-Americano de Cinema. No catálogo, entre os grandes nomes do cinema chileno, o destaque vem para filmes experimentais ou ditos surrealistas, na linha do que fizeram Raúl Ruiz e Alejandro Jodorowsky.

Deste, revi, no primeiro dia da mostra, o polêmico El Topo (1970). Revi e mais uma vez, que me perdoem os aficionados do cinema underground, não gostei, em que pese ter olhos abertos para a assumida revisão da gramática cinematográfica clássica levada a efeito pelo autor de A Montanha Sagrada (1973). 

Se é possível apresentar uma sinopse do filme, pelo menos de modo a tornar palatável as rupturas narrativas da película, que beiram o nonsense, pela extravagância de sua concepção e escolha de estratégias formais, El Topo transcorre a partir do que se convencionou chamar de "apocalipse nuclear", de que resulta o imenso deserto em que se transformou o mundo.

É nesse cenário de um faroeste surreal que El Topo, a personagem central, resolve reaproximar os irmãos Caim e Abel, separados pelo pai sob a suspeita de que Caim pudesse matar Abel.

Já no início do filme, pois, é que se vê a cerimônia de cremação da mãe, abrindo-se desde então o complicado legue dramático do filme e o que   ---    parece   ---, será o inelutável cumprimento do destino.

O filme, pode-se perceber, tem bases temáticas assumidamente místicas (ou míticas?), mas não é isso o que faz de El Topo uma obra de difícil compreensão. É a profusão de alegorias e o tratamento estético propriamente dito que o tornam prolixo.

Jodorowsky abusa dos efeitos cinematográficos de extração surrealista, bem na direção do que fizeram os aclamados integrantes da chamada arte new age.

Sem incorrer no que se poderá, precipitadamente, julgar uma contradição deste escriba, cabe evidenciar aqui o fato de que se trata, apesar de tudo, de um grande artista, sobremaneira pelo domínio de múltiplas linguagens. Jodorowsky é um realizador original e ousado, quer quando faz cinema, quer quando compõe, escreve, interpreta, desenha ou "pensa", tendo se revelado um filósofo do mais arraigado humanismo.

Gostar-se do que faz, num ou noutro suporte estético, diga-se a bem da verdade, tem uma medida considerável de subjetividade que se pode dizer kantiana. Vale conferir.