sexta-feira, 25 de julho de 2008

As Intermitências da Morte

Num dos seus mais ‘deliciosos’ livros, As Intermitências da Morte, José Saramago narra uma história curiosa: num país não-identificado, a partir do momento em que se festeja a entrada de um novo ano, todas as pessoas simplesmente perdem a condição de mortais, inclusive a rainha, que parecia dar seus últimos suspiros. A primeira repercussão, claro, é das mais eufóricas. Tudo que se pensava impossível de tão maravilhoso que é. Com o passar dos dias, no entanto, começam a surgir os primeiros problemas, as primeiras insatisfações. A Igreja depara com uma queda crescente do número de fiéis, afinal, perde completa validade a noção de céu, inferno, paraíso, ressurreição. Os hospitais, uma vez que os moribundos não morrem mais, passam a ficar entupidos de vivos-mortos, o que implica em problemas inimagináveis. E os donos de funerárias e seguradoras vêem-se diante de uma crise jamais esperada. É o caos deixar de existir a morte.

O livro é de 2005 e expõe, com a genialidade costumeira do ficcionista português, uma situação a um tempo crítica e hilária. É do que me lembro quando, entre amigos, vem à tona o quadro que se estabelece com a polêmica Lei Seca. As opiniões são as mais desencontradas, em que pese a queda significativa de acidentes de trânsito e de demanda hospitalar nas emergências. Fala-se de tudo, tolices inomináveis, argumentos sem pé-nem-cabeça: que é um absurdo medir a responsabilidade de uns pela irresponsabilidade dos outros, que a medida é intolerante etc. E, principalmente, fala-se que os bares e restaurantes tendem a deparar com dificuldades insuperáveis e que será grande a quebradeira, sem esquecer do crescimento dos índices de desemprego entre garçons, cozinheiros, serviçais etc. Um caos, beber e não poder dirigir.

A excêntrica tessitura do romance de Saramago, todavia, serve para expor o lado torto da vida em sociedade: casos de extorsão, os interesses individualistas, a sede do lucro a qualquer preço, a ignorância do mínimo senso da ética, o desamor pelo próximo, a corrupção, enfim, a inversão dos valores essenciais da existência. Coisas que devem, ou deveriam, fazer refletir sobre os outros e sobre nós mesmos. Como em todo quadro de crise, também no livro buscam-se alternativas as mais curiosas, como no caso das funerárias e seguradoras. Aqui vem mais um contraponto entre uma situação e outra: em face das implicações advindas da proibição de beber e dirigir, bares estão disponibilizando motoristas para os bebuns; táxis, ao preço de dez reais, lançam mão de seus recursos de comunicação para identificar pontos de blitz e ‘proteger’ os interessados contra punições previstas para motoristas alcoolizados etc. Uma criatividade bem brasileira, que põe a nu as nossas fragilidades morais e a falta de vocação para a seriedade em suas muitas faces.

No capítulo 7 do romance, a morte encaminha a uma emissora de televisão a notícia do seu retorno: ‘a partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios [...] ofereci uma pequena mostra do que seria para eles viver para sempre [...] a partir de agora toda a gente será prevenida por igual e terá o prazo de uma semana para por em prática o que ainda lhe resta na vida.’ Cada um, decorrido o exíguo tempo de vida, receberá uma carta anunciando a chegada da “indesejada das gentes”, para lembrar aqui o eufemismo clássico de Manuel Bandeira. Não vou contar o final do belo romance de Saramago para despertar no leitor, se ainda não o fez, a vontade de ler As Intermitências da Morte. Cá comigo, francamente, como se trata do Brasil, receio que a falta de bom senso dos nossos boêmios contribua para a mudança da Lei. E que, a partir de qualquer dessas próximas meias-noites, muito gente volte naturalmente a morrer. O que é pior: sem aviso prévio.

Teatro, farsa e realidade

Durante festa da colônia iguatuense em Fortaleza, sábado 31, conterrâneo me informa a inauguração do Teatro Pedro Lima Verde. Entre feliz e surpreso - sequer um convite recebi da Secretaria de Cultura do município -, lembro-lhe que a Lei que homenageia Pedrinho é de minha autoria e foi apresentada em projeto à época do meu segundo mandato como vereador. Recordo que tive de tirar leite de pedra para sensibilizar os edis iguatuenses, que, em sua maioria pouco afeitos à atividade cultural, desconheciam quem era Pedro Lima Verde. O teatro seria denominado Luiz Gonzaga. Na defesa do projeto, por escrito e em discurso na tribuna, passei em exame a trajetória desse jovem que por certo viria a brilhar no grande teatro brasileiro (e no cinema!), não morresse tão prematuramente.

Dele, contudo, ficaram passagens marcantes em diferentes montagens do palco e, quando menos, duas películas em que faz ver o seu inegável talento. Lamento não ter podido ir à solenidade de inauguração, embora autor da iniciativa em homenagem a Pedro Lima Verde e professor do mais importante curso de teatro do estado. São os rancores da província fazendo-se ouvir aqui e além, por força do estilo ultrapassado de conduzir a coisa pública. Fazer o quê? De resto, guardo com carinho a cartinha de agradecimento que me escreveu dona Barreirinha, mãe e maior fã do homenageado, o que, para mim, tem muito maior significado. Diga-se em tempo!

O fato reacende uma saudade sem nome de Pedrinho, amigo com quem privei conversas inesquecíveis sobre literatura, teatro, cinema e “causos” de Iguatu, matéria que despertava nele a maior curiosidade (e gargalhadas que tenho guardadas na memória, passados tantos anos desde a última viagem desse grande artista). Que o palco do teatro recém-inaugurado revele gente boa como Pedro Lima Verde, na perspectiva da arte e da condição humana. E que a tacanhez não deite raízes em seu cenário. E a farsa seja apenas aquilo que sabemos dela: uma das duas principais raízes de que se originou o teatro.

Na política, a farsa é outra coisa. Talvez a víscera de que depende o sucesso de muitos que, aqui e acolá, ocupam cargos importantes. Esses, cedo ou tarde, ainda que contra a sua vontade, tiram a máscara ou a deixam acidentalmente cair. No palco, a farsa é alegria e emoção, na vida é desfaçatez. No palco é a mentira que torna belo o espetáculo, mas na vida não. Conta Kierkegaard que em um circo ocorreu um grande incêndio e ao palhaço coube avisar o fato ao público, que não acreditou na verdade e morreu queimado. É que não se vai ao circo, ao cinema ou ao teatro em busca da verdade como valor em si. É à vida real que isso interessa. Lembra Gasset, o filósofo espanhol, que ao teatro o essencial é “fazer-nos ir a ele”, isto é, sair de casa, sair do real para o encontro com o irreal. No teatro, os atores são farsantes, e nós, o público, farseados. Mas isso, ressalte-se, no teatro. Na vida, não!

O caos anunciado

Moro no Papicu, a 9 quilômetros de onde trabalho, o CEFET-CE, nas proximidades da Reitoria da UFC. Em condições normais de trânsito, por certo, faria de carro este percurso em dez ou quinze minutos. Nos últimos meses, no entanto, esse tempo de deslocamento tem aumentado significativamente. Agora, são necessários quarenta, cinqüenta minutos - não raro, uma hora, sobretudo se o faço em horários de pico. Levantamentos do crescimento da frota de automóveis em Fortaleza dão conta de que algo em torno de quatro mil veículos são emplacados todos os meses na Capital. Fácil concluir: em pouco tempo o tráfego da cidade resultará impraticável.

Editorial da Folha de São Paulo, edição de 8 do corrente, comenta pesquisa do Datafolha realizada na capital paulista sobre o problema na maior cidade do país. A matéria, intitulada Custo São Paulo, focaliza dado, segundo o jornal, surpreendente: 56% dos 1.089 paulistanos ouvidos mostram-se favoráveis a ampliar o rodízio de veículos de um para dois dias por semana. Sem desconsiderar o fato de que se trata, como disse, da maior cidade do país, em que se agigantam este e outros problemas comuns nas grandes metrópoles, o editorial da Folha parece constituir um chamamento para o resto das capitais brasileiras. Fiquemos com Fortaleza, que nos interessa mais de perto.

Sem um projeto de engenharia de trânsito eficiente (se é que existe projeto algum), com artérias mal assistidas em termos de organização urbana, bairros desprovidos de atenção administrativa em níveis minimamente satisfatórios, sistema de escoamento de tráfego adequado nos pontos considerados críticos etc., vemos aos poucos a cidade se transformar num inferno para aqueles que dirigem seus automóveis e, em proporções decerto maiores, para os que, não dispondo deste meio, são condicionados a utilizar transportes coletivos. Resultado: se em São Paulo os moradores desperdiçam 109 minutos por dia presos no tráfego, guardadas as proporções devidas, o mesmo problema vem atingindo impiedosamente os fortalezenses, o que, a exemplo do que apontam estudos levados a efeito na capital paulista, acarreta para a nossa economia prejuízos ainda não examinados pelas nossas autoridades constituídas. Isso para não falar das dificuldades pessoais que o cidadão é levado a enfrentar todos os dias, em detrimento de sua capacidade produtiva e do seu bem-estar, que é um dos direitos constitucionais básicos de qualquer sociedade politicamente conduzida de forma racional.

Com a oferta de automóveis em condições de financiamento tentadoras, prestações baixas e tempo de pagamento que chega a cem meses, é óbvio que o aumento da frota tende a crescer nos próximos anos em ritmo vertiginoso. É o caos anunciado. Urge que se busquem alternativas de ação governamental urgentes nas esferas municipal, estadual e federal, sob pena de, em pouco tempo, vermos a ‘Fortaleza bela’ transformar-se num dos mais complicados centros urbanos brasileiros. Para o prejuízo de todos, sobremaneira - e como sempre! - para os menos favorecidos socialmente.

Cheio de Graça

Há dias pensava em escrever sobre Artur da Távola, cuja morte, na semana passada, deixou mais pobre a inteligência brasileira. Advogado, jornalista, especialista em televisão, político de rara competência e escritor notável, Távola era um desses homens extraordinários de que estamos cada vez mais carentes com o passar dos tempos. Por último, acompanhava-o diariamente através da tevê, no programa Quem Tem Medo da Música Clássica. Falava sobre os eruditos com uma originalidade impressionante, deslindando as composições clássicas com uma capacidade didática que beirava a genialidade.

Escreveu sobre tudo, ou quase tudo, sempre com um estilo enxuto, embora eivado de poesia e graça. Mas era o Amor o tema de sua predileção, o Amor em suas múltiplas faces. Dele, pela facilidade com que guardo de cor textos que me impressionam, vem-me à lembrança o que disse certa vez sobre a amizade, nesse viés amoroso que era a sua marca: “Amar, ao contrário do que se pensa, não perturba a visão que se tem do outro. Ao contrário, aguça-a, aprofunda-a, aprimora-a. Faz-nos ver melhor. Também assim é a amizade, forma especial de amor, capaz de ampliar a lucidez e os modos generosos e compreensivos de ver, sentir, perceber o outro e, sobretudo - se possível - potencializar os seus melhores ângulos e sentimentos.
Somos todos seres carentes de sermos vistos e considerados pelo melhor de nós. A trivialidade, a superficialidade, as disputas inconscientes, a inveja, a onipotência, a doença da auto-referência faz a maioria das pessoas transformar-se em vítimas do próprio olhar restritivo. E o olhar restritivo é sempre fruto da projeção que fazem (fazemos) nos demais, de problemas e partes que são nossas e não queremos ver. E quantas vezes isso acontece entre pessoas que se dizem amigas. Essas pessoas (que se dizem amigas) ignoram certas descobertas do velho Dr. Freud e, através de chistes, passam o tempo a gozar o “amigo”, alardeando intimidade (onde às vezes há inveja) como prova de amizade. O que não é. Mesmo quando é... Caso se queira medir o tamanho de uma amizade, meça-se a capacidade de perceber, sentir e potencializar o melhor do outro, porque somente essa atitude fará dele uma pessoa cada vez melhor e, por isso, merecedora da amizade que lhe é dedicada.”

Meu Deus! Que compreensão profunda das coisas tinha Artur da Távola. Que sensibilidade para o que é essencial nos valores humanos. Que mestria em dizer sobre cada um de nós aquilo que temos de mais verdadeiro, de mais incompreendido de tão claro que é. Só mesmo um homem diferenciado e especial como ele para destrinçar a alma humana com tanta simplicidade, tanta exatidão, tanto vigor e tanta poesia.

Numa de suas crônicas antológicas, cita um religioso português acerca da ‘graça’: “Graça é um dom sobrenatural que Deus nos concede gratuitamente e pelo merecimento de Jesus Cristo, para podermos santificar a nossa vida e obter a nossa salvação eterna. A Graça é um bem maior que todos os bens do Universo”. Acho que o fez movido por este valor divino que só as pessoas iluminadas possuem. Como estamos necessitados de gente assim, como Artur da Távola. De sua crônica, roubo outra citação, para reverenciá-lo há poucos dias de sua morte: “A Graça já é um princípio da vida celeste em nós; é Deus vindo até nós com o seu auxilio para nos elevarmos a Ele.” Não tenho dúvida, Artur da Távola elevou-se a Deus na semana que passou.

Eis que o amor pode ser eterno

Zélia Gattai disse, numa entrevista que me escapa a origem, uma declaração de amor de que jamais me esqueço: - “Quando Jorge morrer, quero que tenha encomendado um caixão-de-casal”. Zélia era casada com Jorge Amado. Ia - com a desconcertante declaração - para além do que os amantes juram aos pés do altar: até que a morte nos separe! Claro, era uma forma de afirmar, num rompante romântico, o seu amor pelo escritor baiano.

Mas se o leitor ainda crê que o amor pode ser eterno, que bom. A literatura imortalizou histórias inesquecíveis. E não é apenas do mito que estou falando. Houve, na realidade, casos fascinantes. O filósofo André Gorz, por exemplo, um judeu austríaco desprovido de qualquer atributo de beleza clássica, narigudo e deselegante no andar, conheceu em outubro de 1947 a atriz Dorine, integrante de um grupo de teatro da cidade de Lausanne, com quem viria a casar rapidamente - e da forma mais inusitada possível. Vou contar: Groz encontrou-a recém-chegada à Suiça e ficou arrebatado pelos seus encantos, ainda que não tivessem ido além de duas ou três palavras de uma conversa informal. Amor à primeira vista? Sim, foi amor à primeira vista. Dias depois, vendo-a passar por uma rua da cidade, acompanhou-a a passos largos e fez-lhe a proposta surpreendente: - “Vamos dançar?” Mais surpreendente, ainda, foi a reação da bela mulher: - “Why not?” - Por que não? - disse ela.

Na terceira ou quarta vez que a encontrou, Groz, finalmente, pode beijar Dorine e tirar-lhe a roupa, como está descrito no livro Carta a D. - A história de um grande amor. “ [...] o prazer não é algo que se tome ou dê. É um jeito de dar-se e pedir ao outro a doação de si”. Viveram, juntos, 60 anos, até 22 de setembro do ano passado, quando Groz e Dorine foram encontrados mortos, lado a lado, num quarto da casa deles, na França. Haviam feito um pacto de suicídio por injeção letal.

O livro está esgotado em suas duas primeiras edições e deve sair em breve pela editora Cosac Naify e Annablume. Conta a trajetória de André Groz nos meios intelectuais franceses, em que se destacou como um pensador atento e sensível da corrente existencialista liderada por Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Como o primeiro, influenciou a juventude parisiense que, em 1968, viraria a cidade de pernas para o ar. Tornar-se-ia um dos maiores gurus dos jovens franceses, aos quais, mais tarde, desapontaria com críticas ao marxismo, no livro Adeus ao proletariado (1980).

Se você, leitor, acredita, como eu, na possibilidade de encontros definitivos (ainda que as evidências digam não, como me ocorreu), adquira o livro, quando puder. Por enquanto, beba nas palavras do autor a sua mulher: - “Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa, desejável. Já faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.” Eis que o amor pode ser eterno.

A renúncia de Fidel

O anúncio esperado da renúncia de Fidel Castro ao cargo de chefe de governo e comandante-em-chefe das forças armadas de Cuba parece-me concluir uma das etapas mais marcantes da História mundial. Como defensor da liberdade, é claro, vejo como positiva a decisão do comandante, mas, confesso, sinto-me tocado pelo que isso representa para a utopia das esquerdas nos últimos 50 anos. Passo em mente os avanços que a revolução trouxe para o país desde aquele longínquo 1º janeiro de 1959, quando a ilha deixou de ser um bordel dos americanos para se tornar uma Nação de iguais. Como se fora um filho de Cuba, sinto orgulho pelo desenvolvimento obtido nos diferentes campos - os essenciais, sobremodo. Estou falando da realidade do país em termos de saúde, educação, expectativa de vida e dignidade política, em que pese a face ditatorial do governo revolucionário.

Lembro das palavras com que o líder se dirigiu aos compatriotas em dezembro último, ainda abatido pela doença que, hoje, leva-o a decidir pelo afastamento: -“Minha tarefa essencial não é me agarrar ao governo nem obstruir a chegada de gente mais jovem, mas passar experiência e idéias cujo valor modesto surja dos tempos excepcionais em que vivi.” Desculpem, mas não consigo ver nisso senão uma demonstração de hombridade e sabedoria que me parecem ser marcas inconfundíveis de Fidel. Reconheço que não se pode mais pensar a revolução com os referenciais de um passado já distante, que o socialismo real mostrou-se inviável como modelo, que isso e aquilo outro, mas não consigo fechar os olhos para o que representou Fidel para as últimas gerações, uma das quais é a minha. Estou convencido de que a sua renúncia é o fato mais relevante desde o estampido que calou a voz de Che, em 1967.

Vi-o uma vez, a uma distância de 20, 30 metros. Era a primeira posse de Lula como presidente. Compúnhamos uma multidão em frente ao palanque onde se viam chefes de Estado os mais diferentes. Eis que ouço a voz de um jovem a poucos passos: - “Fidel, meu! Fidel, meu! É ele, vê lá! É Fidel, meu!” Não saberia descrever a emoção que tomou conta de todos naquele instante. Mas lembro que abri o mais largo sorriso de que já fui capaz, enquanto duas lágrimas, lentamente, caiam-me pelas maçãs do rosto. Foi aí que senti um aperto de mão da minha companheira. Olhei-a, e só então pude ver que estava em prantos, dominada pela força de sua emoção, maior e mais bonita que a minha naquele momento. Abraçamo-nos como que extasiados, acompanhando com olhos atentos a trajetória percorrida por aquele homem imensamente alto, para quem, em sortilégio, todos os olhares se voltavam, na eternidade de um instante. A praça delirava na presença do mito.

Durante quase cinco decênios, Fidel Castro sobreviveu a dez governos americanos - seus inimigos figadais -, a algo em torno de 600 tentativas de assassinato e a uma invasão dos EUA. A exemplo de Che, tornou-se revolucionário após abdicar do confortável cotidiano de filho de um latifundiário rico para se dedicar aos pobres de Cuba. Com dezoito homens, apenas, enfileirou-se contra Fulgêncio Batista e seu reduto de corrupção, máfia, jogatina, prostituição, que faziam do país, como disse, um tipo de bordel dos ricos norte-americanos. Arrebanhou apoio entre os camponeses da serra Maestra, enfrentou fome, sede, frio, sofrimento físico e emocional, até consolidar a vitória da guerrilha, em inícios de 1959. Colocou Cuba entre os países com melhores índices de crescimento social, acabou com o analfabetismo, deu-lhe status de país-referência em termos de saúde, elevou para 77,7 anos a expectativa de vida dos moradores da Ilha. Mas matou em nome da revolução e permaneceu no poder por 49 anos. Sem rasgos de esquerdismo caduco, lamento que só isso venha a pesar no julgamento que lhe fará a História.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Ainda sobre o ciúme

Leitora comenta a coluna de sábado, que leu no meu blog, e mostra-se curiosa em relação aos outros dois tipos de ciúme estudados por Freud. Quer saber mais. Vá lá, falemos um pouquinho mais sobre o tema. No estudo citado, de 1922, como disse, Freud estabelece a existência de três tipos de ciúme: o normal, o projetado e o delirante. Sobre o primeiro tecemos considerações rápidas no texto anterior. O segundo, projetado, é um caso clássico que a leitora diz conhecer de perto (risos): é uma projeção no outro cônjuge da própria infidelidade. A pessoa tem inclinações para trair, sente-se com freqüência tentada a fazê-lo e, numa atitude inconsciente de defesa ou mascaramento de suas vocações adúlteras, transfere para a outra essas ‘inquietações’. É mesmo um tipo comum e, segundo Freud, pode sobrepor-se ao ciúme dito normal ou deslizar para o terceiro tipo, o delirante. Aqui, creio, entram os excessos da psicanálise: para Freud, no ciúme delirante estão presentes os mesmos mecanismos do ciúme projetado, mas o objeto do desejo é, nesse caso, do mesmo sexo. Palavras do próprio: “O ciúme delirante corresponde a uma homossexualidade abafada”. Valendo-me da literatura, a título de exemplo e no viés da psicanálise, no Dom Casmurro é Bentinho quem sente forte atração por Escobar, a quem considera objeto passional da mulher, Capitu. Tudo no plano do inconsciente, claro. Coisas da psicanálise.

O fato é que não se pode desconsiderar essa possibilidade, ou seja, não se pode fechar olhos para as muitas pistas deixadas por Machado acerca da paixão homossexual de Bentinho. Textualmente: “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo [Escobar], que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou”. Isso para ficar numa citação, apenas, entre as muitas que se poderiam fazer. Obra aberta, no clássico sentido professado por Humberto Eco, em livro homônimo, a obra de Machado permite leituras diversas. Este olhar sobre a vertente homossexual de Bentinho, pois, prende-se à tentativa de exemplificar o que para Freud seria o ciúme delirante. Satisfeita a curiosidade da leitora, penso, voltemos ao tema da última coluna sobre a pesquisa “Ciúme excessivo induz à traição”, que tanta polêmica causou.

A literatura é pródiga em tematizar essa questão. Em Nelson Rodrigues, cuja genialidade vem a ser outra vez objeto de adoração no meio teatral, depois de um prolongado ostracismo, a coisa é recorrente. Já no texto de estréia, A mulher sem pecado, deparamos com um caso genial: Olegário, o protagonista, tomado de ciúmes da mulher, Lídia, entrega-se a uma cadeira de rodas com a intenção de confirmar a sua infidelidade. A peça gira em torno desse drama, desse ciúme patológico da personagem. Quando, por fim, convence-se de que não é traído, acontece-lhe o pior. Não suportando mais a situação, o inferno em que vive, Lídia foge com Umberto, o motorista da casa.

Mas é outra personagem de Nelson que representa, à saciedade, o tipo ciumento-mórbido: Gilberto, protagonista de Perdoa-me por me traíres, para quem tudo é motivo para desconfiar da mulher, mesmo os mais rotineiros hábitos de higiene: no seu delírio, vê rivais por toda parte, “escorrendo pelas paredes, como água infiltrada”. Decide internar-se para tratamento. Quando se sente recuperado, “outro homem”, retorna à casa, mas a mulher já tem um amante. E aqui vem uma fala maravilhosa da mãe de Gilberto, como se antevisse o adultério: “[...] higiene íntima três vezes por dia, se tem cabimento! Tanto asseio não havia de ser só para o marido, duvido!” Por sua vez, num nonsenso tipicamente rodrigueano, Gilberto, atirando-se aos pés da mulher: “Perdoa-me por me traíres”. É Nelson, no seu melhor estilo.

Crise, canalhice e Carnaval!

É Carnaval! Na linha do que professou o antropólogo Roberto DaMatta, o Brasil se nivela durante os quatro dias de folia. Até quarta-feira, estamos de bem com a vida e nossas dificuldades deixam de existir. A alegria anda solta e somos felizes, temos a vida que pedimos a Deus. Não há pobres e ricos, exploradores e explorados e o que importa é “beber, cair e levantar”, como diz a letra (?) do forró do momento.

Tudo bem. Dá um desconto que todo mundo merece ser feliz, mesmo que à custa de muita cachaça, que ninguém é de ferro. O diabo é que há um cheiro de fumaça no ar e algo me diz que depois da festa vem uma realidade dificílima para o brasileiro. O Banco Central, depois de contar vantagens à exaustão, parece cair na real e prevê subida nos índices de inflação. O país não parece tão preparado para a crise que vem dos Estados Unidos e a coisa tende mesmo a pegar por baixo. Há tempos não começávamos o ano de forma tão dramática.

O pior, é que o governo, em mais um exercício de malandragem, arma mecanismos mil a fim de impor um novo imposto aos brasileiros, única forma de superar as perdas advindas da queda da CPMF. E haja gogó para justificar o injustificável. Redução de gastos, o que é condição sine qua non para o país segurar sua estabilidade, nem pensar. Enquanto isso, paguemos as contas irresponsáveis com cartões de crédito corporativos da Presidência da República.

A propósito, a situação da ministra da Promoção da Igualdade Racial, Matilde Ribeiro, parece mesmo insustentável e os indicativos são de que cairá tão-logo passe o Carnaval. Canalhice. Ribeiro fez compras em free shop. Mas não é bastante elegê-la o bode expiatório da vez. Como ficará a situação do ministro Orlando Silva (Esportes), que pagou com o cartão corporativo até conta de tapiocaria em Brasília. E de Altemir Gregolin (Pesca), que usou a mesma prerrogativa para custear despesas em churrascaria de luxo. Sei, não. A sensação é de que na Capital do país o Carnaval é o ano inteiro.

Nada, não. Tudo passa sobre a face da terra, já dizia Alencar. Vamos à gandaia, que a partir de hoje é o que importa, nesse paraíso tropical. Pelo sim, pelo não, não há negar: este país fica lindo em ritmo de Carnaval. É fascinante como esse povo consegue virar o jogo por uns dias, como essa gente reencontra os mitos do paganismo mais antigo nos quatro dias de folia. É de Bandeira que me lembro agora: “Quero beber! Cantar asneiras/No estro brutal das bebedeiras! Que tudo emborca e faz em caco/Evohé Baco!/Lá se me parte a alma levada/No torvelim da mascarada/A gargalhar em doudo assomo/Evohé Momo./A Lira etérea, a grande Lira!/Porque o eu extático desfira/Em louvor versos obscenos/Evohé Vênus!” Viva o Carnaval!

A Cabra Vadia

Aproveito a folga do Carnaval para ler, entre outras coisas, A Cabra Vadia, de Nelson Rodrigues, que sai em edição da AGIR trinta e oito anos depois da primeira e última edição, 1970. O livro resulta de uma série de artigos publicados por Nelson no jornal O Globo, entre dezembro de 1967 e outubro de 1970, e fazem parte das memórias do autor, que ainda contam com A menina sem estrela , 1967, Confissões, 1968, e O reacionário, 1977. Num estilo inconfundível, o livro traga o leitor da primeira à última página. Revela o lado polêmico do cronista, suas posições desconcertantes sobre temas palpitantes do “ano que não acabou”, para fazer referência à curiosa forma como Zuenir Ventura documentou 1968 em obra obrigatória sobre um dos mais férteis momentos da história do país.

Assumindo-se um reacionário, o que é faceta conhecida das posições políticas do autor de Vestido de noiva, a obra não perde em qualidade por isso, antes pelo contrário: deparamos com um homem absolutamente seguro nas suas inquietantes leituras de algumas questões políticas radicalizadas, naqueles idos, à esquerda e à direita. Põe por terra o mito da omissão e trata, com a sagacidade de um gênio, alguns temas ligados ao movimento estudantil brasileiro, que, entre nós, refletia as ações dos universitários franceses contra o governo De Gaulle e a favor das liberdades plenas.

A crônica com que abre o livro é algo irretocável como peça do gênero. Ex-Covarde, é o título, e, como sugere, mostra um Nelson escancarado em termos ideológicos. Um interlocutor quer saber dele a razão por que “de repente, você mergulha na política”. É então que deparamos com um Nelson pouco conhecido, descendo a língua ferina contra intelectuais, artistas, professores etc., entre os quais se destacam figuras resistentes ao governo militar, como Alceu do Amoroso Lima e Dom Hélder Câmara, alvos das críticas mais contundentes do livro.

Mas é ainda no Ex-Covarde que encontramos uma das ‘confissões’ mais comoventes de Nelson Rodrigues, quando fala das inúmeras mortes ocorridas na família e que, sobremaneira, marcaram tão fundo suas peças teatrais. Refere-se aos seus sofrimentos, “na carne e na alma”, desde 1929, ano em que o irmão Roberto foi assassinado no dia seguinte ao Natal. O pai de Nelson Rodrigues morreria poucos dias depois, “de pura paixão”. Algum tempo depois, morre o irmão Joffre, dos mais ligados a ele. Em seguida, a irmã, Dorinha e o irmão Mário Filho (o talentoso jornalista que dá nome ao Maracanã). “Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário”, dizia sobre o lendário cronista esportivo. “Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim”, declara Nelson, antes de se reportar ao trágico deslizamento de uma pedra, em Laranjeiras, no Rio, sobre a casa do irmão Paulinho. Morreriam no acidente, ainda, a cunhada de Nelson, Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto e a sogra de Paulo Rodrigues, D. Marina. Tanto tempo depois de sua publicação em livro, os textos que compõem A cabra vadia devem ser recebidos com entusiasmo pelos fãs desse artista polêmico e incomparavelmente talentoso, no jornalismo e no teatro modernos do Brasil.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O Amor é Recompensa

"O amor que se procura é bom, mas o que se recebeu sem busca é melhor."
(Shakespeare)
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“Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de Ano, foi um sujeito genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer indivíduo se cansar e entregar os pontos. Aí vem o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para diante vai ser diferente”. As palavras de Drummond, não lembro em que crônica, me visitam no momento em que sento diante do computador para escrever a última coluna de 2007, quando o cheiro de novidade parece já estar no ar com a proximidade do Ano Novo. Não importam os chavões, os lugares-comuns que povoam o imaginário das pessoas a cada dezembro. É o coração falando em lugar da razão, para que os homens, uma vez que seja, se tornem mais solidários, mais fraternos e mais generosos, o que de resto vale como exercício de utopia, de crença de que é possível construir um mundo melhor.

Começar é sempre bom, quando estamos dispostos a melhorar, a sermos diferentes do que temos sido, do que fomos ontem. Digo sempre a meus alunos, a cada novo período de aulas: tentem começar acertando, conscientes de que errar é condição natural para se encontrar o acerto, mas não fazendo dessa verdade uma justificativa para um tipo de acomodação diante dos desafios. Para insistir no erro. Errar não é um direito, é uma chance perdida. Acho que a passagem do ano representa para todos nós mais ou menos isso. Vamos começar de novo. Temos a oportunidade de criar um referencial para uma nova etapa da vida, pautando-a pelos ideais do conserto de nossas imperfeições, que, por humanas, não devem ser tomadas como equivalentes das virtudes que nos faltaram. São imperfeições - e podem ser corrigidas, sim.

O defeito mais comum no homem, penso, é não ser tolerante. Com um pouco mais de tolerância, estou certo, a vida seria bem diferente para todo mundo. Perdoem-me a imodéstia, mas ser um pouco mais tolerante foi nesse ano a minha grande conquista. Aprendi a conviver com as diferenças, a procurar ver antes as virtudes que os defeitos dos outros. Acho que deu resultado, que estou mais bonito como homem, que resolvi com a tolerância algumas das minhas maiores dificuldades. Quero novas mudanças no ano que chega. Quero perdoar mais.

Norman Mailer, escritor americano sobre quem escrevi há pouco neste espaço, tem uma frase desconcertante sobre o amor: “As pessoas ficam procurando o amor como solução para todos os seus problemas quando, na realidade, o amor é recompensa por você ter resolvido os seus problemas”. Uau! É isso mesmo. Como encontrar o amor como algo que acabamos de perder entre coisas na gaveta? O amor é mesmo um tipo de recompensa para quem soube atravessar seus problemas com equilíbrio, com sabedoria, para quem soube curtir a dor e o sofrimento como coisas passageiras. Depois, vem a recompensa. Vem o amor. O amor vem para corações resolvidos, para aqueles que não maldizem a vida, ainda que carregando nos ombros o peso das dificuldades. Amor é sentimento para pessoas felizes, não para os que se entregam rendidos a qualquer dificuldade. O amor destesta as pessoas que não acreditam na vitória do amanhã.

FELIZ ANO NOVO!

O admirável boêmio

Leio com entusiasmo os contos de Everton Alencar, publicados neste semanário. Maior e mais brilhante expressão intelectual da terra, Everton tem brindado os leitores do A Praça com histórias curiosas e instigantes, num estilo incisivo que prende e cumplicia, lembrando as crônicas de Nelson Rodrigues em A vida como ela é. Com um domínio absoluto da linguagem, observa as marcas típicas do gênero - contenção, economia de meios, unidade dramática, de tempo e espaço, onde, embora eventual, o diálogo aparece de modo decisivo, o que confirma o escritor de talento que sempre foi, Everton explora à perfeição temas envolventes, como o desejo sexual, as paixões desenfreadas e a traição amorosa. Além da orgia, natural. Na veia, com a interferência de cunho subjetivo que é mesmo uma característica que põe a ver o boêmio assumido, seduz o leitor e torna-o participante do enredo, que, breve, é bastante para revelar as forças do inconsciente desperto.

Por certo, terá críticos e haverá quem o considere um libertino, que o mundo anda cheio de reprimidos confessos. É que se vê, pela primeira vez, nas fronteiras do nosso jornalismo, tratado em linguagem estética, esse riquíssimo material humano, tão comum nas conversas informais de homens e mulheres - às escondidas, claro -, mas enfaticamente proibido à luz do dia. Lembro, que repercussão parecida tiveram os meus “contos banais”, publicados na revista Em Foco. É que essa literatura incomoda, faz as vezes de espelho, expondo os demônios interiores de cada um. Algo muito próximo do que já vimos, em proporções devidas, acontecer com escritores canônicos, como Jorge Amado, Hilda Hilst e, o já citado, Nelson Rodrigues. “Ce qui est immoral, c`est la bêtise”, já disse Remy de Gourmont, ou seja, imoral é a tolice.

Não escrevo aqui para homenagear o homem de talento raro que é Everton Alencar, já tão reconhecido nos meios acadêmicos, pelo brilhantismo de sua inteligência e de sua vasta cultura. Faço-o por dever de ofício, para ressaltar a técnica originalíssima que desenvolve com seus mini-contos, de uma força sugestiva poderosa, em que pese a simplicidade do estilo por que traz à tona comportamentos humanos reais ou unicamente possíveis. Num gênero traiçoeiro, porque só aparentemente fácil, como é o conto, e condicionado às limitações de espaço, naturais em um veículo como este, Everton propicia-nos uma experiência para além de envolvente e agradável, diria mesmo, deliciosa, a cada quinzena. Ganha o A Praça, ganha o jornalismo literário (não me refiro àquele que se dedica a falar de literatura, mas que revela no ofício o gênio do artista que escreve para jornal), ganhamos os seus leitores, ganha o limitado universo dos ficcionistas iguatuenses, com as primeiras investidas de Everton Alencar no campo da narrativa. O poeta, já o sabíamos grande. Muito embora, diga-se de passagem, também na prosa seja exuberante o lirismo que sai de sua pena, bem à Manuel Bandeira, pungente, compungitivo, como o lirismo dos clowns de Shakespeare.