terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Uma aula de cinema

Vi ontem, finalmente, o premiadíssimo O Som ao Redor, segundo longa do pernambucano Kleber Mendonça Filho. Se para a literatura as primeiras páginas são decisivas para pegar o leitor, que dizer do cinema em relação ao espectador? É o que acontece com o filme de Kleber: a primeira sequência é arrebatadora, e não se consegue mais, sequer, mexer na cadeira. Não há, mesmo, melhor adjetivo. É uma experiência arrebatadora.
Numa sucessão de planos fixos feitos a partir de fotografias em preto e branco, que aos bergmanianos pode lembrar o início de Sarabanda, depara-se com o passado da família num engenho de Pernambuco. Há um corte seco, à maneira de Godard, e tem início um plano-sequência em que o espectador é bruscamente 'apresentado' aos descendentes dessa família, num condomínio de classe média em Recife: um casal de adolescentes, ele de skate, ela de bicicleta, percorre o exíguo espaço entre colunas de um edifício, num travelling para a frente que deságua num playground que mais sugere o pátio de um presídio superlotado. Há grades de proteção por todos os lados. É a primeira sugestão prodigiosa de O Som ao Redor.
Estamos num outro tempo e a correlação de forças não é mais a do ciclo da cana-de-açúcar. Guardadas as diferenças de linguagem, lembra-se de uma fase do romance de José Lins do Rego: o tema, como em Fogo Morto, vai se apoiar na lenta e progressiva agonia da família patriarcal.
A partir daí, é impossível não se deixar dominar pelo canto de sereia de O Som ao Redor. E, aos poucos, vamos conhecendo as novas gerações da família de Seu Francisco (Waldemar José Solha), também ele curvado ao implacável destino que a modernidade do capitalismo lhes impõe. Do antigo patriarca dos canaviais de Pernambuco, vemos, agora, apenas um equivocado dono de imóveis submetido à sufocante realidade do grande centro. Em meio ao som que o rodeia, ruídos do cotidiano, buzinas, batidas de carro, latidos de cão, o burburinho da conversa dos subalternos que cruzam, insistentemente, os espaços da casa (a rigor um apartamento), Kleber Mendonça Filho vai nos fazendo ver a intimidade de cada membro da elite decadente: Tio Anco (Lula Terra), João (Gustavo Jahn), Dinho (Yuri Holanda), este último um delinquente que atormenta os vizinhos e arromba carros para roubar aparelhos de CD. A personificação do declínio financeiro e moral da família.
Numa sucessão de sequências e cenas tiradas da câmera sensível e atenta de Kleber, passamos a ler a poesia com imagens como não se via há muito no cinema brasileiro. Numa delas, digna de figurar nos manuais do que existe de melhor na sétima arte, (ângulo alto) vemos Seu Francisco caminhar pela rua  -- acompanhado apenas pelo acender das luzes de segurança dos prédios  --, até a praia, para se entregar, no silêncio da noite, às águas de um mar revolto, bela metáfora de sua submersão na insignificância do tempo presente e na inconformada solidão. Por extensão, o drama de todos nós.
Mas, se é possível recorrer aos equacionamentos intertextuais, não é muito intuir-se uma certa influência de Bergman em dois planos antológicos do filme: no primeiro,  quando João e Sofia (Irma Brown) são enquadrados, deitados na cama, num close dos rostos contrapostos horizontalmente. Um plano sublime da película de Kleber Mendonça Filho. O segundo, quando, exausta, depois das recorrentes andanças nas noites insones, dos desejos sexuais frustrados, das agressões da vizinha, das baforadas no cigarro de maconha, com que tenta espantar o tédio, Bia (Maeve Jinkings), deitada num sofá, é massageada pelos filhos. A cena se encerra com um sugestivo plano fechado do seu rosto, como os de Liv Ullmann em Bergman.  
Em O Som ao Redor, depara-se com uma aula de cinema. Do roteiro, construído com o rigor estrutural digno de nota, à escala de planos, o ritmo imposto pela montagem 'intelectual' com que se desenvolve a narrativa, a trilha como um elemento indispensável na escritura dos sentidos, até às interpretações naturalistas do elenco (sublimes em sua totalidade), que dão ao filme, intencionalmente, um certo ar de documentário, tudo é feito com a competência de um mestre. Sem esquecer o final que surpreende e arrepia, na maior de todas as extraordinárias metáforas do filme. A câmera não mostra, mas é possível ver.  
 
 
 
 
            
            
            
            
            
            
           

Um comentário:

  1. Olá, Álder!

    Uau! A continuar assim, desossando maravilhosamente bem as nossas mais recentes produções, vou querer ver todas. Sem exceção. (risos)

    Sucesso sempre.

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