quarta-feira, 21 de novembro de 2007

A despedida do rebelde

Semana que passou, um lapso resultou na minha ausência neste espaço, pelo que me desculpo na coluna de hoje. O texto estava pronto e falava da morte do escritor Norman Mailer, em 10 do corrente. Um nome importante da moderna literatura americana, de quem recomendo o clássico Um sonho americano, de que saiu há pouco uma edição de bolso da L&PM. Mailer, ou o Velho Rebelde, como se tornou conhecido nos meios intelectuais dos Estados Unidos, notabilizou-se não apenas pela qualidade da sua prosa de ficção, inquietante e considerada por muitos como desnecessariamente apelativa. É que o autor de Os nus e os mortos, livro de estréia, em que relata suas experiências como soldado na II Guerra Mundial, constitui um exemplo de agitador intelectual não comum nos dias atuais. Dele, li há algum tempo uma entrevista de que, vira e mexe, me recordo pela contundência de suas afirmações sobre a nossa Era, marcada pela vitória da cultura televisiva sobre a cultura literária.

Temperamento explosivo, Mailer acumulou inimizades ao longo do tempo. Consta que certa vez agrediu Gore Vidal pelo simples fato de ter criticado seus livros. Escreveu uma obra significativa (algo em torno de trinta livros) e participou ativamente de manifestações de protesto. Numa dessas manifestações, contra a Guerra do Vietnã, 1967, foi preso e dessa experiência teria resultado o premiado Os Exércitos da noite. A descrença no futuro dos homens, teorizada com o nome de hipsterismo, levou-o a exaltar os desajustados, os psicopatas, os criminosos, as prostitutas, os únicos capazes de agir em favor das transformações coletivas. Considerava que o grande desafio do homem estava em encarar a morte como coisa natural, tema de pelo menos um livro, citado acima, O Sonho Americano. Nele, Mailer narra a vida de Stephen Rojack, um herói de guerra e professor de filosofia existencial que se entrega a uma desenfreada busca de sua identidade através da magia, do medo e da percepção da morte como um fim em si mesma.

Bebedor contumaz, numa das muitas crises passionais fere a golpes de faca a mulher Adele Morales, quase levando-a a óbito. Adele perdoa-o, os dois se reconciliam e vivem por mais algum tempo, até que se dê a separação definitiva. Apesar da crise existencial que o fato desencadearia, Mailer continuou produzindo e por duas vezes ganhou o prêmio Pulitzer. A primeira delas pelo livro Os Exércitos da Noite. Mas uma das criações mais polêmicas do escritor é Marilyn, a biografia, em que defende a tese de que atriz teria sido assassinada por agentes do FBI. Era aficcionado do boxe, tendo escrito um livro sobre a antológica luta entre Cassius Clay e George Foreman, em 1974.

Na linha do que não raro acontece entre grandes celebridades da literatura - o dramaturgo Jean Genet, para ficar num exemplo - Norman Mailer exemplifica à perfeição o homem em conflito com a sua individualidade em meio a um mundo em crise, à inversão de valores, a inexistência de sentido para a vida. Se é verdade que não se devem misturar o autor e sua obra, no caso de Mailer e esses tantos escritores malditos da modernidade, isso parece inevitável. Em Parque dos cervos, 1955, explora este viés kafkiano e tematiza a decepção da ‘inteligência’ com a Guerra Fria. É o fim da nossa Era, como disse, marcada pela escravidão do indivíduo aos interesses de uma sociedade hipócrita e doentia. Por isso, impressiona-me a reflexão de Mailer sobre o destino da humanidade, o fim de um tempo em que a sensibilidade, ainda que obnubilada pela ganância e pelo egotismo, resiste em agonia. Esta a razão por que, com a morte desse rebelde convicto, as literaturas americana e mundial estão mais pobres agora. Quem sabe a sua morte constitua tão-somente a mais radical ironia, o sorriso de sarcasmo em face de uma sociedade que pouco merece além disso.É que talvez não exista mesmo o caminho da redenção.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O ciclo vicioso da paixão

A vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida.
(Vinícius de Moraes)
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Rosa Monteiro, citando o escritor Alejandro Gándara, diz, em A Louca da Casa: “Amar apaixonadamente uma pessoa sem ser correspondido é que nem estar num barco e enjoar - você acha que vai morrer, mas nos outros só provoca risadas.” E, no entanto, a dor que se sente é insuportável. Todo fim de relacionamento, sobretudo daqueles que tiveram vida longa, é desconcertante. E não adianta insistir que “foi melhor assim”, que “Deus sabe o que faz”, que “o importante é a amizade que ficou”, “que isso passa e logo vai aparecer alguém”, palavras e expressões que nada dizem para quem desaba abismo abaixo naquele instante. Balela. Não há separação tão equilibrada que atenda à vontade dos dois. Um lado vai sair machucado, invariavelmente. E só quem passou por uma situação assim é capaz de entender a extensão e a profundidade dessa dor. A coisa pega, queima, sufoca, estrangula, quando se vive esse martírio sem nome.

Cecília Meireles tem um verso antológico sobre o tema: “A maior pena que eu tenho, punhal de prata, não é de me ver morrendo, mas de saber quem me mata”. Ao amante desiludido, custa aceitar a idéia de que se possa ter esquecido tudo. De que o “eu te amo” agora nada represente. Que o outro não se recorde das coisas boas vividas a dois, de que para ele nada mais signifique a lembrança de tudo aquilo que se viveu junto, e do que ainda se tinha por fazer.

Alencar termina Iracema com uma frase lapidar: “Tudo passa sobre a face da terra.” Aos poucos, enfim, vai diminuindo o vazio, a equivocada sensação de que nada mais vale a pena. Volta-se a crer na vida, a agradecer o milagre de cada amanhecer. Compreende-se a difícil realidade de que ninguém é de ninguém. E de que o amor é comunhão, não existe se não é recíproco. Silenciosamente, vai nascendo dentro do peito um novo sentimento, uma esperança que não é a esperança utópica de que falou Nietzsche, aquela que só prolonga o tormento. É a esperança que já tem o gosto inconfundível da felicidade. Recobra-se o amor-próprio, refaz-se a auto-estima, lida-se melhor com a solidão.

Por que se tornam inimigos os ex-amantes? É a precariedade dos homens, a ingratidão para com a felicidade que não foi eterna, a incapacidade para o perdão? Sim, é tudo isso, mas acima de tudo, é não saber perder. No belo romance Em Tuas mãos, a escritora portuguesa Inês Pedrosa diz sobre isso algo que considero indispensável citar: “A separação pode ser o ato de absoluta e radical união, a ligação para eternidade de dois seres que um dia se amaram demasiado para poderem-se amar de outra maneira, pequena e mansa, quase vegetal.” E, continua: “Só nós dois sabemos que não se trata de sucesso ou fracasso. Só nós dois sabemos que o que se sente não se trata - e é em nome desse intratável que um dia nos fez estremecer que agora nos separamos. Para lá da dilaceração dos dias, dos livros, dos discos e filmes que nos coloriram a vida, encontramo-nos agora juntos na violência do sofrimento, na ausência um do outro como já não nos lembrávamos de ter estado em presença.” E desfere o golpe certeiro: “É uma forma de amor inviável, que, por isso mesmo, não tem fim.”

Hora dessas, de repente, deixa de importar se ela continua a usar os brincos que você deu, se ele ainda bebe rum, se parou de fumar. Se ele melhorou o inglês, se ela aprendeu a estacionar, se ainda lembra de você, por que deixou de amar. Um dia, quando você menos espera, a química ressurge, no semáforo - quando os carros se alinham -, no supermercado, no elevador - onde ele gentilmente segurou a porta para você entrar -, no barzinho da esquina, num lampejo de olhar. Vem sorrateira, num cruzar de pernas que só você percebeu, no jeito excêntrico de usar as mãos, de recompor o cabelo, de renovar o batom. Aí, todos sabem, sente-se aquele friozinho que não se pode definir, os olhos brilham, o coração batuca - e então, como no verso memorável de Bandeira, “os céus se misturaram com a terra e o espírito de Deus voltou a se mover sobre as águas”. O ciclo vicioso da paixão. Depois, está na canção do Roberto, o tempo, que transforma todo amor em quase nada.

Destino, inelutável destino

Por mais difícil que seja a situação, quando bem encaminhada, terá boa solução.
(Creonte, personagem de Édipo Rei)
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É polêmica a questão em torno da inelutabilidade do destino, numa palavra, de que aquilo que tem de ser será. A vida, sendo algo que construímos pelas nossas próprias ações, muitas vezes inconscientes, haveria de resultar previsível e, cedo ou tarde, o círculo se fecharia, numa espécie de regressão psicanalítica, cujo desfecho nada mais seria do que uma face desconhecida do nosso próprio passado. O leitor talvez considere complicado o que estou querendo dizer. Calma, explico-me melhor: o homem não consegue se livrar daquilo que lhe foi traçado e escrito. Entendido?

Bem, o tema, como disse, é mesmo polêmico. A cada dia, contudo, vemos acontecer, aqui e além, fatos absolutamente surpreendentes. Na vida íntima das pessoas, no campo de suas profissões, no mundo político, nas questões mais fundas do que costumamos chamar de “fórum íntimo”. A cada dia, numa rotina que já não deveria mais nos chocar, somos informados de que alguém que se julgava imbatível, perdeu; de que super-homens tiveram suas vidas modificadas ao sabor dos ventos, das imprevisibilidades, e se revelaram, repentinamente, frágeis, debilitados; de que verdadeiros impérios desmoronaram como castelos de areia; relacionamentos que tínhamos como sólidos, ruíram por força de banalidades. Aí é que deveríamos perceber como são delicadas as bases que sustentam, a título de exemplo, beleza física, as fortunas materiais, as tolas vaidades, o poder. Aí é que deveríamos constatar como são finas as paredes que parecem separar mundos e realidades: a fartura, da carência; a saúde, da morbidez; o sucesso, do fracasso etc. Ou seja, a aparência, do que é essencial.

Não me ocorre melhor exemplo - porque a arte nos ensina -, que o de Édipo Rei, a peça homônima de Sófocles, um dos três grandes trágicos da Antigüidade (os outros dois são Ésquilo e Eurípides). O enredo é simples, embora constitua a tessitura dramática daquela que é, provavelmente, a mais bem realizada construção teatral de todos os tempos: Laio, a quem se amaldiçoara um dia - e a seus descendentes -, chega a Tebas e casa-se com Jocasta. Torna-se rei. Tudo parece ser felicidade, até que se ouça a terrível premonição do oráculo de Apolo: se tiver um filho, será assassinado por ele, que desposará a viúva. Na tentativa de livrar-se desse destino trágico, quando lhe nasce o filho Édipo, Laio entrega-o a um pastor com a determinação de matá-lo. Tocado pela beleza do pequeno, o pastor não cumpre o que lhe fora ordenado, entrega-o a outro pastor que, finalmente, confia-o a Pólibo, rei de Corinto.

Criado como um príncipe, Édipo ouve, certo dia, a informação de que é filho adotivo, o que procura esclarecer ouvindo o oráculo. Não apenas é filho adotivo, mas o destino o condenara a matar o verdadeiro pai e esposar a mãe. Transtornado, Édipo abandona Corinto e segue o caminho de Tebas. Numa encruzilhada, onde se encontram as estradas de Tebas e Dáulis, no que se poderia considerar um desentendimento de trânsito, discute com um senhor, a quem termina por matar. Uma parte do seu destino se cumprira. Segue viagem, e chegando a Tebas, depara com uma esfinge que desafia os transeuntes com um enigma, devorando-os por não saberem decifrá-lo. Édipo consegue a decifração e redime o povo de Tebas, que o premia duplamente: com o trono e com a mão de Jocasta, a rainha viúva. E sua mãe. É assim o destino dos homens? Não sabemos. Mas não custa cuidar, como se a peça de Sófocles ilustrasse uma verdade essencial. Afinal, como dizia minha mãe, prevenir é sempre melhor que remediar.

O inferno são os outros

O inferno são os outros. Esta frase é dita por uma personagem de Jean-Paul Sartre na peça Entre Quatro Paredes. Na linha do que professou o filósofo francês no importante livro O Ser e o Nada, serve para sintetizar a conhecida tese de Sartre: a vida do homem está condenada ao julgamento que outro homem faz de si. Trocadilho à parte, é isso que me passava pela cabeça ao assistir, pela tevê, às sessões do Senado em que está em pauta o julgamento de Renan Calheiros. Via-se que o antigo homem forte das Alagoas encontrava-se no inferno. Não o inferno da mitologia cristã, claro, mas outro, o inferno de que nos fala Paul Sartre.

Não que não tenha feita por merecer. Dias desses, valendo-me de uma carta aberta supostamente escrita por Tereza Collor, manifestei neste mesmo espaço a minha indignação com esse estado de coisas. Semana passada, novamente, assinando o artigo Farinha do mesmo saco, sobre a abstenção do senador Aluízio Mercadante na sessão em que Calheiros foi absolvido por pequena maioria. Mas é que chego a sentir cheiro de enxofre pelo monitor da tevê, a visualizar os entrechoque de garfos e chifres de muitos diabos. Numa palavra, quem não sabe que ali pouca gente tem moral para julgar quem quer que seja? Que Renan deveria ter caído há mais tempo, é o óbvio ululante. Aliás, nem lembro quando usei este adjetivo pela última vez [risos].

Não bastasse esse jogo de hipocrisia e oportunismo disputado à luz dos spots da tevê, invadindo os nossos lares com a maior sem-cerimônia, vem a público, numa “coincidência” de marketing da editora Abril, a edição de Playboy com ninguém menos na capa que Mônica Veloso, que além de garota de frete revela-se possuidora de um senso de oportunismo digno de nota. Além de bonita é articulada: vai escrever um livro, atuar na imprensa etc. Quanto à revista, pois não é que em menos de dez horas, só na banca em frente à entrada do Congresso, venderam-se 150 exemplares. Pasmem! Cento e cinqüenta, gente, em dez horas. E sabe para quem, entre raríssimas exceções, para os senhores senadores, sedentos de curiosidade para ver a ex-amante de Calheiros, agora bem mais à vontade.

Teve gente (assim mesmo, ferindo a gramática) que levou três exemplares, sabe Deus com que intenções. Li na Folha um depoimento do proprietário, José Erinaldo, 33, sobre isso: “Eles não dizem pra quem é, mesmo que a gente pergunte”. Como se vê, a figura antes recatada do senador permite hoje intimidades como essa. A coisa anda mesmo mal em termos do Congresso Nacional.

Em tempo, a capa do referido jornal escancarava uma foto da senadora Ideli Salvatti “curiando” as fotos de Veloso, que, justiça se faça, me pareceram para além de razoáveis [risos]. Não foi à toa que o senador Garibaldi Alves (PMDB-RN) comentou, salivando: “Vou comprar agora mesmo, senão esgota”. Mas o interesse dos abnegados congressistas, por certo, vai além da sensualidade da ex-amante de Renan: querem saber em que sentido ela poderá contribuir com o “julgamento” do presidente da Casa: “Quero saber o que ela diz”, afirma Garibaldi. Mas, bom mesmo, foi a sapientíssima reflexão de Marurício Rands (PT-PE): “É uma mulher bonita, mas você vê que tem muito recurso de computador”. Tudo isso, leitor, à entrada do Congresso, minutos antes da sessão. Não chega a ser engraçado?

Atração fatal

"Há duas tragédias na vida: uma não alcançar o que o nosso coração deseja; outra, alcançá-lo."
(G. B. Shaw, teatrólogo)
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Amigo meu me telefona em pânico. Deu uma “saidinha” e a mulher grudou, não o deixa em paz. Inferniza a sua vida, diz ele. Faz ameaças, deixa mensagens diabólicas no celular e promete colocar o mundo por terra, se ele a abandonar. O homem está desesperado e não consegue mais - diz enfaticamente - sequer trabalhar. Não consigo conter o riso com a sua aflição, o que o deixa ainda mais transtornado. Desconverso, e tento administrar a situação, como é missão de todo amigo. Por que não faz isso? Já fez. E se... Não me deixa terminar, “não tem jeito, a mulher é maluca, meu irmão!” Tento conter o riso, outra vez. Vejo que a situação é mesmo complicada e me vem à mente aquele “clássico” do gênero assinado por Adrian Lyne: Atração Fatal.

Aliás, o filme teve uma repercussão danada, lembram? Muito marmanjo pensou duas vezes antes de, como meu amigo aflito, dar uma “saidinha” e pôr em risco a estabilidade do casamento e coisas que tais. Recordo que a obra foi muito criticada pelas mulheres, haja vista que coloca a personagem feminina (não me ocorre o nome) como vilã, embora o adúltero fosse o homem, interpretado pelo galã Michael Douglas. Ela, brilhantemente interpretada pela Gleen Close. A verdade é que esse tema tem sido recorrente na vida dos casais e atentamente explorado no cinema. O próprio Adrian Lyne, realizou um outro filme, Infidelidade, que tem Richard Gere no papel principal e me parece ter reeditado o sucesso de Atração Fatal.

A história é basicamente a mesma, apenas invertendo o papel do traidor. Agora é a mulher que dá uma saidinha e depara com um jovem (vendedor de livros, se não me engano) que passa a infernizá-la a partir daí. Chegou-se a afirmar que Lyne revelara-se um profundo conservador, uma vez que os dois filmes tratavam o tema da infidelidade como algo absolutamente desastroso para os envolvidos. Com efeito, num e noutro, Lyne apresenta desfechos profundamente trágicos. Sem querer entrar no mérito da questão, lembro que uma escritora gaúcha chegou a escrever sobre a matéria, chamando a atenção para o fato de que a infidelidade não pode ser discutida como um problema de amor, dizia, mas como algo que deve ser discutido na perspectiva dos desejos humanos, de homens e mulheres indistintamente.

Tudo bem. O tema é mesmo polêmico e ainda delicado para os padrões atuais. Mas acho que a cronista gaúcha tem mesmo razão. Certo ou errado, compreensível ou indefensável, o fato é que os filmes de Lyne exploram com superficialidade o problema. Homens e mulheres sentimos, indiferentemente, a necessidade de exercer o poder de sedução e, não raro, cedo ou tarde alguém vai aparecer como a terceira personagem desse teatro a dois, conduzindo no objetivo de suas ações, a um tempo, as forças contraditórias do delírio e da razão. Li há muito tempo o que professava a cronista sobre o assunto, mas guardei o conteúdo que, em síntese, era mais ou menos o seguinte: se o cineasta abordasse com maior profundidade o tema, mostraria a rebeldia de todo coração, falaria que todos estamos sujeitos, um dia, a dizer sim ao desconhecido - e que as conseqüências disso nem sempre serão trágicas como se viu nos filmes. Sei, não. A única coisa que me preocupa, agora, é saber como o amigo do telefonema vai se sair dessa. Oxalá, tudo termine bem.

O sentimento que destrói

"É tão natural destruir o que não se pode possuir, negar o que não se compreende, insultar o que se inveja."
(Balzac – 1789-1850)
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Esta semana revi em DVD, numa versão aumentada em meia hora em relação ao filme de 1984, Amadeus, de Milos Forman. Considero-o um dos melhores da história do cinema. E confesso: a película me impressiona menos pelo que narra da vida de um dos gênios da música clássica - no que já é perfeito enquanto arte-, e mais pelo que traz como crítica a um dos mais graves defeitos do homem, a inveja. É dela que se originam os maiores males da sociedade em todos os tempos. Hoje, então. A propósito do que quero colocar em evidência, lembro a cena da morte de Mozart, quando Salieri copia o Réquiem a partir do que lhe dita o grande compositor.

Comenta-se, por sinal, que é pura ficção, uma vez que Salieri jamais esteve presente no momento da morte de Mozart. Não importa. É esta a razão por que o filme me parece muito maior do que a verdade histórica que supostamente deveria narrar. Ali, vê-se o homem tomado desse sentimento nefasto, devastado pelo desejo frustrado de ser o outro, de possuir o seu talento, as suas habilidades artísticas e o seu status de músico genial. Sabe-se que Antonio Salieri, interpretado à perfeição por Murray Abraham, não era um artista desprezível e que gozava de considerável prestígio à época, muito maior do que o próprio Mozart, cuja genialidade apenas ele, Salieri, reconhecia com exatidão. Compôs grandes peças, entre as quais sobressaem cantatas, árias, obras orquestrais e de câmara. Foi professor de ninguém menos que Beethoven, Schubert e Liszt. Então, o que justifica que se deixasse guiar por esse sentimento tão negativo? É que o invejoso “esquece” o seu status, o seu prestígio, as suas conquistas, as suas bênçãos pessoais e não se conforma com o fato de não poder ser o outro.

Atribui-se a Gore Vidal uma frase contundente sobre o tema: “O sucesso não me basta. Preciso que os outros fracassem”. Se procede ou não a autoria do que está dito, parece-me desimportante. A frase vale pelo que diz da monstruosidade do invejoso. Mais uma vez ressalto: também o filme de Forman é extraordinário não pelo que tem de verdadeiro sobre Wolfgang Amadeus Mozart, posto que há um descompasso entre a realidade e a ficção. O que sobressai, ao meu olhar, é a forma como aborda um dos desvios de personalidade mais cruéis. Isso, tomando por base uma sociedade muito menos competitiva que a nossa, uma vez que o filme se passa no século XVIII. Que dirá nos tempos de hoje, em que o homem anda cego de cobiça, respira desejos de riqueza e poder mais que o próprio ar?

A inveja está, como se sabe, entre os sete pecados capitais, relação de ensinamentos com que a Igreja Católica tenta proteger o homem das tentações que o infernizam. É valor de idéia, portanto ressente-se de um significado sagrado. Aparece ao lado da Arrogância, da Ira, da Preguiça, da Avareza, da Gula e da Luxúria. Ideologia à parte, com uma ou outra restrição, esses pecados são mesmo imperdoáveis e vêm tornando a vida humana não raro insuportável. Mas é a Inveja o pior de todos.

Catinha dos dribles desconcertantes

"Antigamente a questão era ‘ser ou não ser’. Hoje é ‘ter ou não ter’."
(Mário da Silva Brito)
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Tanto quanto o famoso solilóquio de Hamlet na primeira cena do terceiro ato, da peça homônima de Shakespeare, ser ou não ser, eis a questão!, impressiona-me a fala do protagonista na cena do cemitério, quando tem nas mãos a caveira de Yorick: “Deixa-me ver. (Pega a caveira) Que lástima, pobre Yorick! Eu o conheci, Horácio - era um tipo de infinita jocosidade, e da mais notável fantasia”. É que esta cena, além dos outros muitos temas que explora, faz alusão à fugacidade da vida, à efemeridade das coisas, ao passageiro na história dos homens.

Dia desses escrevi sobre o destino, a propósito de levar a efeito uma reflexão em torno do que está “escrito nas estrelas” sobre o futuro de cada homem. Reportei-me a políticos poderosos, que hoje de muito pouco são capazes; a celebridades para as quais o glamour desapareceu e que passaram a viver no esquecimento; a belezas que se transformaram em feiúra; a ilusões que resultaram em pó. Acusaram-me de negativista, posto que não tive, em relação ao desconhecido, expectativas positivas. Aceito, mais insisto em que toda lição de liberdade vem do cárcere, como nos falou Mário de Andrade, e é das adversidades que se devem tirar os melhores ensinamentos. O exercício da humildade, a título de exemplo.

Na praia que freqüento desde que cheguei a Fortaleza, há coisa de dois anos, há um vendedor de coco que chama a atenção pela forma como caminha, e que, com o irrestrito respeito, mais lembra um pato em movimento. Leva um bom tempo para percorrer as menores distâncias, num ritmo lento que desenha na areia semicírculos absolutamente iguais. Por suas limitações de saúde, em que pese ser ainda um homem de pouca idade, conquistou o maior número de fregueses entre os vendedores de coco que ali se fixaram. Custa um real a unidade, água dulcíssima e bem gelada. Nada que mereça um registro mais atento, concordo, não fosse esse humilde vendedor de coco Amadeus ou, como se tornou conhecido um dia, Catinha, dos dribles desconcertantes e do chute prodigioso que levantou tantas platéias.

Foi ponta-direita do Vasco da Gama dos áureos tempos - Roberto Dinamite à frente -, era um jogador criativo, cheio de firulas e improvisações. Um dia marcou um gol num Vasco vs. Flamengo que deixou o goleiro Raul a ver navios. Um petardo de fora da área, desses que o torcedor jamais esquece. Em final de carreira jogou pelo Ceará Sporting Club e chegou a conquistar, quando menos, um campeonato como ponta-direita do vovô. Uma dia, madrugada adentro, numa churrascaria de Fortaleza, comemorando uma vitória sobre o tricolor, foi alvejado por um torcedor do time adversário. Teve um tratamento doloroso, meses a fio. Escapou da morte, é bem verdade, mas não das seqüelas que o fazem lembrar um pato com o seu andar. Ao escrever esta coluna, quase chego a ouvir aqueles muitos gritos da praia: “Catinha, sai um bem gelado!” E a vê-lo, sorridente e digno, caminhar com o produto nas mãos. Levantou o Maracanã. Vende coco a um real.
P.S. O texto acima é 'pura' ficção, bem na linha do que fez o cronista Carlos Drummond de Andrade sobre a visita, jamais ocorrida, de famosa atriz americana a Belo Horizonte. O verdadeiro Katinha (assim, com k) mora no Paraná e vive em condições bem diferentes da personagem desta crônica, um tipo de provocação aos amigos vascainos, que acorreram à praia para encontrar 'o ídolo'.

A lendária história de Sartre e Beauvoir


Em muitas de minhas colunas tenho discutido a complicada questão dos relacionamentos, assunto que tem suscitado controvérsias entre os leitores. Sem querer retomar o fio condutor do tema - e considerando importante o fato de provocar polêmicas no mínimo interessantes com as opiniões emitidas -, volta e meia sou “convidado” a discutir o assunto, o que, pelo lado que me parece saudável, faço com a maior satisfação. Seria outro o papel de quem escreve e torna públicas suas idéias? Acho que não, razão por que ainda uma vez reservo-me o direito de fazê-lo aqui neste espaço.

Calma. Não se trata dos namoros virtuais e da tão corriqueira discussão em torno da validade dos sites de relacionamentos. É que acabo de ler um livro bastante curioso sobre a vida de um casal cuja história, passados tantos anos desde o falecimento dos amantes, continua a despertar as mais desencontradas opiniões. Refiro-me aos escritores Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, brilhantemente biografados por Hazel Rowley, uma obcecada admiradora da autora do clássico O Segundo Sexo. O livro é simplesmente desconcertante e, como que, deixa o leitor hipnotizado da primeira a última página.

Rowley estudou a vida de Beauvoir ao longo de pelo menos 20 anos. Há algum tempo escreveu uma tese de doutorado sobre a feminista francesa e traz, com a biografia por ela produzida, uma contribuição envolvente em torno da excêntrica relação de amor entre Sartre e Simone de Beauvoir. Como é sabido, os dois mantiveram um “casamento” que durou por mais de 50 anos, morando em casas separadas - e o que é mesmo mais inquietante, dispensando-se o direito de viverem incontáveis paixões enquanto estiveram vivos. Tête-à-tête é o título da obra.

Inicia-se com o primeiro flirt, por volta de 1929, e percorre a rica trajetória de suas existências até suas mortes mais de 50 anos depois. Em que pese a solidez desse amor incomum, tiveram vida tumultuada juntos, em meio a experiências eventuais de infidelidade, brigas, desentendimentos intelectuais, divergências mil. O livro é focado na figura de Beauvoir, mas, natural, expõe a face contraditória do autor do imperdível As Palavras. Revela de forma cativante suas excentricidades e a indomável compulsão para conquistar mulheres. Quase sempre mais jovens e, item de que nunca abria mão, belíssimas, o que não seria estranho não fosse Sartre um homem assustadoramente feio. Que peculiaridades, então, manteve esse relacionamento por tanto tempo? Não é simples opinar, mesmo depois de se ler o livro de Hazel Rowley.

Por certo, se é que se pode apropriadamente falar-se do “certo” com relação a Sartre e Beauvoir, porque souberam à perfeição compreender o profundo significado da palavra liberdade; porque entenderam que a pior solidão é a que se vive a dois; porque tiveram a clareza dos objetivos “maiores” de um e outro. Amaram-se, antes de tudo, como indivíduos; e amaram, ao lado disso, a liberdade, as letras, a filosofia, a ação política. Muito pouco, claro, quando se tem como referência o amor-renúncia, modelo pelo qual fomos educados e por que passamos a identificar no relacionamento aquilo que nos parece fundamental. Nada, contudo, que torne dispensável a leitura desse livro altamente recomendado. Confira, se puder.

A vida como ela é

Paula acabou de realizar o divórcio. Sete anos de casamento, dois filhos. Lucas fez concurso para o ministério público. É solteiro e adora viajar. Ana vai levando a relação com Pedro, cinco anos mais velho e doente de ciúme. Pedro tem uma amante, modelo de uma agência de publicidade que se chama Regina. Beatriz vive uma crise de depressão que já dura dois anos. Tentou suicídio uma vez. Marcos é namorador e não pensa em casar. Acha a vida uma beleza assim como está. Desidério faz filosofia na USP e especializa-se em Kant. Namora Márcia, que, todos dizem, mantém um caso com Rodrigo, seu ginecologista.

Paula casou de novo com o ex. Lucas é promotor em Londrina e assumiu um relacionamento homo com um agente de viagem. Ana decidiu viver só e espera o divórcio com Pedro, que teve um filho com Regina, que engordou e ficou feia. Mora sozinha, cria três cãezinhos poodle e não larga o computador. Beatriz curou a depressão e faz palestras para viciados em álcool. Marcos casou, separou, casou novamente e, dizem, agora está só. É soro-positivo e mora na Tailândia. Desidério faz doutorado na Sorbonne e vive com Giovana, uma imigrante italiana que reside em Paris. Márcia vive de brigas com Rodrigo, que deixou a medicina pelo mercado imobiliário.

Paula teve um infarto aos trinta e nove anos. Lucas é aidético terminal e transferiu-se para São Paulo. Ana arranjou um amante onze anos mais jovem. Pedro suicidou com uma overdose de anfetamina. Regina continua engordando. Beatriz juntou-se com um ex-alcoólatra. Não consegue engravidar e adotou uma menina. Marcos morreu na Tailândia e seus restos mortais estão enterrados em Pelotas, onde moravam os pais. Desidério é reitor de uma universidade no interior do Paraná. Márcia rompeu com Túlio, primo de Rodrigo, que perdeu uma perna num desastre de automóvel.

Lucas morreu há coisa de cinco anos. É nome de praça em Alegrete, onde nasceu. Ana ficou viúva e é acusada de ter contratado a morte do marido. Regina está mais gorda ainda. Beatriz está feliz da vida: engravidou depois dos quarenta e dedica-se ao tratamento do marido, que voltou a beber. Desidério aposentou-se do ensino superior e responde a processo em liberdade. Tentativa de estupro de uma ex-aluna de quem orientava tese de doutorado em Kant. Márcia reconciliou com Túlio, que é viciado em cocaína e tem três pontes, duas safenas e uma mamária. Rodrigo voltou ao consultório de ginecologia.

Esta semana, no aeroporto de Guarulhos, os oito conheceram-se pouco antes do embarque para a França, numa viagem de férias. Ana permanece sozinha. Tudo leva a crer que mandou mesmo matar o ex. Beatriz comenta como foi difícil enfrentar a doença do marido, que, pela cor dos olhos e o tremor das mãos, deve beber uma ou outra às escondidas. Desidério não larga a mão de Patrícia, a ex-aluna a quem supostamente tentara estuprar e que acabou de publicar o terceiro livro sobre Kant. Márcia está bem, apesar da idade. Sofreu muito com a morte de Túlio, ano e meio atrás. Rodrigo deixou outra vez a profissão e compra imóveis Brasil a fora. Viaja com Márcia, a quem diz não perdoar aquele affair prolongado com o Túlio - que Deus o tenha! -, o primo que o socorreu no dia do desastre. Aquele, em que perdeu a perna esquerda. E Regina, divertidíssima, já traça o terceiro sanduíche. Vai encontrar Giovana, amiga italiana que conheceu pela internet.

O Amor não é necessário


A semana começou mal para os amantes do cinema. Morreram Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, dois dos últimos gênios da sétima arte. Eram meus cineastas preferidos, supostamente pelas razões que, na perspectiva de alguns cinéfilos da atualidade, os tornavam “chatos” e “monótonos”: a valorização do texto, a profundidade da abordagem dos grandes conflitos da alma humana, a exploração do tema da incomunicabilidade, aliados, obviamente, a um redimensionamento do trabalho do ator emblematicamente realçado por Liv Ullmann e Erlan Josephson no inesquecível Cenas de um casamento, do primeiro. E é sobre o cineasta sueco que decidi escrever na coluna de hoje, não sem antes rever em DVD a versão integral desse filme maravilhoso de 1973.

Saudosismo à parte, considero que não se fazem mais filmes como antigamente. É rever e constatar. Na linha do que fizeram à perfeição Antonioni e Fellini, o filme narra a história de Marianne e Johan, cuja vida de casados parecia exemplar, até que o segundo arranjasse uma amante e a vida se tornasse um inferno para ambos. Tudo com o ritmo lento, sombrio e a dicção tensionada com que Bergman expõe as contradições do homem e da mulher quando decidem pela vida a dois. Jogo de idas e vindas, de altos e baixos, de passionalidade desenfreada e equilíbrio racional com que agem Marianne e Johan em diferentes momentos dessa história fascinante de amor e sofrimento.

O filme, a propósito, como a tornar evidente as projeções do cineasta na trajetória percorrida pelas personagens, teve continuidade em Sarabanda, de 2003, em que Marianne e Johan se reencontram trinta anos depois da separação. Para a realização desse projeto, claro, Bergman convidou a atriz Liv Ullmann, sua ex-mulher e, como disse, a intérprete de Marianne em Cenas de um casamento. A realização do filme, li em uma entrevista de Ullmann à revista Época há muitos anos, reeditou a atmosfera poética do casamento entre esses dois gigantes do cinema. Reproduzo as palavras com que descreveu, por exemplo, o processo de gravação de algumas cenas: “Como o filme foi feito com câmera digital, Ingmar ficava longe da câmera (sic), olhando o monitor num canto do estúdio. Nos filmes antigos ele estava sempre perto dos atores e eu sentia que ele era o meu melhor espectador. Mas, apesar da distância, nós conseguimos estabelecer uma comunicação. Era como se a gente se comunicasse novamente por sinais de fumaça”.

Preciso dizer mais? Sim, vamos um pouco adiante. Cenas de um casamento, além de uma verdadeira obra prima do cinema, nada mais é que a estetização da prodigiosa força do amor tal qual o conhecemos na vida dos casais. Não é muito, pois, referir a uma das cenas mais fortes do filme, quando Marianne, aproveitando-se da circunstancial ausência de Johan, diz para uma entrevistadora na tentativa de definir o que é o amor: “... ninguém nunca me disse o que é o amor. E não tenho certeza se precisamos saber. Mas se quiser uma descrição detalhada, veja na Bíblia. Lá, Paulo descreve o amor. O problema é que sua descrição nos coloca em xeque. Se Paulo estiver certo sobre o amor, ele é tão raro que ninguém o vivencia. Mas em discursos de casamento e outras ocasiões especiais, funciona muito bem. Acho que basta ser gentil àqueles com quem vivemos. Afeto também é bom. Humor, amizade, tolerância. Ter expectativas sensatas. Tendo isso, o amor não é necessário”. Bergman a nos ensinar que o simples e o profundo podem caminhar juntos. Menos mal. Tendo-se ido, o que é lamentável, fica a sua obra. Com que temos muito o que aprender.

Novembro de 2007


quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Meu amigo Paulino e o telefone celular

"O grande perigo da tecnologia é implantar no homem a convicção enganosa de que é onipotente, impedindo-o de ver sua imensa fragilidade."
(Hermógenes, Mergulho na paz)
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Espirituoso, amigo meu diz que as duas maiores invenções do homem são o celular e o moto-táxi. Entre perplexo e irônico, quis saber por que achava isso. O celular vá lá, mas o moto-táxi... Ele me contou uma história curiosa: estava certa vez no fundo de um cacimbão acompanhando o conserto de uma bomba de puxar água e o eletricista dá pela falta de um parafuso, segundo disse, imprescindível para concluir o reparo. O meu amigo olhou para o alto e sentiu o drama: sessenta “degraus” de escada, só para subir. Foi então que lembrou do celular no cós da calça. Ato-contínuo, ligou para um moto-táxi. Quinze minutos depois lá estava o parafuso em suas mãos. Motor consertado, caixa d’água cheia, ficou a gratidão aos “dois maiores inventos do homem”.

São mesmo dois grandes quebra-galhos. O problema é que, quanto ao primeiro, é hoje um bem de consumo que nos escraviza. Dia desses, furtaram-me o meu e, sem que tivesse me dado conta disso antes, fiquei a ver navios. Não sabia, juro, o telefone de casa. Do filho, amigos, nem pensar. Foi aí que concluí: somos reféns do aparelhinho. O troço é hoje muito mais que uma conquista da tecnologia. É o sangue das veias conduzido na mão, ou, como é o caso desse meu amigo, no cós da calça. Sem falar que, do topo à base da pirâmide social, todo mundo tem o seu. Para uns o telefone móvel tem mil outras utilidades. Quanto a mim, limito-me à sua função básica, que imagino ser mesmo a de me possibilitar contatos nas necessidades. Para a maioria - as mulheres, então - é bem mais que isso. É adereço, é o brinco nas mãos.

Dia desses, na praia, fiquei reparando. Não há mulher, independentemente da idade, que saiba chegar à praia sem o celular na orelha. Gesticulam, riem, andam, param um pouco. E haja charme. Um jogo de cena, meu Deus, que mais parece “marcação” de teatro. Ficam lindinhas, claro, mas será mesmo que todo mundo resolve ligar exatamente na hora em que se pisa a areia da praia? Sei, não. Ouvi certa vez que é tudo uma encenação mesmo. Aliás, em Iguatu, há um vereador que faz o mesmo que as meninas da praia, disseram-me. No caso, não havendo o sol aberto e o mar cristalino, acontece nos restaurantes. E lá fica o cara, dois para lá, dois para cá, e o cenho franzido, como se daquele contato com o telefone móvel saíssem as mais importantes decisões. Maldade de quem me contou. Vai ver, o rapaz é mesmo empenhado em resolver os pepinos da população.

Uma cronista gaúcha outro dia comentou sobre o assunto. “Quando vejo alguém checando suas mensagens a todo minuto e fazendo ligações triviais em público, não imagino estar diante de uma pessoa ocupada e poderosa, e sim de uma pessoa rendida: alguém que não possui mais controle sobre seu tempo, alguém que não consegue mais ficar em silêncio e em privacidade”. Bate, Marta. É isso mesmo. E já que falei dessa belíssima escritora, termino com suas palavras: Os celulares estão cada dia menores e mais fininhos. Mas são eles que estão botando muita gente na palma da mão. Sobre o moto-táxi, escreveremos depois.

Estrela solitária

Como bom botafoguense, estava em dívida com o amigo Giovane Oliveira, que me sugerira, quando do lançamento, em 1995, a leitura do livro Estrela Solitária, de Ruy Castro. Trata-se da biografia de Mané Garrincha, antológico ponta-direita do “fogão” e da seleção brasileira de 58, 62 e 66. Só agora o fiz. Confesso que me deliciei com o livro, que, muito mais que a narração da ascensão e queda de um gênio do futebol, coisa que Castro faz à perfeição, traz registros marcantes da história desse esporte no Brasil (e, de certo modo, no mundo). Com sobra, mostra a grandeza do time de General Severiano, cuja existência em fins dos anos 50 e por toda a década de 60 confunde-se com a do próprio futebol brasileiro. Inesquecíveis momentos do alvinegro carioca, maior e mais respeitado time brasileiro de todos os tempos, que me dêem um desconto os santistas da época de Pelé e cia..

Em essência, claro, o livro mostra a vida de um dos brasileiros mais amados, a sua ingenuidade hilária, os muitos amores de um “animal” sexual insaciável, os anos de relacionamento com a cantora Elza Soares e, de forma comovente, a dramática decadência de um homem dilacerado pelo álcool e pela depressão. Se expõe o lado irresponsável de Garrincha, contudo, em que pontua com destaque o abandono da mulher Nair e de suas sete filhas, tomado de amores por Elza, o texto permite-nos ver com isenção como tudo isso se deu, o que havia de excêntrico e quase psiquiátrico na personalidade do ídolo, os conflitos existenciais que viveu e a forma desumana com que se deixou explorar pelos cartolas do Botafogo e da seleção brasileira. Algo muito próximo do que Dostoievski descreve como o fenômeno da idiotia num dos seus mais extraordinários romances, O Idiota. Não o tipo referido pela psiquiatria, entenda-se, mas uma limitação intelectual significativa, que condiciona o indivíduo a depender quase sempre de cuidados e vigilância permanentes.

Não sendo possível, obviamente, resumir no exíguo espaço de uma coluna o que o livro de Castro traz de curiosidades, deixo aqui dois ou três exemplos: Garrincha, péssimo motorista, ocasionou alguns grandes acidentes automobilísticos. Num deles, morreria sua sogra. Noutro, atropelou, sem dar por conta, seu Amaro, o pai, que sobreviveria ao acidente, mas de cujas conseqüências viria a falecer alguns meses depois; A revista O Cruzeiro, semanário com um prestígio equivalente à Veja, hoje, mandou trazer do Chile, em 1962, o cachorro que entrara em campo no jogo do Brasil com a Inglaterra, num fato muito conhecido dos amantes do futebol. Sorteou-o entre os jogadores, Garrincha ganhou e cuidou do Bi, como “batizara” o cão, anos a fio, ao lado de Elza; Apolítico, no sentido rigoroso da palavra, Garrincha foi perseguido pelo regime militar, teve sua casa invadida mais de uma vez e foi humilhado em pelo menos uma oportunidade, condicionado a tirar a roupa juntamente com Elza e sua sogra (a mulher apoiara Jango na campanha pela volta ao regime presidencialista); Inventou o gesto nobre de botar a bola fora de campo para que um jogador adversário contundido possa ser atendido. Aconteceu num jogo contra o Fluminense: Altair, seu marcador, machucou-se e Garrincha, entre displicente e inusitadamente elegante, tocou a bola pela linha lateral; Os integrantes da comissão técnica da CBD (hoje CBF), levavam entre os mantimentos e remédios providenciados para as viagens, pacotes de cigarros para os jogadores e era comum Garrincha fumar mais de um cigarro nos intervalos dos jogos. Pasme: permitia aos jogadores tomar uns goles à véspera das competições. Garrincha bebia, em média, um litro de conhaque.

Impossível não se comover com a trajetória desse jogador excepcional, desse herói ingênuo que, como uma estrela cadente, desapareceria em 1983 na mais trágica solidão. Tinha 49 anos.

A verdade que incomoda

"A única anormalidade é a incapacidade de amar."
(Anaïs Nin)
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Nelson Rodrigues disse certa vez: “Todo autor é autobiográfico e eu o sou. O que acontece na minha obra são variações infinitas do que aconteceu na minha vida”. Bate. É isso mesmo. E não é só com a obra ficcional que o autor se revela. Quem escreve, seja o que for, tira um pouco a roupa, mostra-se de alguma forma. O cronista de jornal, então. Por isso tenho publicado tanto sobre temas que dizem respeito à minha vida, e que, estou certo, diz tanto da vida de outras pessoas. Acho que a sinceridade em tudo que dizemos (escrevemos) ou fazemos é um bem de que nunca se deve abrir mão. Chega das mentiras sociais, aquelas que escondem as nossas verdades mais íntimas, mais humanas. Martha Medeiros tem uma crônica de que gosto muito e que fala disso que chama de mentiras consensuais.

Ela diz: Mentiras consensuais são aquelas que todo mundo topou passar adiante como se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos avós, e que automaticamente passamos para nossos filhos, colaborando assim para o bom andamento do mundo, para uma sanidade comum. O amor, o sentimento mais nobre e vulcânico que há, tornou-se a maior vítima desse consenso. Perfeito, Martha, é isso mesmo, razão por que as pessoas vivem julgando umas às outras quando o assunto é amar alguém, viver com...

Para quem, como eu, viveu tantos relacionamentos, a coisa é ainda mais complicada. Não sabem que o amor, como sabiamente diz a cronista, é um sentimento livre, que debocha das regras que tentam lhe impor. Fomos educados, por exemplo, para casar uma vez, não importa a intensidade do que sentimos ou deixamos de sentir um dia. Há que ser para sempre. E o para sempre, esquecem, nem sempre é para sempre. Pode acabar um dia, o que, ao invés de levar à sensação de fracasso, de derrota, deveria apenas nos fazer sentir normais e mais humanos. Ou, talvez muito mais que isso, verdadeiros, honestos para com um sentimento, como falou a escritora gaúcha, a um tempo tão nobre e tão vulcânico. E a nobreza desse sentimento é demasiado grande para viver em função dos outros, para se fantasiar de felicidade quando é infelicidade, num teatro de aparências que só maltrata e angustia.
Denis de Rougemont, um ensaísta suíço falecido há alguns anos, tem um livro que deveria ser obrigatório para todos os amantes.

História do Amor no Ocidente, é o título dessa obra maravilhosa sobre o amor romântico, esse que nos empurraram goela adentro e que, ato-contínuo, vamos empurrando nos outros tempos afora. Começa com uma análise vertical do mito de Tristão e Isolda, examina a Beatriz de Dante, a Laura de Petrarca, o Romeu e Julieta de Shakespeare e chega aos mitos da modernidade do cinema de Hollywood. Rougemont diz uma coisa que tem muito a ver com o tema desta coluna: Os homens e as mulheres aceitam perfeitamente que se fale de amor, aliás, nunca se cansam disso, por mais vulgar que seja o discurso; mas temem que se defina a paixão, por menos rigorosa que seja a definição. Exatamente isso. É que o mito ocidental do amor anda de mãos dadas com as mentiras consensuais de que nos falou Martha Medeiros - e que chamo de mentiras sociais. E, já abusando da cronista, não vejo palavras mais apropriadas para desfechar a coluna de hoje: Todos nós, que estamos quites com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo, algo que nos perturba, que nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada. É a parte de nós que aceita a existência das mentiras consensuais, entende que é melhor viver de acordo com o estabelecido, mas que, no íntimo, não consegue dizer amém.

Saudemos Che!

"Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás"
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Há tempos não lia algo tão sórdido quanto a reportagem de capa da revista VEJA em sua última edição (“Che, a farsa do herói”). Numa demonstração explícita do que pode haver de mais leviano em termos de jornalismo, a mais importante revista brasileira distorce fatos, manipula informações e revela incompetência intelectual ao tratar com a figura do revolucionário argentino Ernesto Che Guevara, a quem rotula de feroz e amante da violência pela violência. Não bastasse o cabotinismo da matéria em si, VEJA parece entender que os seus leitores são títeres, incapazes de exercitar aquilo que lhes é mais elevado: o pensamento crítico.

O lead da reportagem (como no jargão jornalístico se chama a abertura da matéria, aquela em que se procura transmitir o fato objetiva e sinteticamente), chega às raias da irresponsabilidade e da total ignorância do mais elementar sentimento de justiça: afirma que Che agiu com pusilanimidade em suas últimas palavras, que a revista considera um “pedido de misericórdia, o apelo desesperado pela própria vida e o reconhecimento sem disfarce da derrota” (sic). Ademais, como um lagarto sedento, a reportagem cospe à direita e à esquerda, comete equívocos e revela-se contraditória, mesmo na perspectiva do leitor mais desatento. Veja-se: “Você vai matar um homem”, reafirmando o que documentam as mais credenciadas biografias de Che sobre o que disse o guerrilheiro ao tenente Mário Terán, a quem cumpriu disparar o tiro de misericórdia.

VEJA considera desprezível o cidadão Ernesto Guevara Lynch de la Serna, numa prova indisfarçável de suas intenções ao escrever sobre o herói cubano (Che nasceu, de fato, na Argentina, em 14 de maio de 1928), que afirma tratar-se de um homem dominado “por suas fraquezas, sua maníaca necessidade de matar pessoas, sua crença inabalável na violência política e a busca incessante da morte gloriosa”. Intencionalmente, como se vê, e movida por razões inconfessáveis, a mais lida revista do país parece esperar de um revolucionário a franciscana mansidão de um pacifista, condenando a determinação com que - na lógica de uma guerrilha e submetido às regras de uma ação revolucionária -, executou muitos dos seus adversários. Risível.

Em observação aos limites de espaço, por fim, deixando aos leitores desta coluna a conclusão sobre o que publicou a referida revista, contento-me com reproduzir trechos da última carta de Che aos filhos Hilda, Aleida, Camilo, Célia e Ernesto: “[...] Seu pai foi um homem que atua (sic) como pensa e, por certo, foi leal a suas convicções. Cresçam como bons revolucionários. Estudem muito para poder dominar a natureza. Lembrem-se de que a revolução é que é o importante e de que cada um de nós, sozinho, não vale nada. Sobretudo, sejam capazes de sentir, no mais profundo, qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É a qualidade mais linda de um revolucionário. Até sempre filhinhos, espero vê-los ainda. Um beijão e um abraço do papai”. Se proferiu ou não a frase famosa, como questionou a revista VEJA, é mesmo secundário. De seu próprio punho veio a confirmação: Endureceu, sem perder a ternura jamais. Há exatos 40 anos de sua morte, saudemos Che!