quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Estrela solitária

Como bom botafoguense, estava em dívida com o amigo Giovane Oliveira, que me sugerira, quando do lançamento, em 1995, a leitura do livro Estrela Solitária, de Ruy Castro. Trata-se da biografia de Mané Garrincha, antológico ponta-direita do “fogão” e da seleção brasileira de 58, 62 e 66. Só agora o fiz. Confesso que me deliciei com o livro, que, muito mais que a narração da ascensão e queda de um gênio do futebol, coisa que Castro faz à perfeição, traz registros marcantes da história desse esporte no Brasil (e, de certo modo, no mundo). Com sobra, mostra a grandeza do time de General Severiano, cuja existência em fins dos anos 50 e por toda a década de 60 confunde-se com a do próprio futebol brasileiro. Inesquecíveis momentos do alvinegro carioca, maior e mais respeitado time brasileiro de todos os tempos, que me dêem um desconto os santistas da época de Pelé e cia..

Em essência, claro, o livro mostra a vida de um dos brasileiros mais amados, a sua ingenuidade hilária, os muitos amores de um “animal” sexual insaciável, os anos de relacionamento com a cantora Elza Soares e, de forma comovente, a dramática decadência de um homem dilacerado pelo álcool e pela depressão. Se expõe o lado irresponsável de Garrincha, contudo, em que pontua com destaque o abandono da mulher Nair e de suas sete filhas, tomado de amores por Elza, o texto permite-nos ver com isenção como tudo isso se deu, o que havia de excêntrico e quase psiquiátrico na personalidade do ídolo, os conflitos existenciais que viveu e a forma desumana com que se deixou explorar pelos cartolas do Botafogo e da seleção brasileira. Algo muito próximo do que Dostoievski descreve como o fenômeno da idiotia num dos seus mais extraordinários romances, O Idiota. Não o tipo referido pela psiquiatria, entenda-se, mas uma limitação intelectual significativa, que condiciona o indivíduo a depender quase sempre de cuidados e vigilância permanentes.

Não sendo possível, obviamente, resumir no exíguo espaço de uma coluna o que o livro de Castro traz de curiosidades, deixo aqui dois ou três exemplos: Garrincha, péssimo motorista, ocasionou alguns grandes acidentes automobilísticos. Num deles, morreria sua sogra. Noutro, atropelou, sem dar por conta, seu Amaro, o pai, que sobreviveria ao acidente, mas de cujas conseqüências viria a falecer alguns meses depois; A revista O Cruzeiro, semanário com um prestígio equivalente à Veja, hoje, mandou trazer do Chile, em 1962, o cachorro que entrara em campo no jogo do Brasil com a Inglaterra, num fato muito conhecido dos amantes do futebol. Sorteou-o entre os jogadores, Garrincha ganhou e cuidou do Bi, como “batizara” o cão, anos a fio, ao lado de Elza; Apolítico, no sentido rigoroso da palavra, Garrincha foi perseguido pelo regime militar, teve sua casa invadida mais de uma vez e foi humilhado em pelo menos uma oportunidade, condicionado a tirar a roupa juntamente com Elza e sua sogra (a mulher apoiara Jango na campanha pela volta ao regime presidencialista); Inventou o gesto nobre de botar a bola fora de campo para que um jogador adversário contundido possa ser atendido. Aconteceu num jogo contra o Fluminense: Altair, seu marcador, machucou-se e Garrincha, entre displicente e inusitadamente elegante, tocou a bola pela linha lateral; Os integrantes da comissão técnica da CBD (hoje CBF), levavam entre os mantimentos e remédios providenciados para as viagens, pacotes de cigarros para os jogadores e era comum Garrincha fumar mais de um cigarro nos intervalos dos jogos. Pasme: permitia aos jogadores tomar uns goles à véspera das competições. Garrincha bebia, em média, um litro de conhaque.

Impossível não se comover com a trajetória desse jogador excepcional, desse herói ingênuo que, como uma estrela cadente, desapareceria em 1983 na mais trágica solidão. Tinha 49 anos.

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