"A única anormalidade é a incapacidade de amar."
(Anaïs Nin)
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Nelson Rodrigues disse certa vez: “Todo autor é autobiográfico e eu o sou. O que acontece na minha obra são variações infinitas do que aconteceu na minha vida”. Bate. É isso mesmo. E não é só com a obra ficcional que o autor se revela. Quem escreve, seja o que for, tira um pouco a roupa, mostra-se de alguma forma. O cronista de jornal, então. Por isso tenho publicado tanto sobre temas que dizem respeito à minha vida, e que, estou certo, diz tanto da vida de outras pessoas. Acho que a sinceridade em tudo que dizemos (escrevemos) ou fazemos é um bem de que nunca se deve abrir mão. Chega das mentiras sociais, aquelas que escondem as nossas verdades mais íntimas, mais humanas. Martha Medeiros tem uma crônica de que gosto muito e que fala disso que chama de mentiras consensuais.
Ela diz: Mentiras consensuais são aquelas que todo mundo topou passar adiante como se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos avós, e que automaticamente passamos para nossos filhos, colaborando assim para o bom andamento do mundo, para uma sanidade comum. O amor, o sentimento mais nobre e vulcânico que há, tornou-se a maior vítima desse consenso. Perfeito, Martha, é isso mesmo, razão por que as pessoas vivem julgando umas às outras quando o assunto é amar alguém, viver com...
Para quem, como eu, viveu tantos relacionamentos, a coisa é ainda mais complicada. Não sabem que o amor, como sabiamente diz a cronista, é um sentimento livre, que debocha das regras que tentam lhe impor. Fomos educados, por exemplo, para casar uma vez, não importa a intensidade do que sentimos ou deixamos de sentir um dia. Há que ser para sempre. E o para sempre, esquecem, nem sempre é para sempre. Pode acabar um dia, o que, ao invés de levar à sensação de fracasso, de derrota, deveria apenas nos fazer sentir normais e mais humanos. Ou, talvez muito mais que isso, verdadeiros, honestos para com um sentimento, como falou a escritora gaúcha, a um tempo tão nobre e tão vulcânico. E a nobreza desse sentimento é demasiado grande para viver em função dos outros, para se fantasiar de felicidade quando é infelicidade, num teatro de aparências que só maltrata e angustia. Denis de Rougemont, um ensaísta suíço falecido há alguns anos, tem um livro que deveria ser obrigatório para todos os amantes.
História do Amor no Ocidente, é o título dessa obra maravilhosa sobre o amor romântico, esse que nos empurraram goela adentro e que, ato-contínuo, vamos empurrando nos outros tempos afora. Começa com uma análise vertical do mito de Tristão e Isolda, examina a Beatriz de Dante, a Laura de Petrarca, o Romeu e Julieta de Shakespeare e chega aos mitos da modernidade do cinema de Hollywood. Rougemont diz uma coisa que tem muito a ver com o tema desta coluna: Os homens e as mulheres aceitam perfeitamente que se fale de amor, aliás, nunca se cansam disso, por mais vulgar que seja o discurso; mas temem que se defina a paixão, por menos rigorosa que seja a definição. Exatamente isso. É que o mito ocidental do amor anda de mãos dadas com as mentiras consensuais de que nos falou Martha Medeiros - e que chamo de mentiras sociais. E, já abusando da cronista, não vejo palavras mais apropriadas para desfechar a coluna de hoje: Todos nós, que estamos quites com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo, algo que nos perturba, que nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada. É a parte de nós que aceita a existência das mentiras consensuais, entende que é melhor viver de acordo com o estabelecido, mas que, no íntimo, não consegue dizer amém.
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