A propósito da crônica Tempo e paixão chegam-me inúmeros e-mails de leitores. Leitoras, sobremodo. Como este é um tema recorrente neste espaço, passo a impressão, não intencional, de ser um especialista no assunto. Ledo engano. Com efeito, tenho procurado estudar sobre relacionamentos, passionalidade, amor, embora viva, como todo mundo, os mesmos conflitos que, por vezes, têm levado a desfechos jamais desejados. Um desses e-mails levanta a seguinte questão: - "Você descarta a possibilidade do reencontro, passada a crise que levara à separação?"
Ah, não creio ter sido afirmativo neste sentido ou mesmo ter insinuado isto. Conheço casais que se reencontraram depois de um longo período de separação e vivem felizes hoje. Nesse caso não creio que a paixão tivesse desaparecido. Ela se recolhera por força das crises recorrentes, hibernara por um tempo que é muitas vezes indispensável para que os amantes possam ter uma nova chance. Quando isto ocorre, e não é raro que ocorra, acho que a tendência natural é que a relação volte fortalecida.
No livro Homens são de marte, mulheres são de vênus John Gray defende uma tese que me parece extremamente feliz: os homens são como elástico, as mulheres como ondas. Os homens sentem uma necessidade de se afastar, de ir até à extremidade de sua fuga para sentir o desejo de estar perto. A mulher tem movimentos que se assemelham ao ir e vir das ondas. Quando atinge a plenitude de seus desejos de ser amada, quando ela se percebe objeto do amor incondicional do homem amado, curiosamente tende a mudar seu estado de ânimo e a tendência natural é mudar também os seus sentimentos, a quebrar abruptamente a sua onda. Acho que o famoso terapeuta compreendeu à perfeição o que, nos casos em que a paixão, existindo ainda, não é suficiente para sustentar a relação, explica às claras o motivo por que se dão os rompimentos que não raro se tornam defintivos.
Acho que é o tempo a que me refiro na crônica Tempo e paixão, o que não ficou evidenciado no texto, a concluir pelo que questiona a referida leitora no seu e-mail. A nova paixão, embora não sendo esta uma situação muito comum, pode ser o despertar da paixão que se recolhera, que hibernara por um tempo necessário para que se dê o reencontro mais amadurecido dos amantes. É a reflexão que levanta Gray: "Quando não está se sentindo tão bem consigo mesma, ela [a mulher] não pode ser tão acolhedora e apreciar tanto o seu parceiro. [...] Quando sua onda atinge o fundo, ela fica mais vulnerável e precisa de mais amor. É crucial que seu parceiro entenda o que ela precisa nesses momentos, do contrário ela pode fazer exigências irracionais." Perfeito. O mesmo, na perspectiva de sua elasticidade, quero crer, se dá com o homem. E aí, não sendo definitiva, a separação será inevitável. E o tempo, que afirmo em minha crônica ser o único remédio capaz de curar a paixão, que adoeceu pela incompreensão das diferenças existentes entre o marciano e a venusiana de que nos fala Gray, tem uma outra configuração. É o tempo da reorganização dos sentimentos, da avaliação menos emocional das qualidades e defeitos de cada um. De pesar o que houve de positivo e negativo na relação, e de decidir ou não pela chance de recomeçar.
Se defendo a opinião de que o tempo é remédio mesmo para as paixões que jamais se reencontrarão, não fecho os olhos para a triste realidade de que nem sempre é um remédio infalível. E os amantes que nasceram um para o outro e tomaram rumos diferentes estarão condenados a carregar no peito a ideia fixa, a obsessão que jamais desaparecerá. Como diz Martha Medeiros em O centro das atenções, a pessoa amada "Acomoda-se dentro da gente e de vez em quando cutuca, se mexe, nos faz lembrar de sua existência."
Talvez seja o momento de perceber que o que se chama paixão devesse ter um outro nome, que, na falta da explicação exata, pode-se chamar de amor.
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sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Ainda sobre tempo e paixão
Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Tempo e paixão
Leio numa crônica de Martha Medeiros: - "Estar só, totalmente só, é um direito e um dever. Não todo o tempo, mas por um breve tempo, o tempo que a gente precisa para reencontrar a si mesma." Bárbaro, Martha. O grande equívoco dos que se separam, notadamente os homens, sempre mais apressados sob este aspecto, é sair à caça, querendo a custo substituir a pessoa amada. A leitura machista, retrógrada, de que só se cura uma paixão com outra paixão. E o cara se entrega na busca insana, conquista Maria e Joana, mas o abismo só aumenta. É que para curar a velha paixão só existe um remédio, e esse remédio é o tempo. Ademais, a paixão é felicidade, mas não é a felicidade.
Fazer o quê?, o leitor há de querer saber. Não há fórmulas, receitas prontas. Entendo que o segredo está em lidar bem com a solidão e aproveitá-la construtivamente. É hora dos bons livros, de rever alguns filmes de que você mais gostou, de retomar projetos esquecidos, de reencontrar velhos amigos, e, coisa importante, deixar-se ficar só, sem fazer nada previamente pensado. Sim, esse ócio que nos permite sentir o corpo, educar a respiração, deixar os olhos passearem pelos cantinhos nunca visitados do nosso espaço. Ocupar o tempo com ações menos produtivas, mas revigorantes para a alma. E rever um pouco do que fomos, num tipo de autocrítica que possa nos fazer mudar para melhor.
Descrença no amor, na linha do que escrevi em outra crônica sobre um amigo que foge de uma nova paixão? Não, bem longe disso. Acho que uma nova paixão é um tipo de contemplação para o espírito que se fortaleceu no processo de reencontro consigo mesmo. A paixão é prêmio para a alma resolvida, nunca o recheio para o vazio que se instala em nós com o fim de um relacionamento. Uma nova paixão não é algo que se procure de lupa na mão, agulha no palheiro.
A paixão vem do inusitado, daquilo que você nunca previu. A paixão é sorrateira, moleca, brinca de esconde-esconde, de pega-pega. Mas vem de repente, não tolera festa de recepção, por isso nunca avisa quando vai chegar. Está na canção de Dusek: "Quem será que me chega / na toca da noite / Vem nos braços de um sonho / que eu não desvendei / Eu conheço o teu beijo / mas não vejo o teu rosto / Quem será que eu amo / e ainda não encontrei." Bravíssimo.
Se está acontecendo com você o mesmo, se ainda não reorganizou por inteiro sua vida e seu coração, não abra mão de um tempo sozinho, esse tempo que não tem preço, que é, na mesma medida e proporção, um direito e um dever. Deixe que a novidade aconteça assim, como uma novidade, não como um filme em que você atuou. E que não teve um final feliz.
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Fazer o quê?, o leitor há de querer saber. Não há fórmulas, receitas prontas. Entendo que o segredo está em lidar bem com a solidão e aproveitá-la construtivamente. É hora dos bons livros, de rever alguns filmes de que você mais gostou, de retomar projetos esquecidos, de reencontrar velhos amigos, e, coisa importante, deixar-se ficar só, sem fazer nada previamente pensado. Sim, esse ócio que nos permite sentir o corpo, educar a respiração, deixar os olhos passearem pelos cantinhos nunca visitados do nosso espaço. Ocupar o tempo com ações menos produtivas, mas revigorantes para a alma. E rever um pouco do que fomos, num tipo de autocrítica que possa nos fazer mudar para melhor.
Descrença no amor, na linha do que escrevi em outra crônica sobre um amigo que foge de uma nova paixão? Não, bem longe disso. Acho que uma nova paixão é um tipo de contemplação para o espírito que se fortaleceu no processo de reencontro consigo mesmo. A paixão é prêmio para a alma resolvida, nunca o recheio para o vazio que se instala em nós com o fim de um relacionamento. Uma nova paixão não é algo que se procure de lupa na mão, agulha no palheiro.
A paixão vem do inusitado, daquilo que você nunca previu. A paixão é sorrateira, moleca, brinca de esconde-esconde, de pega-pega. Mas vem de repente, não tolera festa de recepção, por isso nunca avisa quando vai chegar. Está na canção de Dusek: "Quem será que me chega / na toca da noite / Vem nos braços de um sonho / que eu não desvendei / Eu conheço o teu beijo / mas não vejo o teu rosto / Quem será que eu amo / e ainda não encontrei." Bravíssimo.
Se está acontecendo com você o mesmo, se ainda não reorganizou por inteiro sua vida e seu coração, não abra mão de um tempo sozinho, esse tempo que não tem preço, que é, na mesma medida e proporção, um direito e um dever. Deixe que a novidade aconteça assim, como uma novidade, não como um filme em que você atuou. E que não teve um final feliz.
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Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Nunca mais
Quando era menino, num seriado de tevê chamado Ratos do deserto, sem razão aparente, a fala de uma personagem me tocou profundamente: - "Nunca mais! Que coisa triste é ouvir nunca mais!" Até então não me ocorrera pensar sobre isso, pensar que algumas experiências, um dia, jamais serão revividas por você. Com o passar dos tempos, como na vida de todo mundo, a frase inclemente tem-me voltado à cabeça. A morte de uma pessoa amiga, a morte do pai, da mãe, de um sobrinho, o fim de um relacionamento de amor, a partida de alguém para um paradeiro que você desconhece etc., e a afirmação retorna, implacável, desumana, cruel: "Nunca mais!"
A expressão, assim, vai adquirindo na vida da gente quase sempre essa conotação pesada, agressiva, sombria, normalmente associada ao sofrimento e à dor. De uns dias para cá, no entanto, com a proximidade do final do ano, que é sempre a nova chance de você recomeçar a vida, a impassível expressão tem assumido um significado novo, positivo, para cima, sugerindo possibilidades de mudanças para melhor. Nunca mais vou ser indelicado com quem quer que seja; nunca mais vou fumar; nunca mais vou exagerar no uísque; nunca mais vou protagonizar uma cena de ciúme; nunca mais vou me deixar dominar pela emoção; nunca mais vou emitir julgamentos prévios; nunca mais vou amar tanto a ponto de me perder de mim. De uns dias para cá, como disse, venho desfiando um rosário de "nunca mais" que haverá de me fazer melhorar como gente, de me aperfeiçoar como homem.
Estou convencido de que os "nunca mais" podem ser muito úteis na vida das pessoas, tornando-as mais humanas, mais bonitas por dentro, mais solidárias, mais sensíveis, mais humildes, compreensivas, tolerantes. Estou convencido de que o mundo, a vida de todos, podem ser transformados para o bem: nunca mais vou ser insincero; nunca mais vou amar sem amor; nunca mais vou valorizar as pequenas tolices que vinha valorizando tanto; nunca mais vou abrir mão do essencial em favor do supérfluo; nunca mais vou esquecer de que as coisas mais belas podem estar nas coisas mais simples; nunca mais vou alimentar sentimento de culpa; nunca mais vou me torturar porque o amor não foi para sempre; nunca mais vou fechar os olhos para as virtudes e abri-los para os defeitos; nunca mais vou deixar de perdoar; nunca mais vou deixar de dar a última chance; nunca mais vou cometer os mesmos erros; nunca mais vou pisar na bola e perder o gol da felicidade, a chance de virar o jogo que parecia perdido. Nunca mais!
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A expressão, assim, vai adquirindo na vida da gente quase sempre essa conotação pesada, agressiva, sombria, normalmente associada ao sofrimento e à dor. De uns dias para cá, no entanto, com a proximidade do final do ano, que é sempre a nova chance de você recomeçar a vida, a impassível expressão tem assumido um significado novo, positivo, para cima, sugerindo possibilidades de mudanças para melhor. Nunca mais vou ser indelicado com quem quer que seja; nunca mais vou fumar; nunca mais vou exagerar no uísque; nunca mais vou protagonizar uma cena de ciúme; nunca mais vou me deixar dominar pela emoção; nunca mais vou emitir julgamentos prévios; nunca mais vou amar tanto a ponto de me perder de mim. De uns dias para cá, como disse, venho desfiando um rosário de "nunca mais" que haverá de me fazer melhorar como gente, de me aperfeiçoar como homem.
Estou convencido de que os "nunca mais" podem ser muito úteis na vida das pessoas, tornando-as mais humanas, mais bonitas por dentro, mais solidárias, mais sensíveis, mais humildes, compreensivas, tolerantes. Estou convencido de que o mundo, a vida de todos, podem ser transformados para o bem: nunca mais vou ser insincero; nunca mais vou amar sem amor; nunca mais vou valorizar as pequenas tolices que vinha valorizando tanto; nunca mais vou abrir mão do essencial em favor do supérfluo; nunca mais vou esquecer de que as coisas mais belas podem estar nas coisas mais simples; nunca mais vou alimentar sentimento de culpa; nunca mais vou me torturar porque o amor não foi para sempre; nunca mais vou fechar os olhos para as virtudes e abri-los para os defeitos; nunca mais vou deixar de perdoar; nunca mais vou deixar de dar a última chance; nunca mais vou cometer os mesmos erros; nunca mais vou pisar na bola e perder o gol da felicidade, a chance de virar o jogo que parecia perdido. Nunca mais!
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Saudade
Com rigor, não existe em outro idioma equivalente para a palavra portuguesa saudade. Ela traduz o mais comovente sentimento humano, o mais dilacerante, o mais doloroso, a lástima da ausência, a tristeza das perdas e das separações. Só em língua portuguesa existe um vocábulo capaz de definir com exatidão o que sentimos na ausência da coisa amada. Em nenhum outro idioma haverá um vocábulo que possa dizer precisamente o que dói no fundo da alma quando desejamos conosco aquilo que se foi, que ficou enquanto partimos, que nos deixou ou foi deixado por alguma razão. Está na pedra dos túmulos, no coração dos viajantes, dos exilados, dos solitários e dos esquecidos. Serve para definir a mais íntima tortura, a pior das emoções.
Em Canção de Amor, um dos clássicos do cancioneiro popular, Elano Paula diz: "Saudade torrente de paixão, / emoção diferente, que aniquila a vida da gente, / uma dor que não sei de onde vem." Chico Buarque, em Pedaço de Mim, criou a mais completa tradução, a metáfora desconcertante: "A saudade é o revés do parto / a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu." Fausto Nilo, em Asa Partida, traz o verso antológico: "E continua o teu sorriso no meu peito, / esta saudade, o cigarro, a luz acesa, /e esta noite posta sobre a mesa." É que a poesia pode dizer figuradamente o sentimento, transferindo para o outro o que parece ser incomunicável. É a força da poesia, o prodigioso milagre da arte. Que dizer de Brant? - "Amigo é coisa pra se guardar / do lado esquerdo do peito, / dentro do coração / mesmo que o tempo e a distância / digam não." Ou Duran: "Ah, a rua escura, o vento frio / esta saudade, este vazio, esta vontade de chorar."
Dia desses, conversando com amigos, o tema veio à baila: - "É o dolorido gozo!", alguém falou. Perfeito, que não existe saudade que seja, por completo, uma experiência agradável, mesmo quando a sentimos daqueles que amamos, da viagem inesquecível, da boa infância, dos dias idos que foram felizes. Não há saudade que não seja dor, ferro em brasa no coração, golpe bárbaro no mais íntimo do ser. Se vem acompanhada da cruel sentença, então, escalpela, maltrata como o ácido na ferida aberta: "Nunca mais!"
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Em Canção de Amor, um dos clássicos do cancioneiro popular, Elano Paula diz: "Saudade torrente de paixão, / emoção diferente, que aniquila a vida da gente, / uma dor que não sei de onde vem." Chico Buarque, em Pedaço de Mim, criou a mais completa tradução, a metáfora desconcertante: "A saudade é o revés do parto / a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu." Fausto Nilo, em Asa Partida, traz o verso antológico: "E continua o teu sorriso no meu peito, / esta saudade, o cigarro, a luz acesa, /e esta noite posta sobre a mesa." É que a poesia pode dizer figuradamente o sentimento, transferindo para o outro o que parece ser incomunicável. É a força da poesia, o prodigioso milagre da arte. Que dizer de Brant? - "Amigo é coisa pra se guardar / do lado esquerdo do peito, / dentro do coração / mesmo que o tempo e a distância / digam não." Ou Duran: "Ah, a rua escura, o vento frio / esta saudade, este vazio, esta vontade de chorar."
Dia desses, conversando com amigos, o tema veio à baila: - "É o dolorido gozo!", alguém falou. Perfeito, que não existe saudade que seja, por completo, uma experiência agradável, mesmo quando a sentimos daqueles que amamos, da viagem inesquecível, da boa infância, dos dias idos que foram felizes. Não há saudade que não seja dor, ferro em brasa no coração, golpe bárbaro no mais íntimo do ser. Se vem acompanhada da cruel sentença, então, escalpela, maltrata como o ácido na ferida aberta: "Nunca mais!"
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terça-feira, 17 de novembro de 2009
Samba do avião
Sobrevoando o Rio, leio uma matéria curiosa na Isto é sobre infidelidade feminina. As mulheres, segundo pesquisa, assumem que estão traindo mais. Na cadeira ao lado, uma mulher que apanhara o avião em Fortaleza olha de soslaio para a revista, discreta, apenas correndo o olhar para mim, vez e outra. Finjo não ver, mas diante de sua curiosidade convidativa, retribuo o olhar e só então constato. É bonita, 40 anos, pouco mais ou menos. Previdente, certifico-me de que esteja só, e pergunto se concorda com o teor da reportagem. Sem titubear, diz ela: - "... mais e melhor!" Risos.
Entre curioso e intrigado, indago-lhe por que "melhor". Ela, que me parece de um bom nível cultural, larga um Saramago de que iniciara a leitura e voltando-se na cadeira, esbanja convicção: - "Porque as mulheres aprenderam a diferença entre sexo e amor." Fecho a revista e fico em silêncio, até que me vem a resposta que é mais uma pergunta. Por que então manter uma relação que já não a satisfaz? Por que não romper o casamento falido e sair de vez para a liberdade lá fora? A moça ajeita o cabelo, no que dá a ver um charme que envolve e desfia afirmações peremptórias sobre o assunto, que agora vai tomando um rumo que já conheço de 'outras viagens'.
Fala que nem sempre separar é o caminho, que o casamento não se limita a sexo, que manter uma relação às vezes é o melhor para os dois, que isto e aquilo. Sem vacilar, com a serenidade de quem traz no currículo um histórico de causar inveja a qualquer Luana Piovani. E não espera mais que lhe pergunte. Vai sem-cerimônia, dando exemplos. Referindo-se a uma amiga: - "A Fabíola vive bem com o marido e tem um amante que a realiza sexualmente." Tento questionar o "vive bem com o marido", mas não me deixa falar. E prossegue, desenvolta: - "A Roberta, uma amiga gaúcha de 32 anos, é casada há seis e já teve três homens na vida dela, mas o marido é o mesmo."
Depois de desfiar outros casos de infidelidade entre amigas, Carla, que enfim se apresenta, decorridos dez, quinze minutos de conversa, só então pergunta o que penso sobre o assunto. Digo-lhe que entendo a infidelidade como algo às vezes compreensível, nunca aceitável. Falo-lhe das razões que podem levar a tal experiência. Que, não sendo um crime, poderia ser evitada se os casais fossem mais tolerantes, se buscassem compreender melhor os motivos que levam duas pessoas a decidir pela vida juntos. Quando acho ter contribuído com suas análises, tão pessoais, tão independentes, posto que me escuta atentamente, desconcerta-me: "Fica no Rio até quando?" Digo-lhe que estou indo a São Paulo, onde minha namorada me espera e que estamos ansiosos pelo reencontro, depois de um mês separados. Diz ela, taxativa: - "Ah... Se fosse ficar no Rio, meu marido está viajando e poderíamos nos encontrar para um chope à noite, no Leblon, perto de casa."
Agradeço-lhe a gentileza, olho através da janela do avião e, discretamente, baixinho, canto o samba de Jobim: "Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara, estou morrendo de saudade..."
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Entre curioso e intrigado, indago-lhe por que "melhor". Ela, que me parece de um bom nível cultural, larga um Saramago de que iniciara a leitura e voltando-se na cadeira, esbanja convicção: - "Porque as mulheres aprenderam a diferença entre sexo e amor." Fecho a revista e fico em silêncio, até que me vem a resposta que é mais uma pergunta. Por que então manter uma relação que já não a satisfaz? Por que não romper o casamento falido e sair de vez para a liberdade lá fora? A moça ajeita o cabelo, no que dá a ver um charme que envolve e desfia afirmações peremptórias sobre o assunto, que agora vai tomando um rumo que já conheço de 'outras viagens'.
Fala que nem sempre separar é o caminho, que o casamento não se limita a sexo, que manter uma relação às vezes é o melhor para os dois, que isto e aquilo. Sem vacilar, com a serenidade de quem traz no currículo um histórico de causar inveja a qualquer Luana Piovani. E não espera mais que lhe pergunte. Vai sem-cerimônia, dando exemplos. Referindo-se a uma amiga: - "A Fabíola vive bem com o marido e tem um amante que a realiza sexualmente." Tento questionar o "vive bem com o marido", mas não me deixa falar. E prossegue, desenvolta: - "A Roberta, uma amiga gaúcha de 32 anos, é casada há seis e já teve três homens na vida dela, mas o marido é o mesmo."
Depois de desfiar outros casos de infidelidade entre amigas, Carla, que enfim se apresenta, decorridos dez, quinze minutos de conversa, só então pergunta o que penso sobre o assunto. Digo-lhe que entendo a infidelidade como algo às vezes compreensível, nunca aceitável. Falo-lhe das razões que podem levar a tal experiência. Que, não sendo um crime, poderia ser evitada se os casais fossem mais tolerantes, se buscassem compreender melhor os motivos que levam duas pessoas a decidir pela vida juntos. Quando acho ter contribuído com suas análises, tão pessoais, tão independentes, posto que me escuta atentamente, desconcerta-me: "Fica no Rio até quando?" Digo-lhe que estou indo a São Paulo, onde minha namorada me espera e que estamos ansiosos pelo reencontro, depois de um mês separados. Diz ela, taxativa: - "Ah... Se fosse ficar no Rio, meu marido está viajando e poderíamos nos encontrar para um chope à noite, no Leblon, perto de casa."
Agradeço-lhe a gentileza, olho através da janela do avião e, discretamente, baixinho, canto o samba de Jobim: "Cristo Redentor, braços abertos sobre a Guanabara, estou morrendo de saudade..."
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Paris, Texas
Não sou um bom conhecedor de cinema, mas sou apaixonado por filmes. Quando gosto, quando um e outro me tocam fundo, vejo-os vezes sem conta. Há filmes que vejo sempre que posso, dez, quinze vezes. Não é nada, se comparado ao que declarou o jornalista Lúcio Brasileiro acerca de Casablanca, a que já assistiu mais de mil vezes. Pasmem, mil vezes. Fico nos meus números modestos. Cinema Paradiso é um vício e me emociona sempre que revejo esta verdadeira obra-prima de Giuseppe Tornatore. Esta semana revi Paris, Texas, de Wuim Wenders, de uma simplicidade desconcertante. Quase não há cenário, efeitos especiais ou qualquer sofisticação técnica. Apenas fala, à perfeição, das grandes dores humanas, da solidão, das perdas. Essas coisas que, cedo ou tarde, movem as nossas vidas. A grande arte, na minha modesta opinião, é isto.
O roteiro, escrito por Sam Shepard, retoma um tema recorrente na filmografia de Wenders, um artista obcecado pelo sofrimento do homem marginalizado por alguma razão. Travis, a personagem que aparece caminhando no início do filme, jeans e boné de beisebol, barba por fazer e aparentemente sujo, foi casado um dia, teve mulher, teve filho e uma vida normal. Mas tudo deu errado para esse homem amargurado que caminha como que em busca da identidade perdida. É o tema desse clássico do novo cinema alemão.
Exausto, Travis chega a um posto de gasolina e desmaia, mas é localizado por um irmão, a quem se recusa falar sobre o que se passa com sua vida. Quando, enfim, decide contar sua história, compreende-se o seu drama, a sua crise existencial. Na contramão do que esperamos nas primeiras cenas de Paris, Texas, Travis não é um louco, apenas um homem devastado pela solidão. Tão despojado e tão intenso o filme de Wim Wenders.
Como é recorrente na obra desse cineasta fenomenal, Paris, Texas mostra-nos o que já sabemos da vida, mas o faz com a sensibilidade do gênio. Os filmes de Wenders deslizam à nossa frente, mostram os grandes conflitos do homem, vai fundo no que há de mais complexo nas suas emoções, incertezas, angústias e esperanças. Não trazem surpresa, não empolgam pela força de qualquer imagem ou pelo futurismo de suas abordagens. E, no entanto, fazem o que deve fazer toda arte verdadeira, proporcionam-nos um tipo de catarse dos nossos dramas, das nossas perdas e eternas buscas. Encontros, desencontros, perdas e ganhos compõem a matéria de que se vale o cineasta para embelezar o homem, aperfeiçoando-o. A vida, contada a partir do olhar de um grande artista. A vida, cercada de medos e de solidão.
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O roteiro, escrito por Sam Shepard, retoma um tema recorrente na filmografia de Wenders, um artista obcecado pelo sofrimento do homem marginalizado por alguma razão. Travis, a personagem que aparece caminhando no início do filme, jeans e boné de beisebol, barba por fazer e aparentemente sujo, foi casado um dia, teve mulher, teve filho e uma vida normal. Mas tudo deu errado para esse homem amargurado que caminha como que em busca da identidade perdida. É o tema desse clássico do novo cinema alemão.
Exausto, Travis chega a um posto de gasolina e desmaia, mas é localizado por um irmão, a quem se recusa falar sobre o que se passa com sua vida. Quando, enfim, decide contar sua história, compreende-se o seu drama, a sua crise existencial. Na contramão do que esperamos nas primeiras cenas de Paris, Texas, Travis não é um louco, apenas um homem devastado pela solidão. Tão despojado e tão intenso o filme de Wim Wenders.
Como é recorrente na obra desse cineasta fenomenal, Paris, Texas mostra-nos o que já sabemos da vida, mas o faz com a sensibilidade do gênio. Os filmes de Wenders deslizam à nossa frente, mostram os grandes conflitos do homem, vai fundo no que há de mais complexo nas suas emoções, incertezas, angústias e esperanças. Não trazem surpresa, não empolgam pela força de qualquer imagem ou pelo futurismo de suas abordagens. E, no entanto, fazem o que deve fazer toda arte verdadeira, proporcionam-nos um tipo de catarse dos nossos dramas, das nossas perdas e eternas buscas. Encontros, desencontros, perdas e ganhos compõem a matéria de que se vale o cineasta para embelezar o homem, aperfeiçoando-o. A vida, contada a partir do olhar de um grande artista. A vida, cercada de medos e de solidão.
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segunda-feira, 16 de novembro de 2009
O sapato
Enfim chegara a hora da partida, que aquele pouco mais de dois meses parecera-lhe uma eternidade. A sogra, como fazia todos os anos, desde que o marido morrera, viera visitá-los. Na primeira semana, reconhecia, era uma convivência de certo modo agradável. Gentileza de ambos os lados e, a bem da verdade, de manifestações veladas de carinho e recíproca atenção. Com o passar dos dias, contudo, a coisa ia ficando pesada e o relacionamento quase insuportável, as intromissões na vida íntima do casal uma constante, razão por que, vez e outra, era inevitável tratá-la com rispidez.
A filha indignada.
Prestimoso, conduz nas duas mãos a bagagem da sogra.
- Chumbo!, murmura até o portão, onde deixara o carro estacionado. Aloja-a com desenvoltura no portamalas. Só mais um pouquinho, pensa, e vejo-me livre dessa velha metida.
A filha enxugando as lágrimas com discrição.
A caminho do aeroporto, insincero, uma palavra ou outra gentil. Dizia que os dias haviam passado rápido, que as crianças iam sentir muito a falta da avó...
A mulher olhando de soslaio: - "Um falso, isso sim!", sem dizer palavra.
De repente, numa curva mais acentuada, toca-lhe o calcanhar um sapato alto, que, a custo, consegue esconder sob o banco do carro, sem que a mulher perceba. Lembra, então, da noite passada, quando, doses a mais no happy hour, saíra para um programa com uma colega de trabalho, a consciência ainda pesando-lhe pelo espetáculo num quarto de motel.
- O que há, Marcelo, por que corre tanto?
Finge não escutar, os pingos de suor escorrendo-lhe pela face. E, novamente, o sapato, insistente, confundindo-se com o acelerador do carro, inconveniente, atrevido, denunciador. Empurra-o, outra vez, sem que a mulher acompanhe o movimento do pé, habilidoso em ocultar o que lhe parecia a prova do crime.
- Marcelo, você está esquisito. O que é?
- Eu, imagina! Está tudo bem.
Esboça um sorriso amarelo pelo retrovisor.
- E aí, dona Sílvia, deixando saudade, hein?
Hipócrita! A mulher balbucia por entre os dentes.
A poucos minutos do aeroporto, aproveitando-se da pouca luz do Rebouças, o túnel que começavam a atravessar, a pretexto de fechar a porta do automóvel, como em milagre, consegue livrar-se do objeto incomôdo e ameaçador.
- O que foi, agora, Marcelo?
- A porta, estava aberta.
Atenta à conversa, a sogra levanta as mãos em agradecimento, o olhar no teto do carro, como se fora o céu.
Pára no terminal de embarque, contorna o automóvel, solícito, para abrir-lhe a porta. Só então se dá conta de que a sogra ocupa-se na procura inútil.
- Meu sapato, não estou achando! - diz, tateando o chão.
- O quê? Que sapato?
Aquele de que se livrara minutos antes.
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A filha indignada.
Prestimoso, conduz nas duas mãos a bagagem da sogra.
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A filha enxugando as lágrimas com discrição.
A caminho do aeroporto, insincero, uma palavra ou outra gentil. Dizia que os dias haviam passado rápido, que as crianças iam sentir muito a falta da avó...
A mulher olhando de soslaio: - "Um falso, isso sim!", sem dizer palavra.
De repente, numa curva mais acentuada, toca-lhe o calcanhar um sapato alto, que, a custo, consegue esconder sob o banco do carro, sem que a mulher perceba. Lembra, então, da noite passada, quando, doses a mais no happy hour, saíra para um programa com uma colega de trabalho, a consciência ainda pesando-lhe pelo espetáculo num quarto de motel.
- O que há, Marcelo, por que corre tanto?
Finge não escutar, os pingos de suor escorrendo-lhe pela face. E, novamente, o sapato, insistente, confundindo-se com o acelerador do carro, inconveniente, atrevido, denunciador. Empurra-o, outra vez, sem que a mulher acompanhe o movimento do pé, habilidoso em ocultar o que lhe parecia a prova do crime.
- Marcelo, você está esquisito. O que é?
- Eu, imagina! Está tudo bem.
Esboça um sorriso amarelo pelo retrovisor.
- E aí, dona Sílvia, deixando saudade, hein?
Hipócrita! A mulher balbucia por entre os dentes.
A poucos minutos do aeroporto, aproveitando-se da pouca luz do Rebouças, o túnel que começavam a atravessar, a pretexto de fechar a porta do automóvel, como em milagre, consegue livrar-se do objeto incomôdo e ameaçador.
- O que foi, agora, Marcelo?
- A porta, estava aberta.
Atenta à conversa, a sogra levanta as mãos em agradecimento, o olhar no teto do carro, como se fora o céu.
Pára no terminal de embarque, contorna o automóvel, solícito, para abrir-lhe a porta. Só então se dá conta de que a sogra ocupa-se na procura inútil.
- Meu sapato, não estou achando! - diz, tateando o chão.
- O quê? Que sapato?
Aquele de que se livrara minutos antes.
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Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
Ainda sobre a paixão
Certa vez escrevi uma crônica sobre um amigo que corre léguas da paixão. E choveram e-mails sobre o que escrevi, que pensava raro. Não é. Pude ver que o contingente dos que fogem de novas relações é imenso: - "Tenho medo de sofrer!"
Proust termina um dos romances de Em busca do tempo perdido, No caminho com Swann, com uma reflexão desconcertante: - "E dizer que desperdicei anos da minha vida, que quis morrer, que tive o meu maior amor por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo." É o expediente de que se vale Marcel, o narrador, para vasculhar sua mais funda subjetividade sobre a complexidade desse sentimento a que chamamos amor. A força do romance reside aí: o que é amar? Para Swann, "amar é desejar amar, é sofrer, é ser escravo de um sentimento, é projetar no outro qualidades estéticas e eróticas mentirosas."
A Odette que Swann ama é irreal, é a fantasia que ele mesmo desenhou. Mais que a paixão pelo outro, a personagem ama a si mesma, numa busca de fundir o sujeito com o objeto, matriz das vontades mais incontidas de quem se deixa dominar por essa loucura (maravilhosa!) que é a paixão. Sob o efeito dessa embriaguez, o que se quer é a fusão impossível das individualidades. A bela Odette é, em realidade, um ser comum, quase vulgar. Mente, e levara uma vida bem diferente daquela com que sonhou Swann na sua idealização do amor. Sob a suspeita de que está sendo traído, ele se deixa devastar pelo ciúme. A trágica passagem da ventura para a desventura, que povoa as mais brilhantes páginas da grande literatura.
Ocorre a Swann, como a Bento Santiago e Otelo, como a Eulálio e Assumpção, o mais corrosivo dos sentimentos, o maior de todos os males. Lembremos Shakespeare: - "Bagatelas leves como o ar parecem, a um ciumento, provas fortes como as que se encontram nas promessas do Evangelho."
Quando se ama, diz Sthendal, "a cada novo objeto que surge aos olhos ou à memória, encerrado numa tribuna e atento a ouvir o que se discute no parlamento, ou indo a galope para a guarda, sob o fogo do inimigo, sempre se acrescenta uma nova perfeição à ideia que se tem da amada ou descobre-se um novo meio, que a princípio parece excelente, de ser ainda mais amado por ela."
Penso que não é o que se dá com os que se desiludem e se sentem incapazes de recomeçar suas vidas. Para muitos desses, como o amigo a quem dediquei minha crônica, a possibilidade de um novo relacionamento é sempre um movimento para o abismo. Vê-se no outro a ameça de uma nova desilusão. Aos seus olhos, as incertezas de um novo amor se torna algo muito pesado, quase insuportável. Para o coração que sangra, é o mal que se avizinha, é a dor que se anuncia, de mil formas, a cada novo encontro.
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Proust termina um dos romances de Em busca do tempo perdido, No caminho com Swann, com uma reflexão desconcertante: - "E dizer que desperdicei anos da minha vida, que quis morrer, que tive o meu maior amor por uma mulher que não me agradava, que não era o meu tipo." É o expediente de que se vale Marcel, o narrador, para vasculhar sua mais funda subjetividade sobre a complexidade desse sentimento a que chamamos amor. A força do romance reside aí: o que é amar? Para Swann, "amar é desejar amar, é sofrer, é ser escravo de um sentimento, é projetar no outro qualidades estéticas e eróticas mentirosas."
A Odette que Swann ama é irreal, é a fantasia que ele mesmo desenhou. Mais que a paixão pelo outro, a personagem ama a si mesma, numa busca de fundir o sujeito com o objeto, matriz das vontades mais incontidas de quem se deixa dominar por essa loucura (maravilhosa!) que é a paixão. Sob o efeito dessa embriaguez, o que se quer é a fusão impossível das individualidades. A bela Odette é, em realidade, um ser comum, quase vulgar. Mente, e levara uma vida bem diferente daquela com que sonhou Swann na sua idealização do amor. Sob a suspeita de que está sendo traído, ele se deixa devastar pelo ciúme. A trágica passagem da ventura para a desventura, que povoa as mais brilhantes páginas da grande literatura.
Ocorre a Swann, como a Bento Santiago e Otelo, como a Eulálio e Assumpção, o mais corrosivo dos sentimentos, o maior de todos os males. Lembremos Shakespeare: - "Bagatelas leves como o ar parecem, a um ciumento, provas fortes como as que se encontram nas promessas do Evangelho."
Quando se ama, diz Sthendal, "a cada novo objeto que surge aos olhos ou à memória, encerrado numa tribuna e atento a ouvir o que se discute no parlamento, ou indo a galope para a guarda, sob o fogo do inimigo, sempre se acrescenta uma nova perfeição à ideia que se tem da amada ou descobre-se um novo meio, que a princípio parece excelente, de ser ainda mais amado por ela."
Penso que não é o que se dá com os que se desiludem e se sentem incapazes de recomeçar suas vidas. Para muitos desses, como o amigo a quem dediquei minha crônica, a possibilidade de um novo relacionamento é sempre um movimento para o abismo. Vê-se no outro a ameça de uma nova desilusão. Aos seus olhos, as incertezas de um novo amor se torna algo muito pesado, quase insuportável. Para o coração que sangra, é o mal que se avizinha, é a dor que se anuncia, de mil formas, a cada novo encontro.
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Natal com você
Se há uma demonstração de amor que me convence, é alguém prescindir da família para passar o Natal com você. Amigo, namorada, noiva, não importa. É alguém que veio ficar ao seu lado na mais significativa das festas. Veio porque considera você alguém especial, seja o que isso for. Li numa crônica de Medeiros, com que dialogo neste texto, que a dispersão é aceitável no Ano-Novo, não no Natal. Perfeito. A pressão é grande e todos vão querer contar com você na ceia natalina, momento de confraternização que torna os corações mais gelatinosos, mais vocacionados para o perdão e mais propensos a facilitar o reencontro das almas, que, por alguma razão, desentenderam-se num momento qualquer do ano.
É preciso muito carinho para alguém estar com você, muitas vezes sacrificando o convívio dos familiares diretos. Quando se mora na mesma cidade, sobretudo se essa cidade não é grande a ponto de tornar inviáveis os deslocamentos, pode-se ir de uma casa a outra: - "A gente fica na casa de seus pais até perto da meia-noite e o resto do tempo com os meus." E o que parecia um problema sem solução, é, de repente, algo contornável. Claro que há os casos de intolerância, quando o esgoísmo explode e a pessoa, arvorando-se merecedora de todas as renúncias, não é capaz de abrir mão de suas vontades. - "Longe da mamãe, nem pensar!" Você cedendo, mesmo quando isso abre o seu peito em metades.
Conheço alguém que rompeu um relacionamento de muitos anos por conta da estóica decisão: - "Com seus pais ou com os meus?" Desapontado, e insensível, e deselegante, precipitou sobre a mulher aqueles adjetivos que ninguém suporta ouvir. Foi a gota-d'água para a separação, que, pelo visto, veio tarde antes que nunca. É claro que o casamento buscava um pretexto para despencar de vez. E o espírito natalino passou ao largo daquele coração, que não foi capaz de entender que a lembrança da manjedoura deve trazer a cada um a oportunidade de viver os mais sagrados valores: a renúncia, a humildade, a compreensão...
Quando alguém, morando distante, abre mão do peru em família a fim de estar com você na noite milagrosa, isso quer dizer amor. É em nome desse amor que vai estar ali, ao seu lado, compartilhando muitas vezes com pessoas estranhas a mais bela experiência: o nascimento do Menino-Jesus. Se você, dia desses, for objeto desse amor, lembre-se de agradecer aos céus. - "Vou passar com você." Que sincera declaração de amor.
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É preciso muito carinho para alguém estar com você, muitas vezes sacrificando o convívio dos familiares diretos. Quando se mora na mesma cidade, sobretudo se essa cidade não é grande a ponto de tornar inviáveis os deslocamentos, pode-se ir de uma casa a outra: - "A gente fica na casa de seus pais até perto da meia-noite e o resto do tempo com os meus." E o que parecia um problema sem solução, é, de repente, algo contornável. Claro que há os casos de intolerância, quando o esgoísmo explode e a pessoa, arvorando-se merecedora de todas as renúncias, não é capaz de abrir mão de suas vontades. - "Longe da mamãe, nem pensar!" Você cedendo, mesmo quando isso abre o seu peito em metades.
Conheço alguém que rompeu um relacionamento de muitos anos por conta da estóica decisão: - "Com seus pais ou com os meus?" Desapontado, e insensível, e deselegante, precipitou sobre a mulher aqueles adjetivos que ninguém suporta ouvir. Foi a gota-d'água para a separação, que, pelo visto, veio tarde antes que nunca. É claro que o casamento buscava um pretexto para despencar de vez. E o espírito natalino passou ao largo daquele coração, que não foi capaz de entender que a lembrança da manjedoura deve trazer a cada um a oportunidade de viver os mais sagrados valores: a renúncia, a humildade, a compreensão...
Quando alguém, morando distante, abre mão do peru em família a fim de estar com você na noite milagrosa, isso quer dizer amor. É em nome desse amor que vai estar ali, ao seu lado, compartilhando muitas vezes com pessoas estranhas a mais bela experiência: o nascimento do Menino-Jesus. Se você, dia desses, for objeto desse amor, lembre-se de agradecer aos céus. - "Vou passar com você." Que sincera declaração de amor.
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Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
Curtir a dor
Dia desses, estando próximo à mesa em que conversava um casal, ouço a frase incisiva: - "Ela gosta de sofrer, se não já tinha esquecido esse homem." Falei com meus botões: aí está alguém que nunca sofreu por amor. É isso. Há dores que precisam ser curtidas, do contrário jamais desaparecerão.
A dor de um amor não-correspondido é um desses casos. Aliás, acho que essa dor, em essência, é igual a dor de qualquer grande perda, guardadas algumas particularidades. A morte de uma pessoa querida é muito próxima disso - sobre o que já se tem dito muito, mas o assunto continua em pauta, como um desses temas que, vira e mexe, voltam como uma eterna novidade.
A propósito, reli há pouco uma crônica de Nelson Rodrigues que é uma pérola sobre o assunto. Está em O óbvio ululante. Nelson recebe o convite de um amigo para um almoço. Entre risadas marcam o encontro para o dia seguinte. Ao meio-dia, estavam num restaurante. É aí que Nelson percebe que o amigo marcara o almoço como um mero pretexto para que o visse chorar, dilacerado de saudade do pai, que havia morrido. - "Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real!)."
O amigo lhe abria o coração: - "A morte do meu pai... Nunca me recuperei." Nelson confessa ter sentido vontade de perdir-lhe: - "Nem se recupere, nunca, nunca. Eis a nossa degradação: sofrer menos, menos, até esquecer."
As palavras não valem quando a dor aflora nas grandes perdas. A companhia silenciosa, a mão sobre a mão, o afago sincero, valem muito. As palavras não. Ainda que nascidas das melhores intenções, não valem. Toda grande perda vem acompanhada da pior das sentenças: "Nunca mais!" E é em nome dessa sentença que é preciso curtir a dor, que só o tempo é capaz de curar.
Sobre isso, vêm-me à mente as palavras de Rubem Alves, que leio na Folha: - "Todos os amigos querem diminuir o sofrimento da mãe. Carcam-na com palavras que, pensam elas, trarão algum consolo. Mas que palavra ou poema poderá substituir o seu filho? E a chamam ao telefone para dizer-lhe palavras doces e cheias das intenções mais puras. Mas a pureza das suas intenções não garante a sua sabedoria. E aí, à dor da morte do filho, acrescenta-se uma outra dor: a mãe é obrigada a ouvir os consoladores delicada e pacientemente, com sorrisos de agradecimento... Mas são tantos os consoladores e eles cansam tanto."
De Nelson é a sábia afirmação: - "Os psiquiatras e os psicanalistas deviam-se incubir dos que esquecem fácil." E lembra que estamos tão esquecidos de sofrer, que a dor nos parece, e cada vez mais, uma doença, quase a loucura.
"Tão curto o amor e tão longo o esquecimento", ecoa o verso de Neruda. Vindas da mesa ao lado, no cair daquela tarde, as palavras que me chegam ao ouvido me fazem recordar o poeta chileno. E, no entanto, como desconhecem o que é perder alguém que se ama...
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A dor de um amor não-correspondido é um desses casos. Aliás, acho que essa dor, em essência, é igual a dor de qualquer grande perda, guardadas algumas particularidades. A morte de uma pessoa querida é muito próxima disso - sobre o que já se tem dito muito, mas o assunto continua em pauta, como um desses temas que, vira e mexe, voltam como uma eterna novidade.
A propósito, reli há pouco uma crônica de Nelson Rodrigues que é uma pérola sobre o assunto. Está em O óbvio ululante. Nelson recebe o convite de um amigo para um almoço. Entre risadas marcam o encontro para o dia seguinte. Ao meio-dia, estavam num restaurante. É aí que Nelson percebe que o amigo marcara o almoço como um mero pretexto para que o visse chorar, dilacerado de saudade do pai, que havia morrido. - "Éramos amigos e fundamos naquela mesa a nossa solidão (a perfeita solidão há de ter pelo menos a presença numerosa de um amigo real!)."
O amigo lhe abria o coração: - "A morte do meu pai... Nunca me recuperei." Nelson confessa ter sentido vontade de perdir-lhe: - "Nem se recupere, nunca, nunca. Eis a nossa degradação: sofrer menos, menos, até esquecer."
As palavras não valem quando a dor aflora nas grandes perdas. A companhia silenciosa, a mão sobre a mão, o afago sincero, valem muito. As palavras não. Ainda que nascidas das melhores intenções, não valem. Toda grande perda vem acompanhada da pior das sentenças: "Nunca mais!" E é em nome dessa sentença que é preciso curtir a dor, que só o tempo é capaz de curar.
Sobre isso, vêm-me à mente as palavras de Rubem Alves, que leio na Folha: - "Todos os amigos querem diminuir o sofrimento da mãe. Carcam-na com palavras que, pensam elas, trarão algum consolo. Mas que palavra ou poema poderá substituir o seu filho? E a chamam ao telefone para dizer-lhe palavras doces e cheias das intenções mais puras. Mas a pureza das suas intenções não garante a sua sabedoria. E aí, à dor da morte do filho, acrescenta-se uma outra dor: a mãe é obrigada a ouvir os consoladores delicada e pacientemente, com sorrisos de agradecimento... Mas são tantos os consoladores e eles cansam tanto."
De Nelson é a sábia afirmação: - "Os psiquiatras e os psicanalistas deviam-se incubir dos que esquecem fácil." E lembra que estamos tão esquecidos de sofrer, que a dor nos parece, e cada vez mais, uma doença, quase a loucura.
"Tão curto o amor e tão longo o esquecimento", ecoa o verso de Neruda. Vindas da mesa ao lado, no cair daquela tarde, as palavras que me chegam ao ouvido me fazem recordar o poeta chileno. E, no entanto, como desconhecem o que é perder alguém que se ama...
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terça-feira, 10 de novembro de 2009
Valorizar o que é seu
"Quando nossos olhos ficam embaçados, nada como usar os olhos dos outros para voltar a valorizar o que é nosso." Bingo. A frase é de Martha Medeiros e, se não me engano, está em Montanha Russa ou Non-Stop.
Você babava toda vez que passava em frente à revendedora de automóveis e via, ainda que à distância, aquele carro 'irado'. Um dia, a custo, conseguiu adquiri-lo e se sentiu o homem mais feliz do mundo. Com o passar do tempo, a novidade foi perdendo a graça e, se pudesse, trocaria pelo modelo do Roberto, muito mais bonito, econômico e com maior valor de revenda. Com a roupa nova, com o sofá da sala, com o fogão, a geladeira que foi amor à primeira vista, cedo ou tarde vai ser assim. O brinco de ouro, o anel de brilhante, a pulseira de prata. O que um dia foi seu sonho de consumo, depois de conquistado, vai aos poucos perdendo o encanto. E você passa a achar desinteressante aquilo que fazia brilhar seus olhos, que o deixava de boca aberta, morrendo de vontade...
Na paixão é assim. A primeira vez que você a viu ficou deslumbrado. No dia em que reparou bem, ele lhe pareceu o homem dos sonhos. Ela tinha um jeito irresistível de recompor o cabelo. Ele usava um perfume que a deixou maluca. Ela era culta, além de bela. Ele era bem-humorado, roubava a cena à mesa do happy hour. Ela era inteligente. Ele falava de um jeito impressionantemente sedutor. E assim, sob a magia do enamoramento, um dia o destino fez com que ele ou ela cruzasse o seu caminho. Namoraram, ficaram apaixonados, casaram.
E o tempo foi passando. Com a convivência, o que era deslumbrante foi se tornando apenas de certo modo interessante. Ele, que lhe pareceu o homem dos sonhos, foi dando a ver seus defeitos. O charme com que ela recompunha o cabelo foi ficando uma mania irritante. A cultura e a beleza dela, tranformaram-se em coisa comum, não a fazendo tão diferente de tantas outras que você conhece. Ele, que roubava a cena com seu bom-humor, foi se tornando um chato. Ela, cuja inteligência lhe causou tanta admiração, agora o aborrece com suas reflexões rebuscadas sobre as coisas mais banais. A sedução dele fez desmoronar sua confiança, e o ciúme tornou a sua vida insuportável.
É que os olhos, com o tempo, vão deixando de ver que além do detalhe que o deslumbrou, ela tinha outras qualidades. Vão deixando de ver que além dos defeitos que só agora você percebeu, é um cara generoso, companheiro, sensível. Vão deixando de ver que, se a forma como recompõe o cabelo agora o incomoda, o sorriso é sincero, o carinho gostoso. Que muito mais que cultura e beleza, ela possui uma virtude sem preço, é família, recebe amorosamente seus filhos, que não nasceram dela. Vão deixando de ver que o que lhe parece chatice, é espontaneidade, é a alegria de viver. Que ela, apesar da conversa sempre séria, que lhe desagrada hoje, está sempre do seu lado, faça chuva ou faça sol. Vão deixando de ver que a sedução dele é natural e não uma arma de traição.
E você, sem que nem perceba, não a valoriza mais, não o admira como antes. E, se é bonita, a namorada do Paulo é muito mais que ela. Se ele é atraente, não tem o approach do marido da Carla. Se ela tem, com efeito, um certo charme, não tem as pernas da Juliana. Se é culta, falta-lhe a sensualidade da mulher do João. Se ele é bem-humorado, não gosta de viajar como o marido da Luiza. Se ela é culta, a Jô tem um corpo... Se ele tem poder de seduzir que a fez ficar nas nuvens de felicidade, um dia, o Marcelo está sarado, tem barriga de tanquinho e se veste irresistivelmente bem. A grama do vizinho...
E, no entanto, se você soubesse o que comentam dela os melhores amigos; se soubesse como as amigas a invejam pelo marido que tem. Se soubesse como admiram o bom-humor com que ele vai tocando a vida; se soubesse... se soubesse...
Se seus olhos estão começando a embaçar, que tal ver um pouco com os olhos dos outros para valorizar mais o que é seu?
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Você babava toda vez que passava em frente à revendedora de automóveis e via, ainda que à distância, aquele carro 'irado'. Um dia, a custo, conseguiu adquiri-lo e se sentiu o homem mais feliz do mundo. Com o passar do tempo, a novidade foi perdendo a graça e, se pudesse, trocaria pelo modelo do Roberto, muito mais bonito, econômico e com maior valor de revenda. Com a roupa nova, com o sofá da sala, com o fogão, a geladeira que foi amor à primeira vista, cedo ou tarde vai ser assim. O brinco de ouro, o anel de brilhante, a pulseira de prata. O que um dia foi seu sonho de consumo, depois de conquistado, vai aos poucos perdendo o encanto. E você passa a achar desinteressante aquilo que fazia brilhar seus olhos, que o deixava de boca aberta, morrendo de vontade...
Na paixão é assim. A primeira vez que você a viu ficou deslumbrado. No dia em que reparou bem, ele lhe pareceu o homem dos sonhos. Ela tinha um jeito irresistível de recompor o cabelo. Ele usava um perfume que a deixou maluca. Ela era culta, além de bela. Ele era bem-humorado, roubava a cena à mesa do happy hour. Ela era inteligente. Ele falava de um jeito impressionantemente sedutor. E assim, sob a magia do enamoramento, um dia o destino fez com que ele ou ela cruzasse o seu caminho. Namoraram, ficaram apaixonados, casaram.
E o tempo foi passando. Com a convivência, o que era deslumbrante foi se tornando apenas de certo modo interessante. Ele, que lhe pareceu o homem dos sonhos, foi dando a ver seus defeitos. O charme com que ela recompunha o cabelo foi ficando uma mania irritante. A cultura e a beleza dela, tranformaram-se em coisa comum, não a fazendo tão diferente de tantas outras que você conhece. Ele, que roubava a cena com seu bom-humor, foi se tornando um chato. Ela, cuja inteligência lhe causou tanta admiração, agora o aborrece com suas reflexões rebuscadas sobre as coisas mais banais. A sedução dele fez desmoronar sua confiança, e o ciúme tornou a sua vida insuportável.
É que os olhos, com o tempo, vão deixando de ver que além do detalhe que o deslumbrou, ela tinha outras qualidades. Vão deixando de ver que além dos defeitos que só agora você percebeu, é um cara generoso, companheiro, sensível. Vão deixando de ver que, se a forma como recompõe o cabelo agora o incomoda, o sorriso é sincero, o carinho gostoso. Que muito mais que cultura e beleza, ela possui uma virtude sem preço, é família, recebe amorosamente seus filhos, que não nasceram dela. Vão deixando de ver que o que lhe parece chatice, é espontaneidade, é a alegria de viver. Que ela, apesar da conversa sempre séria, que lhe desagrada hoje, está sempre do seu lado, faça chuva ou faça sol. Vão deixando de ver que a sedução dele é natural e não uma arma de traição.
E você, sem que nem perceba, não a valoriza mais, não o admira como antes. E, se é bonita, a namorada do Paulo é muito mais que ela. Se ele é atraente, não tem o approach do marido da Carla. Se ela tem, com efeito, um certo charme, não tem as pernas da Juliana. Se é culta, falta-lhe a sensualidade da mulher do João. Se ele é bem-humorado, não gosta de viajar como o marido da Luiza. Se ela é culta, a Jô tem um corpo... Se ele tem poder de seduzir que a fez ficar nas nuvens de felicidade, um dia, o Marcelo está sarado, tem barriga de tanquinho e se veste irresistivelmente bem. A grama do vizinho...
E, no entanto, se você soubesse o que comentam dela os melhores amigos; se soubesse como as amigas a invejam pelo marido que tem. Se soubesse como admiram o bom-humor com que ele vai tocando a vida; se soubesse... se soubesse...
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segunda-feira, 9 de novembro de 2009
Danuza
Gosto da Danuza Leão. Pasmem: gosto da cronista, do texto enxuto, ligeiro, das posições corajosas, da autenticidade com que expõe sua opinião sobre o que quer que seja. Leio sua coluna na Folha como leio, por exemplo, Cony. Nada de comparações. Apenas leio e gosto do que escreve, como escreve. Seus textos são inteligentes, bem-humorados. Com todas as letras, gosto. Danuza está de bem com a vida e soube envelhecer com dignidade, o que sabe transmitir de forma agradável nas suas crônicas. Aliás, ocorre-me uma passagem de um dos seus livros em que narra ter comemorado sozinha, num hotel de Paris, seu aniversário de 70, 72 anos, não me recordo. Sabe o que é, para uma pessoa como ela, com todo aquele glamour, estar sozinha, num país distante, e afirmar ter sido esse o seu melhor aniversário? Ela e a companhia de uma garrafa de vinho. Mesmo, importante, estando no Ritz. É isso, creio, estar de bem com a vida. Saber lidar com a solidão, que quase sempre está ou não dentro de nós, na multidão ou no silêncio do quarto.
Dia desses, estando num consultório médico, tiro daquela cestinha em que a revista mais nova é de três anos pelo menos, uma Claudia de julho de 2005 e deparo com uma crônica dela que me chamou de tal modo a atenção, que pedi à atendente, na maior sem-cerimônia, para trazer comigo. Intitula-se Não me contem. O texto discute a infidelidade e Danuza, corajosamente, sai com esta pérola: "Pois eu espero que o homem que me trair tenha a delicadeza de negar sempre. Não me interessa que ele seja sincero e verdadeiro; quero achar que ele nunca me traiu, e para isso ele pode (e deve) mentir descaradamente, dizer que estou pirada, que caia um raio em sua cabeça se estiver mentindo. Como nenhum raio vai cair mesmo, ele pode falar à vontade; eu vou acreditar em tudo e ficar bem feliz." Polêmica à parte, é ou não é uma mulher autêntica?
Não se trata de estar defendendo aqui a condenável tese masculina de que negar sempre é a única forma de contornar a situação em casa, quando as evidências apontam para a consumação do fato, ou seja, a traição. Acho a ideia uma babaquice. Até porque, não-raro, a verdade se confunde com a mentira aos ouvidos inseguros de uma mulher. O que me impressiona na colunista é a forma como torna público um pensamento tão questionável, sobretudo na ótica feminina. Estou falando da honestidade do seu olhar, da sinceridade atrevida com que sabe lidar com temas assim delicados. Principalmente, diga-se, quando esse pensamento vem de uma mulher que protaganizou um dos mais escandalosos casos de infidelidade do Rio de Janeiro da época. Como sabem, Danuza foi casada com Samuel Wainer, um dos mais renomados jornalistas brasileiros do século passado, um homem de um prestígio imenso, rico e elegante. Wainer era dono do A última hora e contratara, como redator, Antonio Maria, cronista e compositor que se tornaria célebre pelo inexplicável poder de sedução que exercia sobre as mulheres. Justifico o 'inexplicável': Maria, segundo a própria Danuza afirma em um dos seus livros, que li outro dia no folhear vespertino das livrarias, era gordo, feio e desajeitado. Menos para o coração das mulheres, que conquistou aos montes. Apenas com aquilo com que os sedutores fazem a diferença na hora do jogo do acasalamento. Uma coisa que trazem do berço e, infelizmente, guardam a sete chaves.
Dando um desconto (e meio na contramão), como cronista considero Danuza o Nelson Rodrigues de saia. Escancarada, mesmo para o desconforto de muitos.
Mas, ainda sobre Maria, ao lado de não possuir dotes físicos - digamos -, apolíneos, era presunçoso e chegou a afirmar certa vez, num tipo de esnobismo ainda mais desinteressante, não existir mulher que resistisse a alguns minutos de sua conversa. Dizem que Balzac, o homem de La comèdie humaine, era assim. Vai ver, no caso do compositor nordestino, terá sido isso que levou aos seus braços mulheres encantadoras. Danuza Leão, para ficar num exemplo.
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Dia desses, estando num consultório médico, tiro daquela cestinha em que a revista mais nova é de três anos pelo menos, uma Claudia de julho de 2005 e deparo com uma crônica dela que me chamou de tal modo a atenção, que pedi à atendente, na maior sem-cerimônia, para trazer comigo. Intitula-se Não me contem. O texto discute a infidelidade e Danuza, corajosamente, sai com esta pérola: "Pois eu espero que o homem que me trair tenha a delicadeza de negar sempre. Não me interessa que ele seja sincero e verdadeiro; quero achar que ele nunca me traiu, e para isso ele pode (e deve) mentir descaradamente, dizer que estou pirada, que caia um raio em sua cabeça se estiver mentindo. Como nenhum raio vai cair mesmo, ele pode falar à vontade; eu vou acreditar em tudo e ficar bem feliz." Polêmica à parte, é ou não é uma mulher autêntica?
Não se trata de estar defendendo aqui a condenável tese masculina de que negar sempre é a única forma de contornar a situação em casa, quando as evidências apontam para a consumação do fato, ou seja, a traição. Acho a ideia uma babaquice. Até porque, não-raro, a verdade se confunde com a mentira aos ouvidos inseguros de uma mulher. O que me impressiona na colunista é a forma como torna público um pensamento tão questionável, sobretudo na ótica feminina. Estou falando da honestidade do seu olhar, da sinceridade atrevida com que sabe lidar com temas assim delicados. Principalmente, diga-se, quando esse pensamento vem de uma mulher que protaganizou um dos mais escandalosos casos de infidelidade do Rio de Janeiro da época. Como sabem, Danuza foi casada com Samuel Wainer, um dos mais renomados jornalistas brasileiros do século passado, um homem de um prestígio imenso, rico e elegante. Wainer era dono do A última hora e contratara, como redator, Antonio Maria, cronista e compositor que se tornaria célebre pelo inexplicável poder de sedução que exercia sobre as mulheres. Justifico o 'inexplicável': Maria, segundo a própria Danuza afirma em um dos seus livros, que li outro dia no folhear vespertino das livrarias, era gordo, feio e desajeitado. Menos para o coração das mulheres, que conquistou aos montes. Apenas com aquilo com que os sedutores fazem a diferença na hora do jogo do acasalamento. Uma coisa que trazem do berço e, infelizmente, guardam a sete chaves.
Dando um desconto (e meio na contramão), como cronista considero Danuza o Nelson Rodrigues de saia. Escancarada, mesmo para o desconforto de muitos.
Mas, ainda sobre Maria, ao lado de não possuir dotes físicos - digamos -, apolíneos, era presunçoso e chegou a afirmar certa vez, num tipo de esnobismo ainda mais desinteressante, não existir mulher que resistisse a alguns minutos de sua conversa. Dizem que Balzac, o homem de La comèdie humaine, era assim. Vai ver, no caso do compositor nordestino, terá sido isso que levou aos seus braços mulheres encantadoras. Danuza Leão, para ficar num exemplo.
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Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
O medo vencerá o amor?
Como estivesse discretamente triste, perguntei: mas, não foi você...? Acabara de romper uma relação que tinha tudo para dar certo. Sabe aquele casal bonito, que faz planos, que nos deixa a sensação de que é possível sonhar? Era assim o que nos passava esse casal de amigos. Mas ela disse "acabou". Insisti: mas foi você que rompeu, que não quis mais. Por que ficar assim? Ao que, vacilante, respondeu: - "Porque ainda o amo, mas tenho medo." Num lampejo de memória, ocorreu-me Shakespeare: "De todas as paixões baixas, o medo é a mais amaldiçoada." E ocorreu-me Herculano: "O medo é o pior dos conselheiros." E pensar que esse sentimento maldito vem tomando conta da gente...
A maior parte das pessoas subtrai a vida assim. Tem medo, medo, medo. A minha amiga tinha medo de tudo, quase. Medo de sofrer, de fazer sofrer, medo de ser traída, medo de ser infeliz, medo de ser feliz, disto e daquilo outro. Preferiu permanecer na margem a tentar atravessar o rio e deparar com o desconhecido, que podia ser belo.
A propósito, li outro dia um livro desconcertante. Simples, leve, desses que parecem dizer o óbvio que a gente não percebe, uma propriedade do gênero. Eckhart Tolle, é o nome do autor. Mostra como o medo, que considera uma doença psicológica, não se prende a qualquer ameaça concreta, verdadeira. É fruto da imaginação negativa, e se manifesta com suas diferentes máscaras: preocupação, tensão, nervosismo, pavor, fobia. Esse tipo de medo psicológico, diz ele, "é sempre de alguma coisa que poderá acontecer, não de alguma coisa que está acontecendo neste momento. Você está aqui e agora, mas sua mente está no futuro." Perfeito Tolle, perfeito.
A vida da gente vai se transformando nesta negatividade. Temos medo de tentar, de falhar, de perdoar, de errar, de dar a última chance. É um tipo de defesa do ego que se deixou perturbar. A gente anda com medo da sombra e se vê a si mesma como se vivesse sob ameaça constante. E tudo é tão ilusório. Ah, lembrei o título do livro: O poder do agora, um dos fenômenos da 'literatura espiritual'. Nele o autor desfere o tiro certeiro nesse fantasma da falta de coragem, da covardia que, para a maior parte das pessoas, faz da vida um dois-pra-lá-dois-pra-cá irritante. E, no entanto, a vida é bailarina, já nos dizia Drummond. Tentemos o rodopio, o passo novo, o ritmo do frevo, se preciso for.
Para quem se deixa dominar pelo medo, para quem diz não ao homem que ama mas não é capaz de dizer não à negatividade, errar é morrer. E este sentimento ardiloso está associado sempre ao medo da própria morte. A troco disso, quantos já não morreram ou mataram. Quantas guerras no front do nosso eu interior. Quantas lágrimas rolaram ou vão rolar. Quanta coisa não fica por realizar. Quantos relacionamentos não foram ou serão destruídos.
Falei não, que em certas coisas não se deve meter. Mas deu vontade. "Vai lá, se você ama como diz amar. Vai lá, que o tempo não faz concessões e você pode um dia se arrepender por não ter tido a coragem de tentar de novo. Vai lá, troca o não pelo sim. O ruim é não ter tentado. E se tiverem nascido um para o outro?" Vai ver, está aí o caminho da felicidade. E o medo quedará, rendido, diante da grandeza do amor. Quem sabe.
A maior parte das pessoas subtrai a vida assim. Tem medo, medo, medo. A minha amiga tinha medo de tudo, quase. Medo de sofrer, de fazer sofrer, medo de ser traída, medo de ser infeliz, medo de ser feliz, disto e daquilo outro. Preferiu permanecer na margem a tentar atravessar o rio e deparar com o desconhecido, que podia ser belo.
A propósito, li outro dia um livro desconcertante. Simples, leve, desses que parecem dizer o óbvio que a gente não percebe, uma propriedade do gênero. Eckhart Tolle, é o nome do autor. Mostra como o medo, que considera uma doença psicológica, não se prende a qualquer ameaça concreta, verdadeira. É fruto da imaginação negativa, e se manifesta com suas diferentes máscaras: preocupação, tensão, nervosismo, pavor, fobia. Esse tipo de medo psicológico, diz ele, "é sempre de alguma coisa que poderá acontecer, não de alguma coisa que está acontecendo neste momento. Você está aqui e agora, mas sua mente está no futuro." Perfeito Tolle, perfeito.
A vida da gente vai se transformando nesta negatividade. Temos medo de tentar, de falhar, de perdoar, de errar, de dar a última chance. É um tipo de defesa do ego que se deixou perturbar. A gente anda com medo da sombra e se vê a si mesma como se vivesse sob ameaça constante. E tudo é tão ilusório. Ah, lembrei o título do livro: O poder do agora, um dos fenômenos da 'literatura espiritual'. Nele o autor desfere o tiro certeiro nesse fantasma da falta de coragem, da covardia que, para a maior parte das pessoas, faz da vida um dois-pra-lá-dois-pra-cá irritante. E, no entanto, a vida é bailarina, já nos dizia Drummond. Tentemos o rodopio, o passo novo, o ritmo do frevo, se preciso for.
Para quem se deixa dominar pelo medo, para quem diz não ao homem que ama mas não é capaz de dizer não à negatividade, errar é morrer. E este sentimento ardiloso está associado sempre ao medo da própria morte. A troco disso, quantos já não morreram ou mataram. Quantas guerras no front do nosso eu interior. Quantas lágrimas rolaram ou vão rolar. Quanta coisa não fica por realizar. Quantos relacionamentos não foram ou serão destruídos.
Falei não, que em certas coisas não se deve meter. Mas deu vontade. "Vai lá, se você ama como diz amar. Vai lá, que o tempo não faz concessões e você pode um dia se arrepender por não ter tido a coragem de tentar de novo. Vai lá, troca o não pelo sim. O ruim é não ter tentado. E se tiverem nascido um para o outro?" Vai ver, está aí o caminho da felicidade. E o medo quedará, rendido, diante da grandeza do amor. Quem sabe.
Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
Nota do autor sobre o livro "Do amor e outras crônicas", com publicação prevista para dezembro
Este livro não tem a pretensão de constituir literatura, na rigorosa acepção da palavra. Antes pelo contrário. Reúne textos escritos, um a um, de uma "sentada", por isso, canhestros. Intencionalmente canhestros. Se alguma qualidade tem, que nem tudo que tornamos público há de ser sempre inútil e desnecessário, quem sabe resida aí a sua validade. É a revelação de percepções várias, subjetivas, nitidamente pessoais, e se, não-raro, parecem ter um tom professoral, de quem entende da matéria com que lida, o mais das vezes podem ser lidos como 'ficção', palavra que me ocorre e de que lanço mão um tanto inapropriadamente, na falta de outra que traduza com maior exatidão o que intenciono esclarecer nesta nota.
O tema central aqui focalizado, a paixão e o amor, não resulta, assim, de um 'especialista', mas de um curioso, que procura, sem encontrar, a explicação possível para o mistério dessa experiência a um tempo realizadora e dolorosa do encontro com a outra parte do 'eu' incompleto de cada um. É isso que defino por relacionamento, sobremaneira o relacionamento amoroso. Como leitor, sempre me fascinaram os escritores mais verticais, que se dedicaram ao mergulho desafiador nas águas do que existe de mais profundo no homem. Refiro-me a canônicos, a exemplo de Proust e Dostoiévski, sem desprezar outros tais, menores, mas igualmente tentados a compreender as contradições que marcam a vida a dois. Do primeiro, a análise envolvente do amor e do ciúme através da relação de Charles Swann e Odette, para ficar num exemplo, na segunda parte do livro-monumento que é Em busca do tempo perdido. Do segundo, a criação de tipos psiquiátricos pelos quais explora a possibilidade da 'iluminação', como em Crime e castigo e O idiota. Mas é o olhar atento para a vida dos apaixonados, entre os quais me incluo com compreensível destaque, o outro instrumento com que teço os meus escritos já assumidamente canhestros, aos quais me recuso oferecer o direito ao retoque, à correção de qualquer ordem.
Que complexa matéria são os relacionamentos, os mais íntimos, os amorosos, que constituem o ingrediente seminal dessas despretensiosas crônicas. Exceção parece não existir: durante algum tempo são perfeitos e proporcionam aos amantes a enganosa impressão da mais completa felicidade. Com o passar do tempo vão deslizando para a 'realidade', transformando-se numa relação de amor e ódio. O segredo para torná-los consistentes e duradouros, com a voz de quem é apenas um curioso, um observador atento, talvez esteja em saber dosar as polaridades com que são construídos, a dimensão física e psicológica que estabelece a necessidade do outro para nos sentirmos completos. E na percepção de que todos somos imperfeitos. A utópica perfeição, quase nunca alcançada, vai ver, está no enamoramento de duas imperfeições. Assim como as diferenças do yan e do ying, de que nos fala a sabedoria chinesa. Quando isso não ocorre, estamos fartos de saber, o fim é inevitável. Este livro, para concluir, tem a coragem de discutir por que isso acontece, e o que deixa na contramão da felicidade aparente de cada começo: a dor e o sofrimento. Sem esquecer, contudo, de olhar para a transitoriedade dessa experiência amarga e afirmar que, depois de cada 'fracasso', a vida surpreende com novos milagres do encontro. Que seja agradável já é em si um desenho de que terá valido a pena passar-lhe às mãos esta coletânea, leitor.
O tema central aqui focalizado, a paixão e o amor, não resulta, assim, de um 'especialista', mas de um curioso, que procura, sem encontrar, a explicação possível para o mistério dessa experiência a um tempo realizadora e dolorosa do encontro com a outra parte do 'eu' incompleto de cada um. É isso que defino por relacionamento, sobremaneira o relacionamento amoroso. Como leitor, sempre me fascinaram os escritores mais verticais, que se dedicaram ao mergulho desafiador nas águas do que existe de mais profundo no homem. Refiro-me a canônicos, a exemplo de Proust e Dostoiévski, sem desprezar outros tais, menores, mas igualmente tentados a compreender as contradições que marcam a vida a dois. Do primeiro, a análise envolvente do amor e do ciúme através da relação de Charles Swann e Odette, para ficar num exemplo, na segunda parte do livro-monumento que é Em busca do tempo perdido. Do segundo, a criação de tipos psiquiátricos pelos quais explora a possibilidade da 'iluminação', como em Crime e castigo e O idiota. Mas é o olhar atento para a vida dos apaixonados, entre os quais me incluo com compreensível destaque, o outro instrumento com que teço os meus escritos já assumidamente canhestros, aos quais me recuso oferecer o direito ao retoque, à correção de qualquer ordem.
Que complexa matéria são os relacionamentos, os mais íntimos, os amorosos, que constituem o ingrediente seminal dessas despretensiosas crônicas. Exceção parece não existir: durante algum tempo são perfeitos e proporcionam aos amantes a enganosa impressão da mais completa felicidade. Com o passar do tempo vão deslizando para a 'realidade', transformando-se numa relação de amor e ódio. O segredo para torná-los consistentes e duradouros, com a voz de quem é apenas um curioso, um observador atento, talvez esteja em saber dosar as polaridades com que são construídos, a dimensão física e psicológica que estabelece a necessidade do outro para nos sentirmos completos. E na percepção de que todos somos imperfeitos. A utópica perfeição, quase nunca alcançada, vai ver, está no enamoramento de duas imperfeições. Assim como as diferenças do yan e do ying, de que nos fala a sabedoria chinesa. Quando isso não ocorre, estamos fartos de saber, o fim é inevitável. Este livro, para concluir, tem a coragem de discutir por que isso acontece, e o que deixa na contramão da felicidade aparente de cada começo: a dor e o sofrimento. Sem esquecer, contudo, de olhar para a transitoriedade dessa experiência amarga e afirmar que, depois de cada 'fracasso', a vida surpreende com novos milagres do encontro. Que seja agradável já é em si um desenho de que terá valido a pena passar-lhe às mãos esta coletânea, leitor.
Professor de Estética, História da Arte, Literatura Dramática e Comunicação e Linguagem.
Escreve contos, crônicas e artigos de análise literária.
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